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<strong>José Miguel Wisnik</strong>
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<b>O colunista</b>
escreve aos sábados
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<h1 id="content">Não ouvir</h1>
<h2>O pianista André Mehmari é um dos maiores fenômenos da música instrumental surgida no Brasil nos últimos tempos</h2>
<p>O pianista André Mehmari é um dos maiores fenômenos da música instrumental
surgida no Brasil nos últimos tempos. Quem acompanha o gênero conhece certamente
a sua técnica espantosa, sua fluência única e sua capacidade de transitar com
sobra entre os estilos da música popular e da música de concerto. Seu recital
recente na Sala São Paulo remetia, sem medo do paralelo, a uma versão brasileira
do paradigma Keith Jarrett, o pianista que tem o instrumento como uma extensão
total do corpo e que improvisa numa zona sem fronteiras entre as formas que o
piano acumulou. Mehmari relata no Facebook uma experiência recentíssima e a seu
modo chocante, que desafia a nossa capacidade de ler o estado atual das
coisas.</p><p>Antes de passar a ela, uma observação a mais sobre a comparação entre Jarrett
e Mehmari, marcando agora não a semelhança mas uma diferença estética, para não
deixar a comparação de passagem num plano muito simplista. Jarrett é angustiado,
problematiza o silêncio que o ronda, envereda pelo fragmento e pelo choque,
entre o jazz, a música clássica e os impasses da arte moderna. Mehmari é de uma
musicalidade sem dramas, de fundo romântico, que jorra nos moldes daquela que a
lenda consagrou como sendo a de Villa-Lobos, que não conhece nem coloca limites
à sua inesgotável capacidade de expressão.</p><p>Vamos aos fatos. André foi
participar de um espetáculo para 600 crianças de escolas públicas, com idades
entre 10 e 12 anos, num dos teatros municipais de Campinas, no bairro da Vila
Industrial. Acho que o programa se chama “Ouvir para crescer”, e se iniciava com
uma parte em que atores apresentavam de maneira divertida, caracterizados como
palhaços, as características da linguagem musical. Até aí o roteiro
pedagógico-cultural transcorria sem sustos. Em seguida entrava André, que
apresentaria músicas de Ernesto Nazareth, fazendo as pontes, que ele é mestre em
fazer, com outros repertórios. Ao começar uma explicação sobre a sua
participação, e mesmo antes de tocar, começou a receber vaias e xingamentos
pesados, intensivos, que se multiplicaram e continuaram ao longo de toda a
apresentação.</p><p>Mehmari é uma pessoa sem pose, suas apresentações são informais e guiadas
pela vontade sincera de contribuir. A rejeição não se aplicava a eventuais
pompas ou a alguma ostentação de atitude. Imagino que ela se dá, primeiro, na
passagem do tom divertido da primeira parte ao tom mais sério e concentrado que
ele imprimia. Junto com este vêm certamente, misturados na reação cega da massa
de xingamentos, o peso oficial da escola desacreditada, confundido com o
estranhamento de classe social, que o pianista deve ter encarnado
involuntariamente naquela situação ao mesmo tempo específica e sintomática.</p><p>Antes de qualquer outra consideração, é preciso dizer que a reação cega e
coletiva ao outro, informe, não elaborada, dada de antemão e deixando sem ação
os monitores do programa ironicamente intitulado “Ouvir para crescer”, com o
agravante de que vinha de pré-púberes, é um sinal, entre outros, de pontos de
ruptura no tecido civilizatório que passa pela escola. Notícias recentes, vindas
de muitas partes, de violências no espaço escolar, dentro ou fora da sala de
aula, indicam essa espécie de liberação do ataque físico ou verbal, a colegas ou
a professores, como uma prática disseminada da qual a plateia referida pode ser
vista como um corpo de aprendizes já em plena atividade.</p><p>Mais que isso, eles estão imitando procedimentos que estão se dando de muitas
formas e em muitos lugares, não só nas chamadas classes C e D, como era o caso,
mas nas A e B, na escola, nos debates, nas instituições, na rua. Gozar mais a
derrota do time adversário do que a vitória do próprio time é um dos sintomas
dessa síndrome. Quem quiser entender isso precisa escapar da lamentação moral de
classe média sobre a falta de educação nas famílias. Não que ela não exista, e
não seja um dos focos da questão, mas é que ela faz parte de uma rede de
identidades que se constituem precariamente sobre a relação rivalitária de
indivíduos e grupos cuja afirmação de existência depende da negação frontal do
outro. É uma queda do laço simbólico que supõe a troca e a aceitação da própria
fragilidade, das próprias insuficiências e das próprias contradições.</p><p>A cultura alta levada para jovens plateias pobres (no caso, Nazareth!), pode
fazer o papel de ingênua, nesse contexto em que os muros e os fossos reais e
imaginários prevalecem. Mas a questão, para mim, continua sendo a de ultrapassar
os muros e os fossos, nas duas direções.</p>
</div></span><div style="overflow:hidden;color:rgb(0,0,0);background-color:rgb(255,255,255);text-align:left;text-decoration:none;border:medium none"><a style="color:#003399" href="http://oglobo.globo.com/cultura/nao-ouvir-8492551#ixzz2UQsym1xJ">http://oglobo.globo.com/cultura/nao-ouvir-8492551#ixzz2UQsym1xJ</a><br>
</div><br>-- <br><div>carlos palombini<br>pesquisador visitante, centro de letras e artes, unirio<br></div><a href="http://ufmg.academia.edu/CarlosPalombini" target="_blank">ufmg.academia.edu/CarlosPalombini</a><br><a href="http://proibidao.org" target="_blank">proibidao.org</a><br>
<div></div><div></div><div></div><div></div><div></div><div></div><div></div><div></div>
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