<div dir="ltr"><br><h2><a href="http://coletivodar.org/2013/11/os-poroes-da-democracia-pesquisador-detido-durante-manifestacao-no-rj-revela-torturas-e-humilhacoes/" rel="bookmark" title="Permanent Link to Os porões da democracia: pesquisador detido durante manifestação no RJ revela torturas e humilhações"><span style="width:44px;height:32px" class=""><span class="">Os </span></span><span style="width:107px;height:32px" class=""><span class="">porões </span></span><span style="width:43px;height:32px" class=""><span class="">da </span></span><span style="width:182px;height:32px" class=""><span class="">democracia: </span></span><span style="width:186px;height:32px" class=""><span class="">pesquisador </span></span><span style="width:102px;height:32px" class=""><span class="">detido </span></span><span style="width:122px;height:32px" class=""><span class="">durante </span></span><span style="width:201px;height:32px" class=""><span class="">manifestação </span></span><span style="width:45px;height:32px" class=""><span class="">no </span></span><span style="width:40px;height:32px" class=""><span class="">RJ </span></span><span style="width:96px;height:32px" class=""><span class="">revela </span></span><span style="width:124px;height:32px" class=""><span class="">torturas </span></span><span style="width:24px;height:32px" class=""><span class="">e </span></span><span style="width:184px;height:32px" class=""><span class="">humilhações</span></span></a></h2>
<b>Se por um lado a solidariedade, presente entre companheiros da Fiocruz e
 de Manguinhos, em especial, foi extremamente importante para mim, por 
outro, é surpreendente o silêncio por parte de algumas entidades de 
classe e parte do meio acadêmico com relação a esse estado de coisas, 
onde cresce a opressão contra a expressão popular nas ruas, o que coloca
 o Estado Democrático de Direito como privilégio para poucas pessoas. 
Também é desprezível o reacionarismo expresso em artigos e ações de 
intelectuais que, outrora, eram consideradas referências importantes 
para a crítica ao autoritarismo.</b><br><br><a href="http://coletivodar.org/2013/11/os-poroes-da-democracia-pesquisador-detido-durante-manifestacao-no-rj-revela-torturas-e-humilhacoes/">http://coletivodar.org/2013/11/os-poroes-da-democracia-pesquisador-detido-durante-manifestacao-no-rj-revela-torturas-e-humilhacoes/</a><br>
<br><span class="">30/11/2013</span>
                <span class=""></span><br>
<h2>Pesquisador da ENSP detido durante manifestação descreve regime de terror</h2>
<p><a href="http://www.ensp.fiocruz.br/portal-ensp/informe/site/materia/detalhe/34183" target="_blank">ENSP</a></p>
<i>* André Antunes e Cátia Guimarães</i>
<p>Ele foi um dos presos políticos da atual democracia brasileira. 
Participando de uma manifestação organizada pelos professores municipais
 e estaduais do Rio de Janeiro, que estavam em greve, Paulo Roberto de 
Abreu Bruno, pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio 
Arouca (ENSP/Fiocruz), foi detido junto a dezenas de outras pessoas, no 
dia 15 de outubro. Acusado sem provas e sem direito à informação ou à 
presença de advogados, foi encaminhado para a delegacia e, na sequência,
 para dois presídios, incluindo Bangu 9. Segundo ele, circulou pelos 
“porões da democracia brasileira”.</p>
<p>Desde o início de junho, Paulo Bruno vinha filmando as manifestações 
que tomaram as ruas do Rio de Janeiro como parte do seu trabalho de 
pesquisa. Levou algum tempo para que conseguisse falar sobre o assunto, 
mas, nesta entrevista – concedida aos jornalistas da Revista Poli – ele 
narra as humilhações e violências sofridas pelos presos políticos, 
descreve a rotina de violação de direitos do sistema carcerário 
brasileiro, destaca a solidariedade dos presos comuns e chama a atenção 
para a fragilidade das lutas políticas diante do terror que o Estado – 
representado, no caso, pelo governo estadual – pode provocar. Como, na 
prisão, não tiveram acesso sequer a papel e caneta, os detalhes que se 
seguem ficaram registrados, até então, apenas na memória do 
entrevistado.</p>
<p><b>Você está sendo acusado de quais crimes?</b></p>
<p><b><img alt="" src="http://www.ensp.fiocruz.br/portal-ensp/informe/site/arquivos/ckeditor/images/P_Bruno_ent_esq_2013.jpg"><br></b></p><p><b>Paulo Bruno:</b> Dano
 ao patrimônio, roubo, incêndio e organização criminosa. Eu fui preso 
por volta de 22h30 do dia 15/10 e, no entanto, no documento que assinei 
no IML constava como se eu tivesse quebrado alguma coisa, por volta das 
18h, nas proximidades da rua Evaristo da Veiga. Não há nada quebrado lá.
 Além disso, nesse horário estava a caminho da Avenida Presidente 
Vargas, depois de embarcar num trem do metrô na estação de Del Castilho,
 acompanhado de duas pessoas com as quais trabalho.</p>
<p><b>Vocês sabiam que estavam sendo presos, para onde estavam indo e por quê?</b></p>
<p><b>Paulo Bruno:</b> Não. Estava na escadaria da Câmara dos 
Vereadores, e o policial só me puxou. Eu tropecei na alça da mochila e 
minhas moedas se espalharam. Reclamei disso e, autorizado a recolhê-las,
 pude me recompor. No ônibus, outro policial mais novo, com pouco menos 
de 30 anos, talvez, ficou perto da porta e mandou entrar. Nisso foram 
entrando pessoas. Na Evaristo da Veiga, próximo à avenida Rio Branco, 
alguns manifestantes ainda tentaram impedir que o ônibus saísse, e os 
policiais que estavam em frente ao Municipal jogaram bomba de efeito 
moral para dispersá-los. O ônibus foi embora com uma escolta, vinham 
dois de moto — de negro também, acho que eram do choque —, com a arma 
apontada para a gente, dizendo para fechar a janela, xingando. Tentamos 
abrir a janela e um deles dizia: ‘fecha a janela, senão jogo gás de 
pimenta em vocês’. Aí fechamos a janela. Até então o pessoal estava 
revoltado, ninguém tinha noção do que iria acontecer. Eu falava para ter
 calma, era o mais velho. A gente tinha que estar sempre calado, e em 
nenhum momento falaram para onde iríamos. Na delegacia, permanecemos a 
maior parte do tempo no ônibus. Ficamos lá de molho até as 12h30 do 
outro dia. Soubemos que duas pessoas que estavam na 25ª [DP], se não me 
engano, ficaram em condições bem piores, num lugar alagado, com um 
banheiro. No nosso caso, ficamos em lugares da delegacia, sentados ou de
 pé, e depois retornamos para o ônibus. Recebemos orientação dos 
advogados que chegaram à 37ª DP, algum tempo depois, de só depormos em 
juízo. Passamos uma procuração para os advogados do DDH [Instituto de 
Defesa dos Direitos Humanos] e não depusemos.</p>
<p><b>Como foi a transferência para o presídio?</b></p>
<p><b>Paulo Bruno:</b> Pouco antes de 12h30 os carros 
começaram a se movimentar. Vimos chegar aquele furgão usado pelo 
batalhão de choque, começaram a deslocar os carros em frente à 
delegacia, a gente previu que fosse acontecer alguma coisa. Imaginamos 
que iríamos ser transferidos, mas não sabíamos para onde, porque não 
falaram. Alguns PMs começaram a ser mais irônicos e mais agressivos com 
palavras. Quando alguém pedia alguma coisa, respondiam de forma irônica.
 Sempre de forma intimidatória. Até que, meio-dia e pouco — imagino que o
 horário era esse, porque também não tínhamos relógio —, colocaram a 
gente na traseira desse furgão, que era dividido no meio, com dois 
bancos laterais. Ia uma pessoa em pé e outra sentada, algemadas. Eu não 
tinha noção de que algema era objeto de tortura. Para mim, era só para 
segurar a mão do preso. Mas, conforme você vai mexendo, ela vai 
apertando. Então, assim que o carro saiu, a algema encaixou no osso do 
meu pulso, causando uma sensação muito ruim, eu tentei mexer e percebi 
que ela apertou. Fomos para o IML [Instituto Médico Legal]. Nessa hora 
eu já não aguentava mais, pedi para tirarem e acabaram abrindo [a 
algema] lá. Mas isso nem contou lá no exame de corpo delito, porque é 
uma coisa muito rápida, os caras não querem muita conversa. O tratamento
 que a gente recebeu em todo momento, a não ser em poucas ocasiões, no 
interior da 37ª DP, era como se fôssemos criminosos. Dali saímos também 
sem que falassem nada. Nos algemaram de novo, colocaram no furgão e 
fomos para São Gonçalo, para o presídio Patrícia Accioly, no bairro 
Guaxindiba. Nas transferências, você é sempre humilhado, chamavam a 
gente de ‘black bosta’, criminosos, assassinos, vagabundos, vândalos 
etc. Na saída da 37ª, dois policiais nos chamaram de criminosos, falando
 que seríamos estuprados no presídio. Diziam que iríamos pagar por 
termos nos metido com policial, que tínhamos matado o amigo deles, 
incendiado o carro [da polícia]. Tentavam nos filmar com seus celulares.
 Quando chegou lá, em Guaxindiba, novamente um cardápio de ofensas e 
atos para nos amedrontar. Você entra, tira a roupa, fica de cócoras, 
levanta a sola do pé, mão, tudo para ver se está com algum objeto, e 
depois te encaminham nu para receber calção e camiseta. Para lá a gente 
foi com a roupa do corpo.</p>
<p>Na delegacia da Ilha do Governador, deixamos as coisas com os 
advogados, porque tinham avisado que iríamos perder tudo no presídio. 
Primeiro ficamos acocorados num corredor dos presos de alta 
periculosidade (segundo eles próprios). A primeira pergunta de um desses
 presos foi se a gente tinha dinheiro. Todo mundo de mão para trás e 
cabeça para baixo, em pé ou sentado. Não demos ouvido. Começaram a 
perguntar o que a gente fez, mas ninguém respondeu. Por fim, ele 
perguntou se a gente estava em manifestação. O preso da frente falou 
‘esse Cabral é um filho da puta, tem que sair!’ e o da cela de trás 
concordou: ‘É isso mesmo!’.</p>
<p>Dali fomos para uma cela num corredor e ficamos só nós, os presos 
políticos. Eram celas para seis pessoas, com três beliches de cimento. 
No canto, o banheiro, com um buraco no chão – um vaso sanitário, chamado
 de ‘boi’ na linguagem da cadeia – e um chuveiro no alto, sem registro. A
 gente descobriu que a água era aberta duas vezes ao dia. Foi ato 
contínuo entrarmos na cela e todo mundo se apresentar. As pessoas não se
 conheciam. A sensação de solidariedade coletiva minimizava a apreensão 
causada nos deslocamentos [DP-IML-presídio]. Entrar na cela naquela 
circunstância era como ‘chegar em casa’: enfim, apesar da falta de 
banho, teríamos a possibilidade de deitar e descansar.</p>
<p><b>Como foi a rotina dentro do presídio?</b></p>
<p><b>Paulo Bruno:</b> Inicialmente fomos informados sobre 
como funciona o sistema. Rasparam a nossa cabeça também antes de 
entrarmos na cela. Recebemos sabonete, escova de dente e creme dental. 
Toalha não! Os presos mais antigos e com bom comportamento fazem o 
serviço de cortar o cabelo, dar informes sobre o funcionamento, servir 
as refeições. Eram feitos três ‘conferes’ ao dia: gritavam no corredor 
(Confere!), ou tocavam na grade e você teria que se posicionar (erguido,
 mãos para trás e olhar para o chão) para eles contarem. Tinha pão e 
café pela manhã, almoço, jantar e um copo de uma bebida que parecia 
guaravita. A gente foi se acostumando com a rotina. No primeiro dia, não
 chegou água. Chegamos ao presídio quatro horas da tarde talvez, estando
 desde o dia 15 sem tomar banho – já era dia 16, anoitecendo. Falaram 
que abririam a água por dez minutos. Nesse dia abriram a água devia ser 
3h da manhã. Tinha muito mosquito nesse presídio. Já trabalhei na 
Amazônia, andei em várias aldeias, mas nunca vi coisa igual. Não dava 
para dormir. Eles deram um cobertor e a esperança era que o cobertor 
ajudasse. No meu caso, era velho e furado, então não adiantava porque os
 mosquitos entravam. Essa primeira noite foi sofrida. A gente meio que 
fica na expectativa de sair, mas já estava conversando e encarando a 
possibilidade de ficar mais tempo. As longas conversas entre o grupo que
 dividia a cela e a comunicação com outros presos políticos de outras 
celas serviram para nos mantermos num estado emocional equilibrado. Na 
segunda noite nesse presídio já havíamos aprendido a fazer incensos com 
papel higiênico, o que afastava os mosquitos, mas deixava a cela 
esfumaçada.</p>
<p><b>Vocês receberam a visita de alguém?</b></p>
<p><b>Paulo Bruno:</b> Primeiro, recebi visita dos advogados 
da Asfoc [Sindicato dos Trabalhadores da Fiocruz], Jorge da Hora e 
Fábio. Eles falaram da mobilização que era prevista para acontecer na 
Fiocruz e perguntaram sobre o meu estado. Receber notícias de fora do 
presídio causou um sentimento desconhecido. Não tinha a menor ideia do 
que poderia estar acontecendo do lado de fora. Era como se estivesse 
também com o pensamento aprisionado, apesar de consciente do que 
acontecia. Depois, na tarde do dia 17, chegaram os advogados do DDH e 
uma advogada ligada a uma ONG que trabalha com direitos humanos em 
presídios. O trabalho dela consiste em visitar todos os presídios do 
sistema do Rio de Janeiro e ver as condições dos presos. Acho que tinha 
alguém da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia [Legislativa]. Um 
pouco depois chegou o [deputado estadual] Marcelo Freixo. Fizemos duas 
reuniões num refeitório, onde tivemos a primeira oportunidade de ver o 
conjunto dos presos. Dos 19 que éramos quando chegamos à 37ª delegacia, 
ali já éramos 62. Todo mundo se cumprimentava, apertando a mão. 
Recebemos uma carta de pessoas de fora. Foi um momento de muita emoção e
 houve um agradecimento a elas. Aquilo foi muito bom porque a gente 
estava isolado. É outro universo: no presídio você não tem essa dimensão
 do que acontece do lado de fora. É outro mundo. Tínhamos consciência de
 que éramos presos políticos. Foi nosso primeiro contato coletivo com o 
mundo. O Marcelo Freixo me pareceu muito abatido, falando que a situação
 era grave, que ele nunca tinha presenciado uma situação como essa no 
Rio de Janeiro. Comentou que se falava em colocar as forças de segurança
 nacional na rua e que o Beltrame chegou a aventar isso. E a imprensa 
estava jogando pesado na nossa criminalização.</p>
<p><b>E a transferência para Bangu 9?</b></p>
<p><b>Paulo Bruno:</b> Na madrugada do dia 17 para o 18, umas 
3h30 da manhã, fomos acordados pelos caras batendo [na grade]. ‘Sai, 
sai. Deixa tudo!’, gritavam. E os meus óculos ficaram na cela. Foi o 
momento de maior tensão: escuro, aqueles caras enormes todos de preto, 
gritando muito. A sensação, pelo tratamento, era de que iriam executar a
 gente. Colocaram a gente num pátio externo, sempre gritando, 
humilhando, xingando. Eu não fui agredido, mas uma parte do grupo foi 
agredida com palmatória. Eles queriam que o pessoal dissesse por que o 
estuprador da Rocinha estava com a orelha cortada e o rosto queimado. 
Tinha três presos comuns com a gente, um deles era esse estuprador e 
alguém queimou o cara, só que ele não dividiu cela com a gente em nenhum
 momento. Mas os caras queriam que a gente dissesse quem foi. Isso eu 
ouvi do lado de fora de um portão grande de ferro. Fui colocado para 
fora com outro grupo, de cabeça baixa. Chovera e o chão estava molhado e
 todos nós estávamos descalços (desde são Gonçalo até a libertação 
permanecemos nesse estado).</p>
<p>Começamos a ouvir interrogatório e, em seguida, batidas e as pessoas 
gritando. Depois soubemos que era a palmatória de madeira. Isso durou 
alguns minutos. Fomos colocados num ônibus todo escuro. Dessa vez, 
sentamos quase todos. Um dos presos políticos estava por desmaiar e 
outros se esforçavam para mantê-lo acordado. Não era possível ver os 
rostos mesmo dos que estavam mais próximos de nós. Havia pouca 
circulação de ar. O Freixo havia dito que possivelmente iríamos para um 
presídio próximo para aguardar uma solução na justiça. Seria um presídio
 em São Gonçalo, que ele disse que era mais tranquilo, que estava 
disposto a aceitar o grupo, tinha espaço. Como eles tiraram a gente de 
madrugada, só podíamos imaginar para onde estávamos indo, porque estava 
escuro e, sem relógio nem nada, você perde a noção de espaço e tempo. Só
 sentíamos o balanço do ônibus, só sabíamos que estávamos em rua 
esburacada. Depois de algum tempo, pela batida e por alguma luz que 
entrava, nos demos conta de que estávamos cruzando a ponte Rio-Niterói. 
Mas, adiante alguém exclamou: ‘Deodoro!’. Pouco depois chegamos ao 
Complexo Penitenciário Gericinó, mais especificamente, no presídio Bangu
 9, e foi novamente aquela coisa de os caras nos tratarem mal. A fala e a
 atitude de um policial ficou impregnada na minha memória: ‘Só tem vocês
 dois de pretos aqui?’. Em seguida segurou a cabeça de um deles e bateu 
algumas vezes contra a parede. Teve outro preso político que pedia 
insistentemente para ir ao banheiro, que não aguentava mais. Estava 
muito próximo de mim. Gemia… Eu sussurrava para ele: respira fundo. Os 
caras apenas ironizavam e procuravam humilhá-lo. Mesmo depois de uns 
cinco pedidos desesperados, o rapaz não teve autorização e evacuou nas 
calças. Depois disso ordenaram que lavassem o chão.</p>
<p>Fomos para a cela. Quando a gente passa pela triagem, perguntam qual a
 nossa facção e são apresentadas as seguintes opções num formulário: 
Comando Vermelho, Amigo dos Amigos, Povo de Israel, milícia ou neutro. 
Nos identificamos como neutros e ficamos numa galeria juntos com o Povo 
de Israel, que são os presos que se converteram. O melhor de Bangu é que
 tinha uma torneira com água 24 horas; no outro não tivemos nem água 
para beber até a primeira abertura do chuveiro; para banho, muito menos.
 Se quiséssemos beber aquela água imunda, pelo menos havia água, não 
iríamos morrer de sede. Mas a cela era mais estreita, escura, úmida e 
quase não tinha espaço para circular. Parece que circulou a informação 
de que haveria visita do pessoal dos direitos humanos. Aí deram um jeito
 de transferir a gente para outra cela no final do corredor, onde 
entrava luz no final da tarde, tinha sol, foi um alento. Além de um 
pardal que entrava e saía da cela através da grade no alto da parede (no
 final da tarde ele se alojou num buraco no teto da cela). Dessa cela 
ouvíamos cantos de outros pássaros. Recebemos somente um lençol branco e
 limpo que, pelo fato de ser bem largo, dava para cobrir a espuma sobre a
 qual deitava e, ao mesmo tempo, servir de coberta. As poucas horas que 
restavam da madrugada permitiram um breve cochilo. No dia 18, acordei 
com a sensação de que sairia: lavei minha camiseta no banho com caneco e
 sabonete. Eu pretendia sair limpinho do presídio, estava imundo. Nessa 
passagem por Bangu, os presos receberam a gente bem. Eles falavam que a 
gente representava os parentes deles do lado de fora, que a luta era por
 eles também. Foram acolhedores e respeitosos conosco.</p>
<p><b>Quando você soube que seria solto?</b></p>
<p><b>Paulo Bruno:</b> Durante reunião com o pessoal dos 
direitos humanos, que aconteceu justamente no corredor, diante da cela 
onde eu e mais cinco presos estávamos, deram a informação de que tinha 
saído um habeas corpus. E que a partir desse habeas corpus, em meu nome,
 a juíza estendeu o benefício para os outros. Dali, voltamos para a 
cela. O habeas corpus só chegou ao presídio no final da tarde. Nesse 
meio tempo, chegaram advogadas do DDH, a Luiza Maranhão e mais duas que 
conheciam pessoas comuns a mim e a outros dois presos. A gente foi 
conversar com as advogadas e, na volta, foi interessante porque um preso
 parou a gente para conversar no corredor, onde havia outros dois presos
 soltos. Esse preso falou: ‘Pára que aqui é tranquilo, pode parar’. 
Parei. ‘Aperta minha mão aí’. Apertei. Tinha outros três na grade 
festejando a gente e que também queriam apertar as nossas mãos. Eu saí, o
 Deo [professor da rede municipal do Rio, companheiro de cela] veio mais
 atrás, parou um pouco e conversou com eles. Eles falaram: ‘Ah, você é 
professor?A gente é aluno do crime, a gente veio agradecer vocês’. 
Surpreendeu a gente: por incrível que pareça, tivemos a solidariedade de
 quem – os policiais falaram – iria nos maltratar. Enfim, foi o ultimo 
dia lá, saímos à noite. Durante a oração que é feita sempre às 18h, 
segundo comunicara o preso que servia as refeições, momento em que os 
presos leem trechos da Bíblia, discursam, cantam — as falas e canções 
pareciam ter sido construídas no próprio espaço carcerário, pois falavam
 muito da situação dos presos —, um dos carcereiros fez uma chamada no 
início do corredor, o que interrompeu a oração e criou um estado de 
suspense. Chamaram os nomes dos nove primeiros libertos. A nossa saída 
pela galeria foi algo comovente! Braços eram estendidos para fora das 
celas para nos cumprimentar. Olhos brilhantes nos acompanhavam enquanto 
aguardavam cumprimentos. Ouvia-se um grito: Liberdade! Esperamos quase 
duas horas fora da cela. Depois saberíamos que foi feito de tudo para 
que ficássemos mais tempo presos, apesar de os advogados da Asfoc já 
terem obtido dois habeas corpus antes daquele que definiu a saída do 
nosso grupo, detido na 37ª DP.</p>
<p><b>Dá para descrever os momentos de pavor?</b></p>
<p><b>Paulo Bruno:</b> Tem um pavor que é para disciplinar o 
corpo e, no nosso caso, intimidar. A todo momento falavam que, como era a
 primeira vez, a gente estava sendo tratado como homem, e que da próxima
 seríamos tratados de forma diferente. Falavam para que tomássemos 
cuidado para não voltar para lá. E funciona: nessa noite mesmo tive um 
sonho com um monte de policial de fuzil atirando nas pessoas 
aleatoriamente. Isso num nível psicológico. [Mas teve] o físico também, 
eles bateram em algumas pessoas. Imagino que elas estejam mais frágeis 
do que eu. Tem essa coisa de incutir o medo. É uma espécie de pedagogia 
do terror, de você ser educado para não se manifestar, não questionar. 
Tanto que os últimos atos estiveram meio vazios, as pessoas estão 
recuando porque foi feita uma coisa exemplar. Isso me faz pensar que 
essa estrutura de terror não se extingue com mudança de governo, 
eleições, ela está muito bem estruturada como sistema de tortura… 
Aparentemente é um sistema legal, no entanto, é uma estrutura em que 
você entra e é engolido. Quando vem pressão de fora, é diferente. Fora 
isso, é o sistema de terror. É impossível ressocializar (como sugere o 
calção que recebemos, com a sigla SEAP e a palavra ressocialização) em 
tais condições.</p>
<p><b>Você diz que existe uma pedagogia do terror que funciona. Como é voltar a uma manifestação agora? </b></p>
<p><b>Paulo Bruno:</b> Eu soube de pessoas que não pretendem 
voltar a manifestações por enquanto. Para mim foi difícil. Nos arredores
 da Cinelândia, uns dias depois da minha libertação, quando vi o carro e
 um micro-ônibus da polícia, foi uma sensação muito estranha. Eu fui 
para casa. A sensação é de que iria repetir tudo que eu falei 
anteriormente, uma coisa incontrolável, não de ser preso, mas de sentir 
tudo o que eu senti, de escuridão, de ser puxado para o escuro. De ter 
sido sequestrado. Mudou também o meu olhar com relação aos policiais. Eu
 tinha a expectativa de que pudessem se portar como trabalhadores, 
servidores públicos. Agora eu até entendo a situação de precariedade, 
que os caras têm que fazer isso para sobreviver, a questão da hierarquia
 militar etc., mas os possíveis resquícios de solidariedade diminuíram 
muito. Com a forma como muitos deles tratam as pessoas, não dá para 
perceber qualquer sinal de compaixão.</p>
<p><b>Qual a sua avaliação com relação ao sistema judiciário e 
carcerário brasileiro, considerando a situação daqueles que passaram por
 essa experiência?</b></p>
<p><b>Paulo Bruno:</b> Se você está na mão do Estado, está 
refém do Estado. Estamos em situação de fragilidade. Hoje, os grupos 
mais conservadores estão unidos em torno de um projeto que, a pretexto 
de viabilizar a Copa do Mundo e as Olimpíadas, visa frear manifestações 
para assegurar o uso da máquina e dos recursos públicos para garantir os
 grandes investimentos, o lucro, a expropriação de terras. Não temos 
certeza se, quando formos a julgamento, podemos ganhar. Essa sociedade 
democrática que a gente vive é para quem não está dentro desse sistema 
prisional, só serve para quem nunca passou por lá. Depois que você cai 
ali, vê que é tudo muito frágil. No escravismo brasileiro, até o século 
19, os escravos que cometiam os ‘crimes’ de fuga das fazendas ou 
atentado ao ‘seu senhor’, por exemplo, eram marcados/queimados com a 
letra ‘F’. Algo aparentemente superado historicamente se repete com a 
‘marca’ que a ‘passagem’ pelo ‘sistema’ deixa em nós. Qualquer um pode 
ser pinçado, cair ali e pronto! O objetivo dos grupos que controlam as 
estruturas de poder do Estado é ter você na mão e prorrogar esse 
processo por anos. Qualquer um de nós, se voltar, com certeza, terá 
outro tratamento. Eles nos avisaram! Há os que ainda acreditam na 
possibilidade da luta, garantida nos ‘direitos constituídos’. Penso que 
não tem mais direito constituído… Se por um lado a solidariedade, 
presente entre companheiros da Fiocruz e de Manguinhos, em especial, foi
 extremamente importante para mim, por outro, é surpreendente o silêncio
 por parte de algumas entidades de classe e parte do meio acadêmico com 
relação a esse estado de coisas, onde cresce a opressão contra a 
expressão popular nas ruas, o que coloca o Estado Democrático de Direito
 como privilégio para poucas pessoas. Também é desprezível o 
reacionarismo expresso em artigos e ações de intelectuais que, outrora, 
eram consideradas referências importantes para a crítica ao 
autoritarismo.</p>
<p><b>Ainda tem gente presa…</b></p>
<p><b>Paulo Bruno:</b> Tem o Jair e o Rafael, um morador de 
rua. Ambos negros. Segundo as notícias que circulam na internet, o 
Rafael foi preso num prédio abandonado na Lapa, onde ele estava morando.
 Foi no dia 20 de junho, aquele em que a polícia saiu jogando bomba de 
gás para todo lado. Ele estava caminhando para o lugar onde iria dormir 
com uma garrafa plástica de detergente e uma de água sanitária, e 
alegaram que ele estava com material inflamável, com líquidos para 
produzir incêndio. Foi preso. O cara é morador de rua, está há cinco 
meses preso, e esteve, durante algum tempo, sem defesa. Já o Jair parece
 que foi preso por desacato, e, pelo fato de ter passagem anterior, 
estão dificultando o caso dele. Na reunião com as advogadas, no Bangu 9,
 foi falado que estava sendo difícil conseguir o habeas corpus para ele.</p>
<p><b>Você falou que estávamos muito fragilizados e houve uma 
grande união de forças para acabar com as manifestações. Mas mesmo 
depois dessa experiência traumática, você continua indo. Por quê?</b></p>
<p><b>Paulo Bruno:</b> O que impulsiona a gente a participar é
 a solidariedade. Aqueles que decidiram o que fazer conosco não têm 
noção de que, dentro da cadeia, possibilitaram a construção de uma 
solidariedade entre pessoas que nem se conheciam. Criaram uma liga entre
 essas pessoas, conheci pessoas de caráter muito firme. A grande maioria
 lá ficou muito solidária. Eu vejo que toda essa experiência ruim, de 
aprisionamento, de repressão, está consolidando um grupo de muitas 
pessoas com discernimento sobre os fatos e sobre as injustiças presentes
 em nossa sociedade. Tive oportunidade de rever pessoas que dividiram 
cela comigo num ato recente de solidariedade aos presos e ex-presos. 
Algo inexplicável, a repressão produzira laços de amizade e confiança.</p>
<p>Eu volto para as manifestações com a vontade de filmar, mas não sei 
se vou continuar filmando por enquanto, apesar de querer dar 
continuidade aos registros históricos e etnográficos que iniciei em 
junho. Vivemos um processo histórico muito vigoroso e complexo sobre o 
qual precisamos refletir muito, e para isso é necessário que ele seja 
registrado a partir de olhares diversos. Sou apenas um deles. Também não
 dá para abdicar de questionar o sistema da forma como está colocado. 
Afinal de contas, é difícil pensar na construção de um conhecimento 
científico neutro, principalmente, se levarmos a sério o que sugeria 
Paulo Freire ao dizer que toda neutralidade afirmada corresponderia a 
uma opção escondida.</p>
<p>Assim, a passagem pelo sistema prisional e carcerário não poderia 
ofuscar o nosso olhar sobre a sua dinâmica, sobre a forma como atuam os 
servidores públicos que os mantêm ativos e, sobretudo, sobre as 
condições nas quais se encontra seu ‘público-alvo’, formado por pobres, 
negros e mestiços em sua grande maioria. Nessa perspectiva, é difícil 
observar sem críticas um serviço público, financiado com recursos 
públicos, utilizado para punir parte desse público (presos, seus 
parentes e amigos). A crítica a esse tipo de serviço não pode ser 
colocada sem a devida correlação com toda a estrutura de governo do qual
 faz parte. Na atual conjuntura, essa crítica pode resultar na marcação 
de um ‘F’ nas nossas costas ou no nosso encarceramento.</p>
<p><i>* Entrevista concedida a André Antunes e Cátia Guimarães – Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz)</i></p>
Confira, no link acima, um vídeo especial das ações da ENSP/Fiocruz sobre a 
mobilização ‘Lutar não é crime! Somos todos Paulo Bruno’, promovida em 
repúdio a prisão do pesquisador da Escola, Paulo Roberto de Abreu Bruno.<br clear="all"><br>-- <br><div dir="ltr"><div>carlos palombini<br>professor de musicologia ufmg<br><a href="http://proibidao.org" target="_blank">proibidao.org</a><br>
</div><a href="http://ufmg.academia.edu/CarlosPalombini" target="_blank">ufmg.academia.edu/CarlosPalombini</a><br><a href="http://scholar.google.com.br/citations?user=YLmXN7AAAAAJ" target="_blank"><span style="display:block">scholar.google.com.br/citations?user=YLmXN7AAAAA</span></a><br>
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