<!doctype html public "-//w3c//dtd html 4.0 transitional//en">
<html>
Prezado Carlos Sandroni:
<p>Bingo! Você acertou em cheio.
<br>Acordei hoje pensando em lhe escrever justamente sobre este problema:
o significado da palavra "compreender".
<br>Você se adiantou. Parabéns.
<br>Creio que estamos totalmente de acordo.
<br>Merleau-Ponty disse, sabiamente, que "a fenomenologia se deixa praticar
(...), e ela existe como movimento, antes de ser alcançada com uma
inteira consciência filosófica".
<br>Sempre que falei "compreender" eu estive me referindo ao domínio
do estudo descritivo do fenômeno musical.
<br>Escutar, ouvir, entender, analisar, compreender, são verbos
que precisariam de claras definições, para que afinássemos
nosso debate.
<br>No segundo movimento de minha Sinfonia em Cinco Movimentos eu usei
um Rum, um Rumpi e um Lé, com toques específicos de Nanã.
Antes, freqüentei sessões de candoblé, para anotar ritmos,
observar e, enfim, "compreender" a polirritmia e as técnicas de
percussão (mão, dedos, palma, etc). Os Ogãs, evidentemente,
sempre serão melhores executores dos atabques do que os percussionistas
da orquestra.
<br>Mas consegui instruir a estes de modo a nos aproximarmos bastante do
original.
<br>Quando eu "compreendo" a música de uma determinada cultura,
não estou necessariamente me colocando na pele e na mente do praticante
daquela cultura. Eu adoro e compreendo os toques de candomblé, mas,
garanto, nunca Orixás chegarão a mim em minha escuta e prática.
Nunca entrarei em transe ao escrever as partes dos atabaques ou ao ouví-las.
<br>Uma coisa é o significante, outra coisa é o significado.
Significantes idênticos terão significados diferentes em diferentes
contextos e culturas.
<br>As três notinhas que formam a célula geradora da quinta
de Beethoven, que eu "compreendo" muito bem, pode, dependendo do grupo
de audição, ter diferentes significados: motivo gerador,
destino que bate à porta, anúncio de lâmina de barbear,
momento de expectativa, tensão de espera, etc, etc.
<br>Nunca entrarei em transe ao ouvir um Toque de Nanã. Eu até
me atreveria a arriscar as seguintes afirmações:
<br>- Eu "comprendo" o toque de Nanã e o executante de atabaque
não o "compreende".
<br>- Eu apenas "compreendo" o toque de Nanã e o executante de atabaque
o "entende".
<br>Abraço,
<br>Jorge Antunes
<br> 
<br> 
<br> 
<p>Carlos Sandroni wrote:
<blockquote TYPE=CITE>Prezado Antunes,
<p>Obrigado pelo tom cordial e pela disposição a debater
revelados em sua mensagem. Tentarei seguir o seu exemplo, embora infelizmente
não possa me alongar muito.
<br>Talvez uma parte da discordância tenha a ver com o uso da palavra
"compreender". O que seria "compreender" as polifonias vocais do Pacífico?
Mensagens prévias de Sílvio e Eduardo Luedy já apontaram
na direção que considero apropriada.
<br>Você, com sua formação contrapontística
e musical, certamente "compreende" de alguma maneira aquelas polifonias.
A maneira como você as compreende pode tê-lo ajudado a escrever
o seu livro mencionado, e pode ajudá-lo em outras coisas eventualmente.
<br>Mas você próprio reconhece que a compreensão que
tem, se deve em parte também à leitura de livros de etnomusicólogos
sobre aquelas culturas musicais. Ora, estes livros não são
livros de contraponto, são livros sobre culturas, sobre sistemas
simbólicos. Sistemas dentro dos quais, exclusivamente, a música,
inclusive no que se refere às estruturas sonoras, pode ser "compreendida",
pelo menos da maneira que os etnomusicólogos entendem o verbo "compreender".
A referência mais imediata é Blacking, já mencionado
aqui duas ou três vezes. Mas a gente pode pensar no Clifford Geertz
também - "A arte como sistema simbólico", em \O Saber Local
- novos ensaios de Antropologia Interpretativa\.
<br>Sim, Zemp usa a palavra contraponto, mas eu seria capaz de jurar que
ele não domina contraponto florido a oito vozes, que eu saiba ele
era jazzista antes de ser etnomusicólogo, como tampouco o Lortat-Jacob,
ou o Beaudet, que foi o meu orientador.
<br>Você é um compositor que estuda a diversidade musical
do mundo com objetivos diferentes daqueles que estão dedicados a
compreender o que significam estas diversas músicas para as pessoas
que as fazem. Estes, incluindo os etnomusicólogos que você
cita - integrantes da tal "torcida do Flamengo" a que me referi - não
subscreveriam aquelas duas frases suas que citei no meu primeiro email.
O tipo de "compreensão" que eles proporcionam serve a objetivos
diferentes, mas é também na minha opinião mais rica,
mais nuançada, mais - vá lá - compreensiva (também 
no sentido do inglês "comprehensive").
<br>Não excluo que você possa ter feito um excelente uso das
polifonias vocais do mundo no seu livro, ao contrário. Minha discordância
se relaciona à idéia de que proficiência em música
de tradição ocidental capacite a "compreender  
outras tradições musicais" (num sentido diferente de "usá-las
para fins indiferentes a seus significados contextuais"), no mesmo gesto
considerando-as "menos complexas".
<br>Espero ter ajudado a deixar mais claro meu ponto de vista. Em todo
caso, acho que não vou poder dar muito mais que estes dez centavos
nos próximos dias.
<br>Abraços,
<br>Carlos
<br> 
<br> <span class="gmail_quote">On 10/14/07, <b>Jorge Antunes</b> <<a href="mailto:antunes@unb.br">antunes@unb.br</a>>
wrote:</span>
<blockquote class="gmail_quote" style="border-left: 1px solid rgb(204, 204, 204); margin: 0pt 0pt 0pt 0.8ex; padding-left: 1ex;"> Prezado
Carlos Sandroni:
<p>Você afirma que o domínio do contraponto europeu não
capacita a compreender as polifonias vocais do Pacífico.
<br>Essa afirmação é interessante, porque bombástica
para mim.
<br>Não me considero dono da verdade e, assim, gostaria de me fazer
todo ouvidos, para que você me convença acerca dessa sua convicção.
<br>Talvez isso seja possível, se você me der exemplos concretos.
Você poderia citar nomes de pessoas que dominam o contraponto "europeu"
e que, apesar de possuirem esse domínio, não estão
capacitadas para compreender as polifonias vocais do Pacífico.
<p>Eu, de minha parte, tenho exemplos que demostram justamente o contrário.
<br>Para escrever meu mais recente livro, intitulado Sons Novos para a
Voz, passei dois anos, de setembro de 2005 a agosto de 2007, estudando
todas as manifestações musicais do mundo, produzidas com
o aparelho fonador.
<br>Estudei todos os trabalhos de Hugo Zemp, Trân Quang Hai, Jean-Michel
Beaudet, Jacques Bouët, Gilles Léothaud e Bernard Lortat-Jacob,
sobre as práticas vocais contrapontísticas de Taiwan, Georgia,
Albania, Itália, Ilhas Solomon, República da África
Central (Pigmeus e Banda Linda), Etiópia e Indonésia.
<br>O estudo abordou as construções mais complexas, desde
os cantos a duas vozes de Malita (Ilhas Solomon), passando pela polifonia
a três vozes de Tai-Tung, no Taiwan, até as polifonias a doze
vozes dos portuários de Gênova, na Itália (o canto
trallallero) e as canções himarioçe, no estilo Himara,
cantadas em Vlorë no sul da Albânia, que também são
a 12 vozes.
<br>Para compreender essas polifonias, entendo eu que o que me capacitou
foi o domínio que tenho do contraponto que você chama de europeu.
O que eu chamo de domínio do contraponto, não é aquela
capacidade desenvolvida ao se praticar contraponto modal a apenas duas
vozes. Estou me referindo ao domínio do contraponto florido a oito
vozes, nas linguagens tonal e atonal. São a essas práticas
que chegam meus alunos em final de curso: tonalismo clássico bachiano
a 8 vozes e atonalismo integral de Julien Falk a 8 vozes.
<br>A maioria dos etnomusicólogos que mencionei acima, também
dominam o contraponto florido a dois coros, porque foram alunos do Conservatório
de Paris.
<br>Talvez eu esteja enganado, e é possível que minha compreensão
das polifonias vocais dos diversos povos do mundo não se deva ao
domínio que tenho da técnica contrapontística. Talvez
o que me capacitou para tanto foi algum outro fator de que não tenho
consciência. Deixo então a você a incumbência
de me passar exemplos que demonstrem a sua convicção de que
o contraponto "europeu" não capacita a compreender as polifonias
vocais do Pacífico.
<br>Abraço,
<br><span class="sg">Jorge Antunes</span></blockquote>

<p><br>--
<br>Carlos Sandroni
<br>Departamento de Música, UFPE
<br>Programa de Pós-Graduação em Música, UFPB
<br>Setembro 2007/Fevereiro 2008:
<br>Pesquisador Associado ao Centre de Recherches en Ethnomusicologie
<br>CNRS - LESC UMR 7186 - Paris
<br>Endereço pessoal na França:
<br>Chez Duflo-Moreau
<br>199, rue de Vaugirard
<br>75015 - Paris
<br>Telefone profissional no Brasil
<br>(81) 2126 8596 (telefone e fax)
<br>(Recados com Anita)
<br>Endereço pessoal no Brasil:
<br>Rua das Pernambucanas, 264/501
<br>Graças - 52011-010
<br>Recife - PE</blockquote>
</html>