<div dir="ltr"><h2>A fábrica de papers</h2>Pablo Ortellado<p>A organização do trabalho na universidade está passando por uma
profunda modificação: ela não é mais voltada para a realização de
pesquisas exemplares que disputem o reconhecimento dos pares, mas para a
conquista de metas de produtividade que gerem reconhecimento credencial
das instituições de avaliação. A universidade se parece cada vez menos
com um colegiado aristocrático de cientistas desinteressados e cada vez
mais com uma fábrica de papers: uma fábrica povoada de operários
obedientes. O resultado desta mudança de perfil organizacional não é
apenas burocratização e aceleração do trabalho – ela também gera uma
profunda corrupção do sistema de comunicação científica.</p>
<p><em>Um mercado concorrencial de papers</em></p>
<p>A pesquisa universitária se constituiu modernamente segundo o modelo
do colegiado aristocrático de cientistas desinteressados – pesquisadores
que, emancipados da lógica econômica, podiam ociosamente investigar o
mundo. Para isso foram criados os sistemas de estabilidade (as cátedras e
os <em>tenures</em>) e independência acadêmicas (autonomia de pesquisa)
que simulavam as condições sociais da pesquisa aristocrática do século
XVIII. Embora houvesse algo de anacrônico neste modelo, ele parece ter
se ajustado bem às estruturas capitalistas modernas até o fim do boom
científico posterior à segunda guerra mundial. No entanto, junto com a
crise do estado de bem-estar, a “excepcionalidade” organizacional da
ciência foi posta em xeque. Não há ainda consenso sobre o que causou
essa mudança. Dardot e Laval, num artigo célebre, atribuem essa mudança
ao neoliberalismo – que não consistiria na simples desregulamentação
econômica, mas na ampliação da lógica da competição de mercado para
todas as esferas da vida. Uma outra explicação para o fenômeno seria a
emergência da economia do conhecimento que teria aproximado as formas de
organização da empresa capitalista e da universidade num processo que
Steven Vallas e Daniel Kleinman chamaram de “convergência assimétrica”.</p>
<p>Seja qual for a explicação, o princípio orientador da mudança em
curso faz a universidade operar como se fosse uma fábrica produzindo
para um mercado concorrencial. Apesar de não ser uma organização
econômica e não vender papers, a universidade passa a ser pensada no
modelo <em>input</em> (trabalho humano)/ <em>output</em> (papers e
patentes) e se orientar por metas objetivas e crescentes de
produtividade. Quando os propositores do modelo são chamados a se
explicar, geralmente expressam dois tipos de preocupação: por um lado,
diminuir a ociosidade e aumentar a “intensidade” da atividade científica
(chamada, sem meias palavras, de “produtividade”) e, por outro,
aperfeiçoar os processos de avaliação administrativa fornecendo
parâmetros objetivos de mensuração do sucesso. </p>
<p>O objetivo da revolução gerencial na universidade parece ser o de
laborizar a atividade científica, submetendo-a a padrões de gestão
empresarial. Mas por que o modelo econômico-gerencial deveria ser
adequado para gerir a ciência? Em outras palavras, precisamos, os
cientistas, ser menos “ociosos” e ter padrões “quantitativos” de
administração e controle?</p>
<p><em>O quantitativo e o qualitativo</em></p>
<p>Ao introduzir indicadores quantitativos para controlar o trabalho
científico, o modelo econômico-gerencial enfrenta uma dificuldade: os
resultados da pesquisa científica não têm uma dimensão quantitativa
inerente cuja relevância seja suficiente para a avaliação. O único
critério quantitativo imediato é o número de artigos produzidos. No
entanto, esse indicador isolado é muito impreciso, já que os papers
variam em qualidade. O que faz então é incorporar e quantificar a
avaliação qualitativa do sistema de publicação por pares das revistas
científicas: presumindo que a avaliação da qualidade foi feita pelas
revistas científicas, passa-se a quantificar o número de artigos
publicados em revistas com revisão por pares. Mas esse novo indicador
ainda é impreciso já que os periódicos diferem em rigor de avaliação.
Por isso, são utilizados critérios adicionais como os de fator de
impacto (a quantidade média de vezes que um artigo de uma determinada
revista é citado) para ponderar o valor da publicação em cada revista.
Ainda para evitar imprecisões, o sistema restringe a comparação da
avaliação apenas para um mesmo campo científico. O resultado é um
sistema de pontos onde cada artigo é ponderado por um fator relativo à
importância da revista. Gera-se assim uma pontuação que permite
hierarquizar todos os cientistas de um campo científico de acordo com a
sua “produtividade”: quanto mais artigos se publica em revistas
importantes, mais produtivo se é. Essa pontuação fornece parâmetros
objetivos para todas as necessidades de seleção do sistema de
administração da ciência: a contratação, a promoção na carreira e a
distribuição das verbas de pesquisa.</p>
<p>Embora evidentemente facilite a administração científica, ao baseá-la
em indicadores, o sistema de avaliação científica econômico-gerencial
tem pressupostos de duvidosa razoabilidade. Poucos cientistas
considerariam razoável comparar e hierarquizar quantitativamente dois
artigos sérios de pares de duas sub-áreas distintas – por exemplo, um
artigo de sociologia da religião e um artigo de sociologia do trabalho.
Que tipo de critério não arbitrário permitiria definir qual artigo é
“melhor” e ainda por cima quantificar esse grau de superioridade
qualitativa? Ao hierarquizar as revistas e conceder a elas pontos
distintos, a avaliação faz justamente isso: diz que um artigo publicado
na revista A é “1,7 vezes melhor” que um artigo publicado na revista B,
independente do seu conteúdo. Diz também que uma pesquisa que gera
quatro artigos é “duas vezes melhor” que uma pesquisa que gera apenas
dois. </p>
<p>Uma vez explicitados os fundamentos lógicos do sistema de avaliação, eles parecem simplesmente absurdos.</p>
<p><em>Corrupção da comunicação científica</em></p>
<p>Ao publicizar as regras, o sistema de avaliação estimula os
cientistas a competirem entre si para maximizar as chances de publicação
nas melhores revistas, criando um mercado concorrencial. Em tese, esta
competição levaria os melhores cientistas a terem seus papers mais
frequentemente aceitos pelas melhores publicações. No entanto, o
resultado é uma disputa por produção de indicadores e não pela qualidade
dos artigos. Se forem atores racionais orientados para maximizar os
seus interesses de serem contratados, subirem na carreira e aumentarem
suas verbas de pesquisa, os cientistas não priorizarão fazer pesquisas
de qualidade, mas gerar o maior número de papers com potencial de serem
aceitos em revistas bem avaliadas.</p>
<p>É justamente o desacordo entre os dois objetivos que leva à corrupção
do sistema de comunicação científica. Quando a ciência se orientava
para a disputa por reputação, os cientistas se empenhavam em realizar
pesquisas exemplares que impressionassem o julgamento qualitativo dos
pares. Com o sistema de avaliação econômico-gerencial esse objetivo é
subordinado ao de atender os indicadores de produtividade de pesquisa.
Isso não apenas faz com um tempo excessivo seja dedicado às estratégias
de publicação, como estimula e legitima práticas de comunicação
corrompidas: publicar o mesmo argumento em artigos diferentes;
apresentar uma mesma ideia em partes, publicadas em diferentes artigos;
publicar ideias imaturas; co-assinar artigos nos quais a colaboração foi
apenas pontual; etc. </p>
<p>Num sistema concorrencial com avaliação puramente quantitativa e
regras publicizadas, o purismo de se abster destas práticas corrompidas é
apenas moralismo antieconômico. Do ponto de vista sistêmico, o recurso
às práticas corrompidas está disponível a todos – bons e maus cientistas
– e cabe apenas aos bons se aproveitar mais das oportunidades do que os
maus.</p>
<p>Mas esse ainda não é o problema principal. O conjunto do sistema de
comunicação científica se desarticula com a disseminação destas
práticas. Como o sistema premia o número de artigos publicados, o
resultado é um inchaço do número de artigos que faz multiplicar a
irrelevância, a repetição e a fragmentação. Torna-se assim cada vez mais
difícil encontrar o artigo importante no meio do oceano de papers
irrelevantes, redundantes e parciais que nunca deveriam ter sido
publicados. Em muitas áreas consolidadas, a quantidade de artigos é
tamanha que já não é mais possível fazer uma revisão bibliográfica
completa. A situação chegou a um ponto tão crítico que um recente estudo
encomendado por gestores de importantes universidades americanas
comparou o processo a uma “corrida armamentista” e recomendou com
urgência a adoção de políticas de “publicação responsável”.</p>
<p><em>Além da crítica negativa</em></p>
<p>A avaliação econômico-gerencial não consegue de maneira apropriada
separar a boa da má pesquisa, é incapaz de hierarquizar os cientistas de
um mesmo campo e submete os pesquisadores a um regime de produção
acelerado e orientado para a publicação de artigos supérfluos. Ela
coloca os cientistas na condição de operários e os gestores na condição
de patrões impiedosos. </p>
<p>A comunidade científica, no entanto, tem muitas vezes resistido a
essas investidas contra os seus valores e práticas tradicionais de uma
maneira negativa. Isso permite que os gestores assumam a cômoda posição
de dizer que o modelo econômico-gerencial é o único modelo de avaliação
disponível e que os opositores a ele não dispõem de um paradigma que
seja operacional. Com o crescimento do sistema universitário e o aumento
da pressão social pelo controle dos gastos com a ciência há uma urgente
necessidade de um modelo de avaliação que permita a supervisão pública e
critérios de distribuição dos recursos. </p>
<p>Por isso, precisamos desenvolver um sistema de avaliação que esteja
de acordo com os nossos valores: que seja democraticamente construído e
acordado; que seja fundamentalmente qualitativo e realizado por pares;
que avalie os ciclos de pesquisa, respeitando a sazonalidade da
divulgação dos resultados; que compreenda o valor das diferentes
modalidades de publicação (relatórios técnicos, livros, apresentações em
congressos etc.); que tenha parâmetros internos às diferentes áreas;
que compreenda as particularidades das novas áreas (que não têm
departamentos e programas, nem revistas e congressos) e das áreas
interdisciplinares (cujos resultados são apresentados e publicados em
campos de pesquisa diferentes). </p>
<p>Reunir essas preocupações num sistema de avaliação viável não parece
um objetivo inexequível. Se queremos sair da posição de operários
obedientes precisamos abandonar a fábrica e construir uma alternativa a
ela. Não é suficente reclamar do patrão ao final da jornada.</p>
<p><em>Referências: </em></p>
<p>Dardot, P.; Laval, C. Néolibéralisme et subjectivation capitaliste. <em>Cités</em>. v. 1, n. 41, 2010. p. 35-50.</p>
<p>Kleinman, D. L.; Vallas, S. P. Science, capitalism, and the rise of
the ‘knowledge worker’: The changing structure of knowledge production
in the United States. <em>Theory and Society</em>. v. 30, n. 4, 2001. p. 451-492.</p>
<p>Kleinman, D. L.; Vallas, S. P. Contradiction, Convergence, and the
Knowledge Economy: The Co-Evolution of Academic and Commercial
Biotechnology. <em>Socio-Economic Review</em>. v. 6, n. 2, 2008. p. 283-311. </p>
<p>Hartley, D.; Acord, S. K. <em>Peer Review in Academic Promotion and Publishing: Its Meaning, Locus, and Future</em>. Berkeley: Center for Studies in Higher Education, 2011.</p><a href="http://www.gpopai.org/ortellado/2012/01/a-fabrica-de-papers/">http://www.gpopai.org/ortellado/2012/01/a-fabrica-de-papers/</a><br clear="all">
<br>-- <br><div dir="ltr"><div>carlos palombini<br>professor de musicologia ufmg<br><a href="http://proibidao.org" target="_blank">proibidao.org</a><br></div><a href="http://ufmg.academia.edu/CarlosPalombini" target="_blank">ufmg.academia.edu/CarlosPalombini</a><br>
<a href="http://scholar.google.com.br/citations?user=YLmXN7AAAAAJ" target="_blank"><span style="display:block">scholar.google.com.br/citations?user=YLmXN7AAAAA</span></a><br><div></div><div></div><div></div><div></div><div>
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