<div dir="ltr"><br><i>Paulo Cesar Araújo se despede de Waldick Soriano com um texto cheio de clichês, onde não faltam "a voz dos excluídos", "os porões da ditadura" e a palavra final de Caetano Veloso. Num contexto em que falar de Waldick Soriano é cometer um</i> faux pas<i>, um texto interessante. <br clear="all">
</i>
<p style="text-indent: 35.4pt; text-align: justify;"><b>Waldick Soriano: a voz dos
excluídos</b> <br></p>
<p style="text-indent: 35.4pt; text-align: justify;">Por
um desses mistérios da criação, coube à Bahia oferecer ao Brasil os dois
extremos da nossa música popular: o cultuado João Gilberto, o criador da bossa
nova, e o criticado Waldick Soriano, a mais completa tradução da chamada música
brega ou cafona. E por coincidência, no mesmo ano em que João é reverenciado pelos 50
anos da bossa nova, o outro baiano saiu da vida para entrar na História. </p>
<p style="text-indent: 35.4pt; text-align: justify;">Ao
comentar a morte dele, Caetano Veloso disse que "se há uma elite para mim, é a
elite dos que têm ou tiveram grande intuição artística. Waldick era um desses".
De fato, o cantor e compositor Eurípedes Waldick Soriano foi um dos mais
marcantes e singulares artistas da música brasileira. Ele começou a carreira em
1959 com o single <i>Quem és tu </i>e, no
ano seguinte, lançou o primeiro álbum com o mesmo título e orquestrações do
maestro Guerra Peixe. A obra de Waldick é, portanto, contemporânea da bossa
nova, do Cinema Novo, do concretismo e da arquitetura de Oscar Niemayer.<span> </span></p>
<p style="text-indent: 35.4pt; text-align: justify;">O
projeto desenvolvimentista da era JK, apesar do clima de euforia que criava,
tinha também o seu lado perverso. Havia um <span> </span>outro Brasil, abandonado,<span> </span>desfavorecido, que não aparecia nas
capas da revista Manchete. Um Brasil que, sem conhecer as maravilhas da
indústria de consumo, sofria no carne os sacrifícios para implantá-la. A música
de Waldick surgiu neste contexto expressando a tristeza dos marginalizados de
bolso e de coração, como em <i><span style="color: black;">O moço pobre,</span></i><span style="color: black;"> que
diz: "</span>Um moço pobre como eu não deve amar / E nem tão pouco alimentar
sonhos de amor / O mundo é só de quem tem muito pra gastar / Um moço pobre como
eu não tem valor..."</p>
<p style="text-indent: 35.4pt; text-align: justify;">Partindo
de experiências individuais, Waldick transformava suas músicas numa realidade
que não era apenas dele e sim de um vasto público formado por empregadas
domésticas, porteiros, garçons, operários de construção e imigrantes nordestinos
que são freqüentemente humilhados e ofendidos no cotidiano brasileiro. Foi para
eles que o artista baiano compôs temas como <i>Eu também sou gente, Nem cachorro é
maltratado como eu </i>e a emblemática <i>Eu
não sou cachorro não</i>.<span> </span></p>
<p style="text-indent: 35.4pt; text-align: justify;">Inicialmente
restrito ao Norte e Nordeste, o sucesso de Waldick foi num crescendo, até que no
fim dos anos 60 explodiu em todo o Brasil. Aí já estávamos na ditadura militar e
na grande repressão política que se seguiu à decretação do AI-5. O embate dele
com a censura aconteceu em 1974 com a proibição de <i>Tortura de amor<span> </span>– </i>uma das mais lindas e românticas
canções já feitas no Brasil. Os militares ficaram perturbados com a referência a
uma palavra que remetia aos porões da ditadura. Aqueles dias eram assim. Podia
torturar, mas não podia falar em tortura, nem mesmo de amor.<span> </span></p>
<p style="text-indent: 35.4pt; text-align: justify;">A
famosa máxima rodrigueana de que toda unanimidade é burra nunca ficou tão
evidente como na opinião dos críticos sobre Waldick Soriano. Virou lugar-comum
subestimar o talento deste cantor-compositor, mesmo entre aqueles que nunca
ouviram um disco seu. N<span style="color: black;">o livro </span><i>Eu não sou cachorro, não</i> <span style="color: black;">defendo a idéia de que </span>existe determinado parâmetro
de julgamento estético de uma obra musical no Brasil. Para ser bem qualificada
pela crítica esta obra precisa estar identificada ao que se considera "tradição"
(folclore, choro, samba de raiz) ou então ao que se considera "modernidade"
(influências de vanguardas literárias ou musicais como o jazz, a bossa nova, o
rock inglês). É por isso que tem valor cultural nomes como Nelson Sargento
("tradição") ou Tom Zé ("modernidade"). Quem não se enquadra aí <span> </span>é desclassificado.<span> </span></p>
<p style="text-indent: 35.4pt; text-align: justify;">Porém,
indiferente a estas filigranas das elites culturais do país, o povo brasileiro
consagrou Waldick Soriano como um gigante da nossa música popular. Ao longo se
sua carreira ele gravou 83 discos, compôs cerca de 600 canções, muitas delas
grandes sucessos. <i>Eu não sou cachorro
não, </i>por exemplo, está na memória coletiva nacional assim como <i>Asa Branca, Mamãe eu quero </i>e<i> Luar do sertão</i>. <span style="color: black;">Sim, Waldick se expressava através de um ritmo alienígena
como o bolero, mas como disse o poeta Augusto de Campos à propósito do
tropicalismo. "E daí? Desde quando a arte tem carteira de identidade? Qual a
nacionalidade de Stravinski: russo, francês, americano ou simplesmente humano?"
</span></p>
<p style="text-indent: 35.4pt; text-align: justify;">Felizmente,
Waldick viveu a tempo de ver realizado aquele desejo que compartilhava com
Nelson Cavaquinho: "Se alguém quiser fazer por mim / que faça agora". E a atriz
Patrícia Pillar fez dois belos trabalhos em sua homenagem: o CD e DVD <i>Waldick Soriano ao vivo</i>, lançados em
2007<i>, </i>e o documentário <i><span style="color: black;">Waldick - sempre
no meu coração</span></i><span style="color: black;">, exibido neste ano.</span>
Eu próprio fiz uma análise da sua trajetória artística no livro ao qual dei o
título <i>Eu não sou cachorro não</i>,
publicado pela editora Record, em 2002. Entretanto, há ainda muito mais a ser
revelado na obra deste grande artista brasileiro. De qualquer forma, acho que
Waldick Soriano partiu sentindo o seu coração, a sua alma e a sua história
lavados.</p>
<p style="text-align: justify;"> </p>
<div style="text-align: center;" align="center">
<hr align="center" color="#aca899" noshade width="100%">
</div>
<p style="text-align: justify;"><span style="font-size: 10pt;">PAULO CESAR DE ARAÚJO é historiador e
jornalista, autor de <i>Eu não sou cachorro, não</i> e <i>Roberto Carlos em detalhes</i>.<span> </span></span></p>
<br>-- <br>carlos palombini<br><<a href="mailto:cpalombini@gmail.com">cpalombini@gmail.com</a>><br><br>maison suger<br>16-18 rue suger<br>paris 6<br><br>tél. 01.44.41.32.41<br>
</div>