<div dir="ltr">RELATO:<div><br></div><div>
        
        
        


<p class="" style="margin-bottom:0cm"><font color="#767c8b"><font face="LucidaGrande">Minha
amiga, a professora Marli Guastavini, convidou-me para falar sobre
música a seus alunos. São jovens de escola pública, de 10-12 anos,
aqui perto de Brasília. Pedi a alguns músicos da Orquestra para
irem comigo. Antes apresentou-se uma ótima banda. Junto com a banda
se apresentou um grupo de palhaços muito engraçados e criativos. As
crianças adoraram. Na segunda parte, a pedido da produção, entrei
no palco, feliz da vida para falar de Stockhausen, Pierre Schaeffer,
Flo Menezes e da música eletroacústica em geral. O silêncio era
sepulcral. Fiquei impressionado com a disciplina das crianças. Nem
um sussurro, nem um cochicho. Não havia sistema de som e, assim, não
tinha como tocar as gravações que levei para ilustrar a palestra. A
solução foi pedir aos músicos que me acompanhavam, para tocarem
alguma coisa. Sussurrei no ouvido da violinista, pedindo que ele
tocasse qualquer coisa, imitando um som eletrônico. Nossa! Logo me
arrependi: ela começou a fazer uns glissandos ridículos,
intermináveis. Ela tocava com os olhos fechados e, assim, não via
meus gestos desesperados pedindo que parasse. Para minha surpresa, a
plateia de crianças irrompeu em palmas frenéticas. Algumas crianças
gritavam: –Bravo! –Bravo! Eu queria falar pra eles dessa coisa
bonita de a Música de não ter fronteiras. Sussurrei no ouvido do
oboista, pedindo que ele tocasse, bem forte, para encobrir os
glissandos do violino. Eu lhe disse: -Toca o solo de oboé do 3º
movimento da 3ª Sinfonia de Beethoven. Ele nunca tinha tocado a
obra, mas conhecia de ouvido o trecho. Foi um desastre. Em vez de lá
bequadro ele tocava lá bemol, deformando totalmente a frase. Mas as
crianças adoraram. Gritos de “bravo”, novamente: muitas palmas.
A violinista, ao ouvir aquele som esquisito, se empolgou e tocou mais
forte ainda os glissandos. Fiz sinal para o oboista, com a mão,
pedindo para ele parar. Felizmente ele tocava de olhos abertos.
Repetia continuamente o solo bemolthoviano. Mas ele entendeu mal meu
gesto, e passou a tocar fortíssimo. Abaixei a cabeça e levei
mecanicamente a apresentação até o final. O trompetista, meu
amigo, se ofereceu para salvar a situação. Perguntou-me se poderia
tocar </font></font><span class="Apple-style-span" style="color:rgb(118,124,139);font-family:LucidaGrande">um
trecho do concerto de Haydn. Concordei. Uma trompetada forte poderia
encobrir a vergonha sonora que acontecia. Ele começou. O salto
fá-sib-fá saiu afinadíssimo. Mas, antes de ir ao sol, o desgraçado
tocava lá bequado, em vez de lá bemol. Horrível! A plateia
explodiu em palmas. As professoras que assistiam incentivavam os
alunos a aplaudirem. Um menino sapeca, de uns 10 anos, fez menção
de se levantar para sair. Um tia correu até ele, pegou na ponta de
sua orelha, deu puxãozinho e, vermelha, falou, de modo ríspido,
alguma coisa ao menino. Imediatamente ele voltou a seu lugar,
quietinho. Sei bem que educação é sempre desafio, e que o Brasil
encontra-se muito longe de ter estrutura e pessoal adequado. Meu
apelo aqui fica para os educadores e pais. Não coloquem filhos no
mundo se não estão aptos e dispostos a dar uma formação cuidadosa
e crítica a esses novos seres. Estou farto desse discurso e essa
educação que reprime a criança. Refiro-me a essa educação que
enfia nas jovens cabecinhas a ideia de que protestos, reclamações,
posicionamentos críticos, são coisas feias. Tudo, e até mesmo a
merda, deve ser aplaudido. Olho esses jovens como nossos semelhantes
que em poucos anos estarão votando e ocupando importantes cargos e
funções, e fico apavorado. Fico imaginando que a educação de
cabresto a que aquelas crianças se submetem, vai resultar em
cidadãos que nunca criticarão coisa alguma. Domesticados,
aplaudirão qualquer mentira, qualquer demagogo, qualquer lixo
cultural imposto pelas grandes gravadoras e pelos meios de
comunicação de massa. De qualquer maneira agradeço a oportunidade
de me apresentar para esses jovens, mesmo tendo sofrido com a
passividade deles, com a tolerância deles, com a falta de senso
crítico deles.</span></p></div></div>