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<b>Armas, ações e armações</b><font size=-1></font>
<p><font size=-1>Jorge Antunes</font>
<br><font size=-1>Professor titular da Universidade de Brasília,
compositor, maestro</font>
<p>Era bem cedo. Passava um pouco das 9 da manhã. Não era
uma sexta-feira 13: era a sexta-feira 14 de outubro de 2005. Um estudante
de jornalismo da PUC deu uma facada em seu colega e amigo. Não era
uma dessas facadas que estudantes costumam dar em colegas, através
de trote, ou venda de rifa, ou venda de passe ou livro velho, ou pedido
de empréstimo. Era uma facada de verdade, com faca. Dessas facadas
que provocam horrível sangramento.
<br>Rafael Azevedo Fortes Alves, 21 anos, foi esfaqueado na redação
da Rádio USP, no edifício da Antiga Reitoria. Foi levado
ao Hospital Universitário, onde morreu. O autor da facada, Fábio
Le Senechal Nanni, 20 anos, foi detido pela Guarda Universitária
antes de sair do prédio, deixando a faca no local do crime, e levado
ao 93º Distrito Policial, no Jaguaré.
<br>Os dois estudantes conversavam na redação de Jornalismo
da Rádio USP, quando Fábio sacou uma faca e golpeou o peito
de Rafael. Este, sangrando muito, foi socorrido pelos colegas da redação
e colocado numa maca para ser levado ao Hospital Universitário.
Rafael e Fábio cursavam o segundo ano de jornalismo na Escola de
Comunicações e Artes (ECA) da USP e moravam juntos numa república
de estudantes no bairro do Butantã.
<br> Em recente discussão na Internet sobre o referendo do
próximo dia 23, eu rebati as elucubrações intelectuais
de colegas que filosofavam acerca da violência urbana. Os discursos
se inflamavam. Doutores e doutorandos trocavam idéias e farpas acerca
da possibilidade de proibição do comércio de armas
de fogo e munições. Todos discutiam sobre as razões
e as conseqüências da violência urbana. O reiterado uso
da expressão "violência urbana" me incomodava tanto, que acabei
colocando uma pausa na diatriba: lembrei que a violência urbana não
é o problema e que a questão a ser tratada deveria ser a
violência humana.
<br> As elites políticas resolveram engambelar o povo brasileiro
com essa farsa plebiscitária. Com a intenção de anestesiar
as atenções das massas, mais de 700 milhões de reais
são destinados a essa brincadeirinha de cidadania em que os pobres
oprimidos devemos escolher entre sim e não. O teatro está
montado para apagar, dos noticiários e das discussões, as
pressões populares que se voltavam à punição
de corruptos e corruptores.
<br> Tudo indica que os desesperados gananciosos do lucro, no capitalismo
em crise, vislumbram futuros sombrios que, para não lhe ameaçarem,
só lhe serão propícios com uma população
desarmada.
<br> Bom seria se referendos e plebiscitos fossem promovidos para
sabermos da vontade popular acerca de dezenas de outros assuntos: a fabricação
de armas, o apoio à cultura e sua democratização,
a dívida externa, a formação de professores, o financiamento
da Universidade, a adesão do Brasil à TeleSur, a participação
do Brasil na ONU, a ocupação brasileira no Haiti, as reformas
aprovadas com votos comprados, a Alca, o sigilo bancário, a privatização
da Amazônia, etc.
<br> Bom seria se os 700 milhões de reais gastos com a farsa
do próximo dia 23 fossem destinados à Universidade pública
e que outros tantos milhões fossem aplicados na educação
básica. A violência urbana, a violência no campo, a
violência doméstica, a violência no trânsito e
todas as outras violências são oriundas de um aspecto: o monstro
que habita cada ser humano. Esse velho e conhecido monstro deveria ficar
eternamente adormecido. A canção de ninar, para ele, tem
um único nome: educação de qualidade.
<br> Enquanto essa educação ideal não for universal,
monstros despertarão munindo-se de pau, pedra, foice, faca, enxada
ou qualquer outro sólido de comercialização não
proibida.
<br> O estudante Fábio, da USP, com apenas 20 anos de idade,
teve seu monstro despertado. Este não saiu correndo rumo a uma loja
de armas de fogo. Perto havia uma faca. Se esta não estivesse à
mão, o monstro trataria de apelar para um microfone. O estúdio
da Rádio USP e todos os outros ambientes são ricos em apetrechos
capazes de se transformar em tacapes.
<br>O Estado quer o monopólio da violência e por isso promove
o referendo. Os ricos querem ser os únicos armados. Os homens de
bens querem dominar os homens de bem.
<br> Nas inserções televisivas da Justiça Eleitoral
a mocinha do anúncio ensina direitinho como votar, apertando a tecla
verde ou a tecla vermelha. Eu, de minha parte, com meu tradicional olhar
arguto de soslaio, já reparei que no cantinho da cena, à
esquerda da urna eletrônica, existe um botão branco: deve
servir para o voto em branco. Os donos do Estado, homens de bens, não
ensinam isso.</html>