<div dir="ltr"><h2>O rolezinho, a novidade deste Natal, mostra que, quando a juventude
pobre e negra das periferias de São Paulo ocupa os shoppings anunciando
que quer fazer parte da festa do consumo, a resposta é a de sempre:
criminalização. Mas o que estes jovens estão, de fato, “roubando” da
classe média brasileira?</h2><span class="">
<span class="">
<a href="http://brasil.elpais.com/autor/eliane_brum/a/" rel="author" title="Ver todas as notícias de Eliane Brum">Eliane Brum</a></span>
<a href="http://brasil.elpais.com/tag/fecha/20131223" class="" title="Ver todas as notícias de esta fecha">23 DEZ 2013 - 09:51 <abbr title="Brasilia Summer Time">BRST</abbr></a></span><br clear="all"><br><a href="http://brasil.elpais.com/brasil/2013/12/23/opinion/1387799473_348730.html">http://brasil.elpais.com/brasil/2013/12/23/opinion/1387799473_348730.html</a><br>
<p>O Natal de 2013 ficará marcado como aquele em que o Brasil tratou
garotos pobres, a maioria deles negros, como bandidos, por terem ousado
se divertir nos shoppings onde a classe média faz as compras de fim de
ano. Pelas redes sociais, centenas, às vezes milhares de jovens,
combinavam o que chamam de “rolezinho”, em shopping próximos de suas
comunidades, para “zoar, dar uns beijos, rolar umas paqueras” ou
“tumultuar, pegar geral, se divertir, sem roubos”. No sábado, 14,
dezenas entraram no Shopping Internacional de Guarulhos, cantando
refrões de funk da ostentação. Não roubaram não destruíram, não portavam
drogas, mas, mesmo assim, 23 deles foram levados até a delegacia, sem
que nada justificasse a detenção. Neste domingo, 22, no Shopping
Interlagos, garotos foram revistados na chegada por um forte esquema
policial: segundo a imprensa, uma base móvel e quatro camburões para a
revista, outras quatro unidades da Polícia Militar, uma do GOE (Grupo de
Operações Especiais) e cinco carros de segurança particular para montar
guarda. Vários jovens foram “convidados” a se retirar do prédio, por
exibirem uma aparência de funkeiros, como dois irmãos que empurravam o
pai, amputado, numa cadeira de rodas. De novo, nenhum furto foi
registrado. No sábado, 21, a polícia, chamada pela administração do
Shopping Campo Limpo, não constatou nenhum “tumulto”, mas viaturas da
Força Tática e motos da Rocam (Ronda Ostensiva com Apoio de
Motocicletas) permaneceram no estacionamento para inibir o rolezinho e
policiais entraram no shopping com armas de balas de borracha e bombas
de gás.</p>
<p>Se não há crime, por que a juventude pobre e negra das periferias da Grande São Paulo está sendo criminalizada?</p>
<p>Primeiro, por causa do passo para dentro. Os shoppings foram
construídos para mantê-los do lado de fora e, de repente, eles ousaram
superar a margem e entrar. E reivindicando algo transgressor para jovens
negros e pobres, no imaginário nacional: divertir-se fora dos limites
do gueto. E desejar objetos de consumo. Não geladeiras e TVs de tela
plana, símbolos da chamada classe C ou “nova classe média”, parcela da
população que ascendeu com a ampliação de renda no governo Lula, mas
marcas de luxo, as grandes grifes internacionais, aqueles que se
pretendem exclusivas para uma elite, em geral branca.</p>
<p>Antes, em 7 de dezembro, cerca de 6 mil jovens haviam ocupado o
estacionamento do Shopping Metrô Itaquera, e também foram reprimidos.
Vários rolezinhos foram marcados pelas redes sociais em diferentes
shoppings da região metropolitana de São Paulo até o final de janeiro,
mas, com medo da repressão, muitos têm sido cancelados. Seus
organizadores, jovens que trabalham em serviços como o de office-boy e
ajudante geral, temem perder o emprego ao serem detidos pela polícia por
estarem onde supostamente não deveriam estar – numa lei não escrita,
mas sempre cumprida no Brasil. Seguranças dos shoppings foram orientados
a monitorar qualquer jovem “suspeito” que esteja diante de uma vitrine,
mesmo que sozinho, desejando óculos da Oakley ou tênis Mizuno, dois dos
ícones dos funkeiros da ostentação. Às vésperas do Natal, o Brasil
mostra a face deformada do seu racismo. E precisa encará-la, porque
racismo, sim, é crime.</p>
<p>“Eita porra, que cheiro de maconha” foi o refrão cantado pelos jovens
ao entrarem no Shopping Internacional de Guarulhos. O funk é de MC
Daleste, que afirma no nome artístico a região onde nasceu e se criou, a
zona leste, a mais pobre de São Paulo, aquela que todo o verão naufraga
com as chuvas, por obras que os sucessivos governos sempre adiam,
esmagando sonhos, soterrando casas, matando adultos e crianças. Daleste
morreu assassinado em julho com um tiro no peito durante um show em
Campinas – e assassinato é a primeira causa de morte dos jovens negros e
pobres no Brasil, como os que ocuparam o Shopping Internacional de
Guarulhos.</p>
<p>A polícia reprimiu, os lojistas fecharam as lojas, a clientela
correu. Uma das frequentadores do shopping disse a frase-símbolo à
repórter Laura Capriglione, na Folha de S. Paulo: “Tem de proibir este
tipo de maloqueiro de entrar num lugar como este”. Nos dias que se
seguiram, em diferentes sites de imprensa, leitores assim definiram os
“rolezeiros” (veja entrevista abaixo): “maloqueiros”, “bandidos”,
“prostitutas” e “negros”. Negros emerge aqui como palavra de ofensa.</p><p>O funk da ostentação, surgido na Baixada Santista e Região
Metropolitana de São Paulo nos últimos anos, evoca o consumo, o luxo, o
dinheiro e o prazer que tudo isso dá. Em seus clipes, os MCs aparecem
com correntes e anéis de ouro, vestidos com roupas de grife, em carros
caros, cercado por mulheres com muita bunda e pouca roupa. (<a href="http://www.youtube.com/watch?v=5V3ZK6jAuNI" target="_blank">Para conhecer o funk da ostentação, assista ao documentário</a><span style="padding:0px;margin:0px"> <a style="border:medium none;text-decoration:none;padding:0px" title="Get a direct link" target="_blank" href="http://savefrom.net/?url=http%3A%2F%2Fwww.youtube.com%2Fwatch%3Fv%3D5V3ZK6jAuNI&utm_source=firefox&utm_medium=extensions&utm_campaign=link_modifier"><img style="border: medium none; width: auto; height: auto; vertical-align: middle;" title="Get a direct link" alt="SaveFrom.net" src="chrome://savefrom/content/button.gif" border="0"></a></span> <strong>aqui</strong>).
Diferentemente do núcleo duro do hip hop paulista dos ano 80 e 90, que
negava o sistema, e também do movimento de literatura periférica e
marginal que, no início dos anos 2000, defendia que, se é para consumir,
que se compre as marcas produzidas pela periferia, para a periferia, o
funk da ostentação coloca os jovens, ainda que para a maioria só pelo
imaginário, em cenários até então reservados para a juventude branca das
classes média e alta. Esta, talvez, seja a sua transgressão. Em seus
clipes, os MCs têm vida de rico, com todos os signos dos ricos. Graças
ao sucesso de seu funk nas comunidades, muitos MCs enriqueceram de fato e
tiveram acesso ao mundo que celebravam.</p>
<p>Esta exaltação do luxo e do consumo, interpretada como adesão ao
sistema, tornou o funk da ostentação desconfortável para uma parcela dos
intelectuais brasileiros e mesmo para parte das lideranças culturais
das periferias de São Paulo. Agora, os rolezinhos – e a repressão que se
seguiu a eles – deram a esta vertente do funk uma marca de insurgência,
celebrada nos últimos dias por vozes da esquerda. Ao ocupar os
shoppings, a juventude pobre e negra das periferias não estava apenas se
apropriando dos valores simbólicos, como já fazia pelas letras do funk
da ostentação, mas também dos espaços físicos, o que marca uma
diferença. E, para alguns setores da sociedade, adiciona um conteúdo
perigoso àquele que já foi chamado de “funk do bem”.</p>
<p>A resposta violenta da administração dos shoppings, das autoridades
públicas, da clientela e de parte da mídia demonstra que esses atores
decodificaram a entrada da juventude das periferias nos shoppings como
uma violência. Mas a violência era justamente o fato de não estarem lá
para roubar, o único lugar em que se acostumaram a enxergar jovens
negros e pobres. Então, como encaixá-los, em que lugar colocá-los?
Preferiram concluir que havia a intenção de furtar e destruir, o que era
mais fácil de aceitar do que admitir que apenas queriam se divertir nos
mesmos lugares da classe média, desejando os mesmo objetos de consumo
que ela. Levaram uma parte dos rolezeiros para a delegacia. Ainda que
tivessem de soltá-los logo depois, porque nada de fato havia para
mantê-los ali, o ato já estigmatizou-os e assinalará suas vidas, como
historicamente se fez com os negros e pobres no Brasil.</p>
<p>Jefferson Luís, 20 anos, organizador do rolezinho do Shopping
Internacional de Guarulhos, foi detido, é alvo de inquérito policial,
sua mãe chorou e ele acabou cancelando outro rolezinho já marcado por
medo de ser ainda mais massacrado. Ajudante geral de uma empresa,
economizou um mês de salário para comprar a corrente dourada que ostenta
no pescoço. Jefferson disse ao jornal O Globo: “Não seria um protesto,
seria uma resposta à opressão. Não dá para ficar em casa trancado”.</p>
<p>Por esta subversão, ele não será perdoado. Os jovens negros e pobres
das periferias de São Paulo, em vez de se contentarem em trabalhar na
construção civil e em serviços subalternos das empresas de segunda a
sexta, e ficar trancados em casas sem saneamento no fim de semana,
querem também se divertir. Zoar, como dizem. A classe média até aceita
que queiram pão, que queiram geladeira, sente-se mais incomodada quando
lotam os aeroportos, mas se divertir – e nos shoppings? Mais uma frase
de Jefferson Luiz: “Se eu tivesse um quarto só pra mim hoje já seria uma
ostentação”. Ele divide um cômodo na periferia de Guarulhos com oito
pessoas.</p>
<p>Neste Natal, os funkeiros da ostentação parecem ter virado os novos
“vândalos”, como são chamados todos os manifestantes que, nos protestos,
não se comportam dentro da etiqueta estabelecida pelas autoridades
instituídas e por parte da mídia. Nas primeiras notícias da imprensa, o
rolezinho do Shopping Internacional de Guarulhos foi tachado de
“arrastão”. Mas não havia arrastão nenhum. O antropólogo Alexandre
Barbosa Pereira faz uma provocação precisa: “Se fosse um grupo numeroso
de jovens brancos de classe média, como aconteceu várias vezes, seria
interpretado como um <em>flash mob</em>?”.</p><p>Por que os administradores dos shoppings, polícia, parte da mídia e
clientela só conseguem enquadrar um grupo de jovens negros e pobres
dentro de um shopping como “arrastão”? Há várias respostas possíveis.
Pereira propõe uma bastante aguda: “Será que a classe média entende que
os jovens estão ‘roubando’ o direito exclusivo de eles consumirem?”.
Seria este o “roubo” imperdoável, que colocou as forças de repressão na
porta dos shoppings, para impedir a entrada de garotos desarmados que
queriam zoar, dar uns beijos e cobiçar seus objetos de desejo nas
vitrines?</p>
<p>Para nos ajudar a pensar sobre os significados do rolezinho e do funk
da ostentação, entrevisto Alexandre Barbosa Pereira nesta coluna.
Professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), ele dedica-se a
pesquisar as manifestações culturais das periferias paulistas. Em seu
mestrado, percorreu o mundo da pichação. No doutorado, mergulhou nas
escolas públicas para compreender o que é “zoar”. Desde 2012, pesquisa o
funk da ostentação. Mesmo que os rolezinhos, pela força da repressão,
se encerrem neste Natal, há muito que precisamos compreender sobre o que
dizem seus protagonistas – e sobre o que a reação violenta contra eles
diz da sociedade brasileira</p>
<p>- <strong>O rolezinho aparece ligado ao funk da ostentação. Em que medida há, de fato, essa ligação?</strong></p>
<p><strong>Alexandre Barbosa Pereira –</strong> O funk ostentação é uma
releitura paulista do funk carioca, feita a partir da Baixada Santista e
da Região Metropolitana de São Paulo, na qual as letras passam a ter a
seguinte temática: dinheiro, grifes, carros, bebidas e mulheres. Não se
fala mais diretamente de crime, drogas ou sexo. Os funkeiros dessa
vertente começaram a produzir videoclipes inspirados na estética dos
videocliples do gangsta rap estadunidense. Mas o mais curioso desse
movimento é a virada que os jovens fazem ao mudar a pauta que, até
então, era principalmente a criminalidade para o consumo. As músicas
deixam de falar de crime para falar de produtos que eles querem
consumir. Assim, ao invés de cantarem: “Rouba moto, rouba carro, bandido
não anda à pé” (Bonde Sinistro), os funkeiros da vertente ostentação
cantam: “Vida é ter um Hyundai e um hornet, dez mil para gastar, rolex,
juliet. Melhores kits, vários investimentos. Ah como é bom ser o top do
momento” (MC Danado). Deste modo, os MCs começaram a ter mais espaços
para cantar em casas noturnas e passaram a produzir videoclipes cada vez
mais elaborados, com mais de 20 milhões de acessos no YouTube, o que
levou a um sucesso às margens da mídia tradicional. Alguns MCs chegaram a
alcançar grande repercussão entre um segmento do público jovem, sem
nunca ter aparecido na televisão. Vi meninas chorando por MCs em bailes,
mesmo antes de o funk ostentação alcançar o destaque que conseguiu na
grande mídia. Surgiram empresas especializadas na produção de clipes no
estilo ostentação, como a Kondzilla e a Funk TV, claramente inspirados
no gangsta rap, em que os jovens aparecem em carrões e motos,
exibindo-se com roupas, dinheiro e mulheres. Uma reflexão interessante a
se fazer é como a mídia tradicional, que antes execrava o chamado funk
proibidão, que falava de crime, drogas e sexo abertamente, agora começa a
elogiar o funk ostentação, denominando-o até como “funk do bem” e
ressaltando a trajetória econômica e social ascendente dos MCs.</p>
<p><strong>Pergunta.</strong> Fazendo um parêntese aqui, antes de chegar
ao rolezinho, qual é o caminho para um jovem pobre ter acesso ao
consumo de luxo, segundo o olhar do funk da ostentação? Esta virada que
você mencionou...</p>
<p><strong>Resposta.</strong> Primeiro que esse bem de luxo não é tão de
luxo assim, afinal uma garrafa de uísque a 60 ou 80 Reais não é nenhum
absurdo. É sempre possível comprar uma réplica daqueles óculos escuros
que custam mais de mil reais. Nas casas noturnas de funk que observei,
este era o preço. Pensemos num grupo de pelo menos quatro amigos
dividindo o valor da compra. Não sai tão caro brincar de ostentar.
Agora, tem os carros. Estes sim estão fora do alcance da maioria desses
jovens. Mas aí há uma explicação interessante, que Montanha, um produtor
e diretor de videoclipes da Funk TV, em Cidade Tiradentes, sabiamente
me deu. Ele me disse que as novelas já vendiam uma vida de luxo há muito
tempo, só que nelas os ricos eram os que pertenciam ao mundo de luxo.
Nos videoclipes de funk ostentação, são os pobres que aparecem como um
mundo de “riqueza” ou de “luxo”, com carros, mansões, roupas de marcas
mais caras. Os jovens agora poderiam, segundo afirmou Montanha, ver-se
como parte de um mundo de prestígio, daí a grande identificação. O crime
pode ser um caminho para acessar esse mundo de luxo ou o que esses
jovens entendem por um mundo de luxo, mas não é único. Esta é a lição
que muitos MCs de funk têm tentando passar em suas falas na grande
mídia. Eles de certa forma mostram um outro caminho, que, aliás, sempre
esteve presente para esses jovens da periferia: tornar-se famoso pela
música ou pelo futebol. Aliás, esses são caminhos que aparecem como os
mais possíveis para os jovens negros e pobres das periferias do país
imaginarem um futuro de sucesso. Num mundo em que há uma forte divisão
entre trabalho intelectual e manual, com a extrema valorização do
primeiro, o uso do corpo em formas lúdicas como meio de ganhar dinheiro
mostra-se como opção para uma transformação da vida. “Crime, futebol,
música, caralho, eu também não consegui fugir disso aí”, esse é o Negro
Drama cantado pelos Racionais MC’s. Os MCs de funk ostentação estão
tentando dizer que é possível construir uma vida de sucesso pela música.
E o que era ficção, os videoclipes com carros importados emprestados ou
alugados, com dinheiro cenográfico jogado para o ar, começa a tornar-se
realidade. Muitos deles começam a ganhar uma quantidade razoável de
dinheiro com os shows. Acho que a ideia da imaginação como uma força
criativa apresenta-se fortemente no funk ostentação.</p><p>Por outro lado, é preciso destacar que masculinidades pautadas pelo
desejo de possuir um automóvel ou uma motocicleta não foram construídas
pelo funk ostentação. Já existia há um tempo. Para os meninos da
periferia, possuir um bom carro, bonito e potente, é uma das metas
principais de vida. A posse do carro é, no imaginário desses jovens, mas
também da população em geral, um indicativo de sucesso econômico e
social, garantindo, consequentemente, sucesso com as mulheres.</p>
<p>Neste caldo cultural, o consumo é cada vez mais exaltado como espaço
de afirmação e de reconhecimento para os jovens. É, inclusive, bastante
complexa a forma como se dá a relação entre criminalidade e consumo no
funk. Na virada que produziram, parece que há o recado de que essas duas
ações sociais podem constituir dois lados de uma mesma moeda. Eles não
deixam de falar do crime. Acabam citando-o indiretamente, como nas
músicas do MC Rodofilho, nas quais ele celebra: “Ai meu deus, como é bom
ser vida loka!”. O importante é entender como o crime e o consumo são
pautas constantes nas relações de sociabilidade dos jovens da periferia.
Os mais pobres também querem que ipads, iphones e automóveis potentes
façam parte de seu mundo social. Ainda preciso observar e refletir mais
sobre isso, mas acho que tanto no caso do crime, como no do consumo
temos que atentar mais para o modo como se dão as relações entre pessoas
e coisas. Fico pensando que a busca de realização apenas pelo consumo
envolve sentimentos e posturas extremas de um egoísmo hedonista e de um
profundo desprezo pelos outros humanos. As mercadorias, ou as coisas
almejadas, de certa forma têm conformado as subjetividades
contemporâneas. E nessas novas subjetividades, pautadas pelo instantâneo
e o instável, parece não haver muito espaço para a solidariedade. Há
uma nova tendência na discussão antropológica afirmando que não podemos
entender as coisas apenas como representação ou resultado do social.
Precisamos pensar também em como as coisas fazem as pessoas e mesmo o
social, como as coisas, ou as mercadorias mais desejadas hoje, motivam
tanto um consumismo desenfreado, irracional e egoísta, quanto o ingresso
de jovens na criminalidade. Sempre fico espantado quando vejo as
imagens, em outros países, das pessoas correndo desesperadas para
comprar um novo lançamento de smartphone, videogame ou tablet... Mas não
só isso, tais coisas também motivam e determinam formas de estar,
pensar, relacionar-se e sentir no mundo contemporâneo.</p>
<p>Penso muito nisso quando parte da classe média critica o consumo
desses jovens, dizendo que apenas eles – da classe média que,
supostamente, pagaria os impostos – têm direito a consumir, ou se
relacionar com certos produtos. Será que, desse modo, a classe média
entende que os jovens estão roubando o direito exclusivo de eles
consumirem ou de se relacionarem com esses objetos de prestígio? Direito
que, por sua vez, vinha sendo roubado desses jovens pobres há muito
tempo?</p>
<p>Essa crítica pode vir inclusive de certa classe média mais
intelectualizada e mesmo com ideias políticas progressistas, mas que
acha que sabe o que é melhor para os pobres. Aí fazem a crítica, a
partir dos seus ipads e iphones, ao que entendem como um consumo
irracional dos mais pobres, que deveriam poupar ao invés de gastar com
produtos que não seriam para o nível econômico deles. Enfim, tem aí um
jogo de perde e ganha e também de busca de satisfações individuais que
envolve o roubo do direito de alguns ao consumo, que é preciso
aprofundar para entendermos melhor essas dinâmicas contemporâneas. Todos
têm o direito a consumir o que quiserem hoje? E seria viável, hoje,
todos consumirem em um alto padrão? Que implicações ambientais teríamos?
E se não é sustentável ou viável que todos consumam em tamanha
intensidade, por que incentivamos tal consumismo? Com isso, o que quero
dizer é que não se pode pensar a relação entre crime e consumo apenas
entre os pobres, mas creio que precisamos também olhar para as classes
médias e altas e para os crimes que, historicamente, têm sido cometidos
contra os mais pobres e o meio ambiente para proteger o consumo dos
ricos.</p>
<p><strong>P.</strong> É neste ponto que os rolezinhos aparecem e criam uma tensão das mais reveladoras neste Natal?</p>
<p><strong>R.</strong> Os rolezinhos nos shoppings estão ligados
diretamente a esse contexto. Não sei dizer como surgiram efetivamente,
mas me parece que despontaram por essas novas associações que as redes
sociais permitem fazer, de forma que uma brincadeira possa virar algo
sério. De repente, uma convocatória feita na internet pode levar
centenas de jovens a se encontrarem num shopping, local onde podem ter
acesso a esses bens cantados nas músicas, ainda que apenas por acesso
visual. Agora, o que é importante ressaltar é que não foram os
rolezinhos nem o funk ostentação que criaram essa relação de fascinação
com consumo. Esta já existia há muito tempo. Os Racionais, há mais de
dez anos, já cantavam sobre isso, com afirmações como: “Você disse que
era bom e a favela ouviu, lá também tem uísque, red bull, tênis nike e
fuzil” ou “Fartura alegra o sofredor”</p><p><strong>P.</strong> Algumas análises relacionam os rolezinhos a uma
ação afirmativa da juventude negra e pobre, a uma denúncia da opressão e
a uma reivindicação de participação, neste caso no mundo do consumo.
Como você analisaria este fenômeno tão novo?</p>
<p><strong>R.</strong> Não me arriscaria a dizer que há um movimento
político muito claro. Pode indiretamente constituir-se como uma ação
afirmativa da juventude negra e pobre. Talvez a tensão que se criou com a
criminalização desses jovens, durante os rolezinhos, possa levar a
algum tipo de reflexão e ação política maior, mas é difícil prever. Em
um livro intitulado <em>Cidadania Insurgente</em>, (o antropólogo
americano) James Holston analisa o surgimento das periferias urbanas no
Brasil, particularmente em São Paulo, apontando a discriminação contra
certas espécies de cidadãos no Brasil. Esse autor mostra como,
historicamente, as formulações de cidadania elaboradas pelos mais pobres
se deram a partir de sua ocupação dos bairros nas periferias das
grandes cidades. Noções e práticas próprias de cidadania que se
produziram, ao mesmo tempo, por meio das experiências de tornar-se
proprietário, de participar de movimentos sociais por melhorias dos
bairros e de ingressar no mercado consumidor. Primeiro se ocupou os
bairros, mesmo sem estrutura mínima. Depois, ocorreram as reivindicações
pela legalização dos terrenos ocupados. E, enfim, vieram as lutas pela
chegada da energia elétrica, saneamento básico e asfalto. Acho sempre
muito interessante, em conversas com lideranças antigas dos bairros
periféricos de São Paulo, observar que elas indicam a chegada do asfalto
como o grande marco de transformação do bairro e a integração deste ao
espaço urbano.</p>
<p>Encaro, portanto, ações como estas, dos rolezinhos, do ponto de vista
dessa “cidadania insurgente”, referindo-se a associações de cidadãos
que reivindicam um espaço para si e, assim, se contrapõem ao grande
discurso hegemônico ou, se não se dissociam do discurso hegemônico, ao
menos provocam ruídos nele. Trata-se de uma reivindicação por cidadania,
participação política e direitos que, historicamente, foi feita na
marra, pelos mais pobres, muitas vezes nas costuras entre o legal e o
ilegal, e que começou com a própria ocupação dos bairros na periferia da
cidade de São Paulo, como forma de habitar e sobreviver no mundo
urbano. Essa cidadania não necessariamente se apresenta como
resistência, mas pode também querer, em muitos casos, associar-se ao
hegemônico, produzindo dissonâncias.</p>
<p>O que são o funk ostentação e os rolezinhos se não essa reivindicação
dos jovens mais pobres por maior participação na vida social mais ampla
pelo consumo? Estas ações culturais parecem situar-se nessa lógica, que
não necessariamente se contrapõe ao hegemônico, na medida em que tenta
se afirmar pelo consumo, mas provoca um desconforto, um ruído
extremamente irritante para aqueles que se pautam por um discurso e uma
prática de segregação dos que consideram como seus “outros”.</p>
<p><strong>P.</strong> Como definir este desconforto? O que são os “outros” neste contexto? E que papel estes “outros” desempenham?</p>
<p><strong>R.</strong> O desconforto em ver pobres ocupando um lugar em
que não deveriam estar, como o de consumidores de certos produtos que
deveriam ser mais exclusivos. É um tipo de espanto, que indaga: “Como
eles, que não têm dinheiro, querem consumir produtos que não são para a
posição social e econômica deles?”. Estes “outros” são os considerados
“subalternos”. Podem ser funkeiros, pobres e pardos da periferia, mas
podem ser também as empregadas domésticas, os motoboys, os pichadores,
entre outros “outros”, que muitas vezes são utilizados como bode
expiatório das frustrações de uma parcela considerável da classe média.</p><p>Os rolezinhos não são protestos contra o shopping ou o consumo, mas
afirmações de: “Queremos estar no mundo do consumo, nos templos do
consumo”. Entretanto, por serem jovens pobres de bairros periféricos,
negros e pardos em sua maioria, e que ouvem um gênero musical
considerado marginal, eles passam a ser vistos e classificados pela
maioria dos segmentos da sociedade como bandidos ou marginais. Vamos
pensar que, na própria concepção do shopping, não está prevista a
presença desse público, ainda mais em grupo e fazendo barulho.
Pergunto-me se fosse em um shopping mais nobre, com jovens brancos de
classe média alta, vestidos como se espera que um jovem deste estrato
social se vista, se a repercussão seria a mesma, se a criminalização
seria a mesma. Talvez fosse considerado apenas um <em>flash mob</em>. Há
uma tendência, por parcela considerável da classe média, da mídia e do
poder público de perceber os jovens pobres a partir de três
perspectivas, quase sempre exclusivistas: a do bandido, a da vítima e a
do herói.</p>
<p><strong>P.</strong> Como funcionam estas três perspectivas – bandido, vítima e herói?</p>
<p><strong>R. </strong> São muito mais formas de enquadrar esses jovens
por aqueles que querem tutelá-los do que categorias assumidas pelos
próprios jovens. Por isso, são contextuais. Dependendo da situação e dos
atores sociais com quem dialogam, o jovem pode ser entendido a partir
de uma dessas categorias. O pichador, por exemplo, é um agente que pode
mobilizar todas essas classificações, dependendo do contexto e dos
interlocutores: a polícia, a secretaria de cultura, os pesquisadores
acadêmicos ou a ONG que quer salvar os jovens da periferia da violência.
No caso do funk, por exemplo, já há comentários e mesmo textos de
pessoas mais politizadas vendo os rolezinhos como uma ação afirmativa ou
extremamente contestatória. Para estes, os protagonistas dos rolezinhos
são vítimas que se tornaram heróis. Outros, como a polícia, a
administração dos shoppings e a clientela, mas também seus vizinhos, que
moram lá nos bairros pobres da periferia, enxergam neles principalmente
vilões e mesmo bandidos.</p>
<p>Jovens como estes que estão nos rolezinhos não necessariamente
aceitam se encaixar nesses rótulos, mas, em alguns casos, podem também
se encaixar em todos eles ao mesmo tempo. Não se pode simplificar um
fenômeno como este. Porém, se pensarmos esse movimento que surge
principalmente com o hip hop, de valorizar a periferia como espaço
político e de afirmação positiva, é possível ver, sim, ainda que em
menor intensidade, uma certa ação política. De dizer: “Somos da quebrada
e temos orgulho disso”. Um movimento de reversão do estigma em marca
positiva.</p>
<p><strong>P.</strong> Mas há, de fato, uma ação consciente, organizada,
com um sentido político prévio? Ou o sentido está sendo construído a
partir dos acontecimentos, o que é igualmente legítimo?</p>
<p><strong>R.</strong> Olha, sinceramente, é difícil dizer se há um
sentido político, direto, consciente e/ou explícito. Talvez por parte de
alguns, mas pelo que vi nas redes sociais, não da maioria. Se o
movimento persistir ou tomar outras formas, pode ser que tal sentido
político fique mais forte. Por enquanto é difícil analisar esse ponto. O
antropólogo (indiano) Arjun Appadurai analisa há algum tempo as
mudanças que se processam no mundo por causa do avanço das tecnologias
de comunicação e de transporte. Segundo este autor, as pessoas cada vez
mais se deslocam no mundo atual, e não apenas fisicamente, mas também e
talvez principalmente pela imaginação, por causa de meios de comunicação
como a televisão e, mais recentemente, pela internet. Hoje é possível
imaginar-se nos mais diferentes lugares do mundo, mas também em
diferentes classes sociais. O que são os videoclipes de funk da
ostentação que não imagens/imaginações que os jovens produzem sobre o
que seria pertencer a outra classe social ou possuir melhores condições
econômicas para o consumo?</p><p>Essa imaginação, segundo esse autor, pode constituir-se como um
projeto político compartilhado, mas pode também ser apenas uma fantasia,
como algo individualista e egoísta, sem grandes potenciais políticos.
Parece-me que o funk da ostentação em São Paulo e movimentos como o dos
rolezinhos nos shoppings têm intensamente essas duas potências. Difícil
saber se alguma delas irá prevalecer ou tornar-se hegemônica.</p>
<p><strong>P.</strong> A escolha da música do MC Daleste, assassinado
num show em Campinas, para o rolezinho promovido no Shopping
Internacional de Guarulhos, pode ter um significado a mais?</p>
<p><strong>R.</strong> A escolha da música do MC Daleste na entrada dos
jovens no shopping de Guarulhos me pareceu bastante significativa, por
vários motivos. Principalmente, porque a morte dele no palco, cantando
funk, de certa forma construiu um marco para esse funk da ostentação. O
seu assassinato acabou por dar ainda mais visibilidade a esta vertente
do funk paulista. MC Daleste cantava proibidão antes e, assim, essa
relação confusa entre crime e consumo manifesta-se de modo bastante
forte no que o MC Daleste representa. Há no seu próprio nome artístico
essa afirmação de um certo orgulho do lugar de onde vem e de ser da
periferia, que tanto o funk quanto o hip hop expressam. Não é por acaso
que ele é “Da Leste”. Lembremos que Guarulhos também está à leste da
Região Metropolitana de São Paulo.</p>
<p><strong>P.</strong> Hoje, uma parte significativa da geração que se
criou nas periferias com movimentos contestatórios como o hip hop e a
literatura periférica ou marginal tem, pelo funk da ostentação, assumido
os valores de consumo das classes médias e alta. Como você analisa este
fenômeno e o insere no contexto histórico atual do Brasil?</p>
<p><strong>R.</strong> O que um evento como esse parece evidenciar é,
por um lado, esse anseio por consumir e por afirmar-se pelo consumo que
esses jovens vêm demonstrando já há algum tempo, pelas letras dos funks,
mas que também já é visto no hip hop. Apesar das críticas de certos
segmentos do hip hop, não sei se o funk ostentação rompe com o hip hop
mais politizado dos anos 1980 e 1990 ou se oferece uma das muitas
possíveis continuidades a esse movimento cultural. Parece-me que o funk
ostentação é uma releitura paulista, muito influenciada pelo hip hop, do
funk carioca. Muitos MCs de funk eram MCs de hip hop, muitos deles,
além dos funks, cantam também raps, e músicas dos Racionais são ouvidas
nos shows. Trechos de letras de músicas dos Racionais podem ser
encontrados facilmente nas letras do funk. Agora, o fato é que o funk
não é tão marcado pela questão política como o hip hop. O Montanha, de
Cidade Tiradentes, disse-me algo interessante, certa vez, de que, na
verdade, o hip hop ofereceria um espaço de expressão política que
faltava aos jovens, já o funk é um espaço de lazer e de sociabilidade.
Parece-me uma reflexão interessante. Não que o hip hop não possa conter
lazer e sociabilidade também, nem o funk, protesto político, mas que as
duas vertentes tendem para um dos polos. O funk, aliás, ganhou esse
grande espaço junto aos jovens das periferias de São Paulo porque, nessa
articulação de um espaço de lazer, configurou-se um espaço para as
mulheres que, no hip hop, era mais difícil. As mulheres são presença
fundamental nos bailes funks. O protagonismo da dança sempre foi delas.
Ainda que os meninos também dancem e as meninas participem cada vez mais
como MCs. O hip hop sempre foi muito mais masculino, da dança ao estilo
de se vestir.</p>
<p><strong>P.</strong> Mas qual é a diferença, na sua opinião, entre a
forma como, por exemplo, os Racionais falam em consumo e os MCs da
ostentação falam de consumo?</p><p><strong>R.</strong> Há aí duas perspectivas. Quando digo que os
Racionais já cantavam isso, quero dizer que eles já identificavam essa
necessidade de consumir da juventude. E de consumir o que eles achavam
que era bom, nada de consumo consciente. Por isso digo que os Racionais
já faziam, há mais de dez anos, uma leitura desse anseio por consumir
dos jovens pobres. Por outro lado, há essa dimensão de movimentos como o
dos escritores da periferia, promovendo produtos da periferia, pela
periferia. O funk ostentação começa sem se preocupar com essa questão
diretamente. Ele não tem dor na consciência por cantar o consumo em suas
músicas e aderir ao sistema, por exemplo. Porém, indiretamente, se
acaba chegando a um outro ponto, na medida em que uma parcela
considerável de jovens da periferia passa a possuir algum tipo de renda
com a produção do funk. Sejam os meninos que gravam os videoclipes, os
próprios MCs, mas também empresários, produtores, técnicos e mesmo
alguns MCs tornando-se empreendedores e criando seus próprios negócios.
Como o MC Nego Blue, que observando de perto o sucesso das roupas de
grife entre os jovens, criou a Black Blue, uma loja de roupas cujo
símbolo é uma carpa colorida. Hoje, além de possuir lojas próprias, já
vende suas roupas em lojas multimarcas, ao lado de camisas da Lacoste ou
de outras marcas famosas que os meninos procuram, e por um preço muito
parecido. Uma das empresas que agencia shows de funk em Cidade
Tiradentes chama-se justamente “Nóis por nóis”.</p>
<p>Os rolezinhos parecem dizer: não apenas queremos consumir, mas
queremos ocupar em massa e se divertir aí nos seus shoppings, nos seus
ou nos nossos. É importante perceber também que os shoppings onde os
eventos ocorreram estão em regiões mais periféricas, provavelmente
próximos ao próprio bairro de moradia dos jovens. Por enquanto, eles não
têm ido aos templos maiores do consumo de luxo na cidade, na região dos
Jardins, Faria Lima, Marginal Pinheiros etc. Pode haver aí também um
componente de um termo que surgiu muito forte para mim na pesquisa que
fiz em escolas de ensino médio, no meu doutorado, que é a ideia do
“zoar”. Eles querem zoar, que é chamar a atenção para si e se divertir,
namorar, brincar e, se for preciso, brigar.</p>
<p><strong>P.</strong> Por que, neste momento, o lazer se impõe como uma
reivindicação desta geração, acima de questões como saúde, educação e
transporte de qualidade?</p>
<p><strong>R.</strong> Acho que não há uma reivindicação política bem
formuladinha como acontecia com o hip hop: queremos mais saúde, educação
e lazer. Eles simplesmente querem estar nos shoppings para zoar e vão.
Não há essa reflexão mais elaborada que o hip hop produz, é mais
espontâneo. Esse talvez possa ser um ponto de distinção. E o próprio
funk é, por si só, lazer e diversão, um dispositivo poderosíssimo para
dançar e motivar paqueras. O zoar pode ser lido como um ato político,
mas não me parece intencional. Acho que cria uma tensão que é política,
que é de disputa de poder pelos espaços da cidade, mas não há um
manifesto pela zoeira ou pelos rolezinhos, como houve, por exemplo, no
caso do manifesto da arte periférica dos escritores.</p>
<p><strong>P.</strong> Há também um movimento maior para sair dos guetos
e ocupar os guetos da classe média? Em massa e não mais
individualmente, como quando um grupo de rap aparecia numa TV, mesmo
sendo a MTV, ou um escritor do movimento literário marginal ou
periférico publicava numa grande editora? Esta é uma novidade
importante?</p>
<p><strong>R.</strong> Acho que abre, sim, para fora do gueto, do bairro
onde se vive, mas não para muito longe, pois, afinal, os shoppings para
os quais eles vão estão do lado de suas casas. Neste sentido, acho que o
hip hop, apesar de falar mais do gueto, abre-se muito mais para fora do
gueto, na medida em que conquista um espaço importante nas políticas
públicas de cultura, por exemplo.</p><p>Claro que esse espaço de lazer é problemático e conflitivo mesmo
dentro dos bairros das periferias onde moram esses jovens. Se
entrevistarmos os seus vizinhos, certamente a maioria vai se posicionar
totalmente favorável à proibição das festas de rua que eles organizam,
com som alto que muitas vezes toma a madrugada toda. Por isso, acho
importante não tomar o funk nem como um movimento libertador, nem como o
grande vilão ou o grande movimento de corrupção da juventude
contemporânea, como setores mais moralistas, à esquerda e à direita,
tendem a fazer.</p>
<p>A questão do consumo também me parece problemática. O desejo pelo
consumo sempre existiu. Bem antes do governo Lula, o processo de
urbanização induz a esse apego maior ao consumo. Porém, não dá para se
negar que houve, nos últimos anos, também uma melhora econômica para
segmentos que antes estavam bastante afastados do mercado. Porém, acho
que reduzir o sucesso do funk da ostentação a isso é simplificar demais o
movimento e esquecer que ocorreram e ocorrem movimentos juvenis
parecidos em outras partes do mundo, como o próprio gangsta rap, nos
Estados Unidos, no qual os videoclipes se inspiram.</p>
<p>Devemos questionar não a ação dos meninos, mas as relações sociais
fomentadas na contemporaneidade. É preciso conceder aos jovens, e não
apenas aos pobres, mas aos de classe média e alta também, outros espaços
de reconhecimento e de estabelecimento de relações sociais que não
sejam pautados pela afirmação por meio da posse e do consumo de bens.
Porque, afinal, como dizem os Racionais, mais uma vez: “Quem não quer
brilhar, quem não? Mostra quem. Ninguém quer ser coadjuvante de
ninguém”. De repente, para alguns, ter um tênis caro, um smartphone de
última geração ou ir ao shopping para zoar, pode ser uma forma
encontrada para tentar brilhar.</p>
<p><strong>P.</strong> Ao ocupar os shoppings, os adeptos do funk da
ostentação estariam promovendo sua primeira atitude de insurgência
contra o sistema, no sentido de: “Vou ocupar o espaço que me é negado ou
onde não me querem”. É isso? Ou as próprias letras das músicas,
interpretadas, em geral, como adesão ao sistema, já seriam, de fato, uma
insurgência, na medida que se apropriam, simbolicamente, dos valores da
elite e da classe média e, agora, com os rolezinhos, também de seus
espaços físicos?</p>
<p><strong>R.</strong> Sim, acho que essa é a maior irritação da classe
média com esses movimentos. Basta ver os comentários aos videoclipes no
YouTube, irritados com os meninos ostentando e exibindo-se com produtos
mais caros, que não deveriam estar com aqueles meninos, pobre e negros,
em sua maioria. Esta é a principal insurgência que eles provocam. A
classe média, de uma maneira geral, a mais pobre ou a mais rica, a mais
ou menos intelectualizada, irrita-se bastante quando os subalternos
compram bens caros, mesmo antes deles. Já ouvi comentários indignados,
do tipo: “Minha empregada comprou uma televisão de última geração,
melhor do que a minha”. Isso tem antecedentes históricos que parecem
refletir até hoje. James Holston, ainda no livro sobre cidadania
insurgente, que citei anteriormente, traz como exemplo a legislação
colonial portuguesa, que proibia aos negros o uso de joias e artigos
considerados finos...</p>
<p><strong>P.</strong> Parece que os “rolezeiros” dos shoppings estão
ocupando o mesmo lugar simbólico dos “vândalos” nas manifestações, na
narrativa feita por parte da grande mídia e pelas autoridades
instituídas. Como você interpreta essa reação?</p><p><strong>R.</strong> O que me assustou de verdade nessa história toda
foram as reações, de mídia e de polícia, condenando e mandando prender,
mesmo em casos em que disseram que não houve arrastões, mas correrias.
Fico questionando quem provocou a correria: os jovens ou a ação dos
seguranças e da polícia? Eventos como estes revelam também uma faceta
complicada e extremamente preconceituosa da classe média brasileira. Dei
uma entrevista curta para o site de um grande grupo de comunicação e
fiquei assustado ao ler os comentários dos leitores, de um ódio terrível
contras os meninos e meninas que foram aos shoppings, contra os pobres,
contra mim, que tive uma fala dissonante na entrevista, ressaltando a
forma preconceituosa com que tal tema vinha sendo tratado. Ao falarem do
evento, algumas palavras utilizadas como categorias de acusação contra
os jovens e as jovens foram bastante reveladoras do preconceito, e mesmo
do racismo, deste segmento social: “favelados”, “maloqueiros”,
“bandidos”, “prostitutas” e “negros”. Nesse último caso, inclusive, fica
evidente o racismo que aparece em muitos comentários dessa notícia, mas
também nas comunidades dos rolezinhos que os jovens criaram nas redes
sociais. Um dos comentários pede para que os jovens voltem para a
África. Isso é muito grave. Revela esse profundo racismo entranhado em
parcela considerável da população. Como se tal sociedade dissesse, por
meio dos representantes dos shoppings, da mídia e da polícia, brincando
um pouco com a questão das manifestações de junho: “Vocês, pobres, podem
consumir, mas ir ao shopping em grandes grupos, só para zoar e cantar
funk, aí já é vandalismo”.</p>
<p><strong>P.</strong> A classe média é racista?</p>
<p><strong>R.</strong> O que chamamos de classe média não é um todo
homogêneo. É possível segmentá-la em diferentes níveis e a partir de
diferentes contextos, é possível pensar em uma classe média
intelectualizada ou não intelectualizada. Contudo, parece-me que a
divisão mais importante para se pensar a classe média em São Paulo é a
que se dá por critérios socioeconômicos e espaciais. Há a classe média
que está concentrada principalmente no entorno do eixo central, que vai
do Centro a Pinheiros, passando pela Avenida Paulista e bairros
próximos. Esta, em sua maioria, vive numa bolha e tem poucos contatos
com outras classes sociais, com exceção dos trabalhadores subalternos:
porteiros, empregadas domésticas etc. Para esta, em grande medida, o
Shopping Itaquera pode estar mais distante do que Paris ou Londres.</p>
<p>Porém, há também certa classe média baixa que vive na periferia.
Citando novamente o Holston, ele fala de uma diferenciação que se
produziu nas periferias de São Paulo entre aqueles que compraram seus
terrenos, ainda que por meio de contratos obscuros, e aqueles que
ocuparam os espaços da cidade, formando as favelas. Essa pequena
diferença não cria um grande abismo econômico, mas produz uma profunda
diferenciação, por meio do qual um grupo estigmatiza o outro. Já vi um
indivíduo desta classe média da periferia questionando programas como o
bolsa família, porque tinha visto potes vazios de iogurte no lixo da
favela. Este indivíduo afirmava que nem ele consumia iogurte com tanta
frequência, como eles se davam ao direito de consumir tal produto, que
era um luxo, raro, mas sobre o qual ele detinha certa exclusividade?</p>
<p>A questão do auxílio aos mais pobres, principalmente o bolsa família,
é um forte fator de estigmatização por parte desses diferentes
segmentos da classe média, mas principalmente por parte dessa classe
média da periferia. Estive, recentemente, em uma escola pública próxima a
uma grande favela de São Paulo. Segundo os professores, um dos
problemas daquela escola era o fato de que 90% dos alunos vinham da
favela vizinha. E que, hoje, esses alunos estavam muito acomodados, pois
viviam de bolsas e na favela tinham tudo muito fácil, com a grande
quantidade de projetos presentes por lá. Inclusive, projetos de música,
ressaltou um professor. É muito importante refletir sobre isso, porque
esses professores, se não moram na favela, são vizinhos dela. Mas, ainda
assim, permitem-se diferenciar-se dos jovens por questões muito
pequenas. E são estes professores os responsáveis por formar esses
jovens. Será que, com este olhar, são capazes de lutar para que a escola
se torne um espaço de convivência, afirmação e reconhecimento para os
jovens?</p>
<p><strong>P.</strong> Como você, que tem acompanhado o cotidiano de escolas públicas, em São Paulo, percebe a educação?</p><p><strong>R.</strong> É necessário pensarmos em uma educação para as
diferenças, para que não caiamos mais na armadilha da intolerância e das
análises apressadas e preconceituosas de setores das elites e das
camadas médias, ao se referirem aos “subalternos”. Lembro-me de um
documentário português, que vale a pena ser assistido, sobre a história
de um arrastão que não existiu. <a href="http://brasil.elpais.com/brasil/2013/12/23/opinion/%20http://www.dailymotion.com/video/xe4px_era-uma-vez-um-arrastao_news" target="_blank">Chama-se: “Era uma vez um arrastão” (assista</a> <strong>aqui</strong>).
Nele, conta-se do dia em que jovens caboverdianos ou descendentes de
caboverdianos resolveram frequentar a nobre praia de Carcavelos, em
Portugal. A polícia, ao ver a concentração de jovens de origem africana,
assustou-se e resolveu intervir, provocando uma grande correria, que
foi noticiada como arrastão. Mas, de fato, os jovens fugiam da repressão
policial gratuita. Isso talvez nos ensine algo sobre os arrastões que
estamos a criar todo dia, criminalizando jovens pobres cotidianamente.</p>
<p>Quando estive pesquisando em escolas públicas da periferia de São
Paulo, era comum ouvir dos professores que, naquela escola, os alunos
eram todos bandidos ou marginais. O discurso da criminalização é efetivo
e poderoso e condena muita gente ao fracasso escolar e mesmo ao crime. O
sociólogo polonês Zygmunt Bauman, num livro sobre educação e juventude,
ressalta a necessidade cada vez mais premente, na contemporaneidade, de
desenvolvermos a arte de conviver com os estranhos e a diferença. Em
especial num mundo no qual as migrações tendem a aumentar cada vez mais.
No nosso caso, não foi preciso a chegada de estrangeiros para a
expressão das mais brutais formas de preconceito, pois os estrangeiros
éramos nós, os brasileiros. Mas brasileiros que moram muito, muito
distante, ainda que vizinhos. Moram em Guaianazes, Capão Redondo,
Grajaú, Cidade Ademar, Cidade Tiradentes, Vila Brasilândia...</p>
<p><strong>P.</strong> Em que medida, na sua opinião, os rolezinhos se ligam às manifestações de junho?</p>
<p><strong>R.</strong> Acho que não há uma ligação direta. Mas,
indiretamente, é possível perceber a reivindicação comum do uso do
espaço público e de quebra das marcas da segregação. Lembro-me que,
antes das manifestações de junho, para a imprensa conservadora era um
tabu ocupar a Avenida Paulista. Os movimentos sociais mostraram que não
apenas não era um tabu, como era um direito, o direito de ir às ruas e
ocupá-las para protestar. Os rolezinhos não parecem ter uma pauta tão
clara, mas também estão, ainda que indiretamente, dizendo: “Vocês não
disseram que era bom consumir? Pois bem, nós também queremos!”</p>
<p><strong>P.</strong> Essa ocupação de espaços que supostamente
pertenceriam a “outros”, tanto no caso das manifestações como no caso
dos rolezinhos, parece marcar uma novidade importante. O que está
acontecendo?</p>
<p><strong>R. </strong> Acho que a novidade está aí, mas é difícil dizer
o que está acontecendo ou o que acontecerá. Pode ser apenas um surto –
algo parecido com o que foi a revolta da vacina como reação às propostas
políticas opressoras de reforma sanitária do Rio de Janeiro, por
exemplo – ou pode ser uma nova forma de pensar os espaços públicos e
privados nas cidades brasileiras. Porém, é difícil prever. Os rolezinhos
podem ter acabado nesta semana, por exemplo. E movimentos como os de
junho não se repetiram com tanta intensidade e repercussão. Contudo, o
que movimentos como estes garantem é a possibilidade de se tensionar
essa ocupação dos espaços urbanos, amplamente negada até então.</p><p><strong>P.</strong> Por que este nome, rolezinho? E que significados ele contém?</p>
<p><strong>R.</strong> Rolezinho é um termo que está diretamente ligado à
ideia de lazer. De sair para se divertir e usufruir da cidade. Os
pichadores, com os quais realizei pesquisa no mestrado, também usam a
ideia de rolê, para se referirem às suas pichações. Com isso estão
dizendo que pichar é dar voltas para conhecer e se apropriar da cidade.
Parece que, por este termo, indiretamente, podemos entender uma
reivindicação pelo direito de se divertir na cidade.</p>
<p><strong>P.</strong> Divertir-se na cidade não seria um ato de insubordinação para jovens pobres e negros? Talvez até o maior ato de insubordinação?</p>
<p><strong>R.</strong> Sim, principalmente numa sociedade em que pobres e
negros têm que trabalhar – e apenas trabalhar – sem reclamar. Lembremos
de que a ROTA, no final do regime militar, atuava nas periferias
abordando os moradores e cobrando-lhes a carteira profissional como
prova de que eram trabalhadores e não vagabundos. Devotados, portanto,
ao trabalho e não à diversão. Agora, claro que esses jovens não estão
pensando exatamente nisso. Querem muito mais é se divertir.</p>
<p><strong>P.</strong> Como entender este fenômeno, que é, ao mesmo tempo, uma insubordinação e uma adesão ao sistema?</p>
<p><strong>R. </strong> Acho que a melhor palavra é paradoxo. O funk da
ostentação em São Paulo é paradoxal: não dá para situá-lo num polo ou
noutro, dentro do modo tradicional de pensar a política. Conservador ou
revolucionário? Nenhum dos dois, mas com possibilidade para os dois ao
mesmo tempo.</p>
<strong></strong><p><br></p><br><br>-- <br><div dir="ltr"><div>carlos palombini<br>professor de musicologia ufmg<br><a href="http://proibidao.org" target="_blank">proibidao.org</a><br></div><a href="http://ufmg.academia.edu/CarlosPalombini" target="_blank">ufmg.academia.edu/CarlosPalombini</a><br>
<a href="http://scholar.google.com.br/citations?user=YLmXN7AAAAAJ" target="_blank"><span style="display:block">scholar.google.com.br/citations?user=YLmXN7AAAAA</span></a><br><div></div><div></div><div></div><div></div><div>
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