<div dir="ltr"><h2>O rolezinho, a novidade deste Natal, mostra que, quando a juventude 
pobre e negra das periferias de São Paulo ocupa os shoppings anunciando 
que quer fazer parte da festa do consumo, a resposta é a de sempre: 
criminalização. Mas o que estes jovens estão, de fato, “roubando” da 
classe média brasileira?</h2><span class="">
<span class="">
<a href="http://brasil.elpais.com/autor/eliane_brum/a/" rel="author" title="Ver todas as notícias de Eliane Brum">Eliane Brum</a></span>
<a href="http://brasil.elpais.com/tag/fecha/20131223" class="" title="Ver todas as notícias de esta fecha">23 DEZ 2013 - 09:51 <abbr title="Brasilia Summer Time">BRST</abbr></a></span><br clear="all"><br><a href="http://brasil.elpais.com/brasil/2013/12/23/opinion/1387799473_348730.html">http://brasil.elpais.com/brasil/2013/12/23/opinion/1387799473_348730.html</a><br>
<p>O Natal de 2013 ficará marcado como aquele em que o Brasil tratou 
garotos pobres, a maioria deles negros, como bandidos, por terem ousado 
se divertir nos shoppings onde a classe média faz as compras de fim de 
ano. Pelas redes sociais, centenas, às vezes milhares de jovens, 
combinavam o que chamam de “rolezinho”, em shopping próximos de suas 
comunidades, para “zoar, dar uns beijos, rolar umas paqueras” ou 
“tumultuar, pegar geral, se divertir, sem roubos”. No sábado, 14, 
dezenas entraram no Shopping Internacional de Guarulhos, cantando 
refrões de funk da ostentação. Não roubaram não destruíram, não portavam
 drogas, mas, mesmo assim, 23 deles foram levados até a delegacia, sem 
que nada justificasse a detenção. Neste domingo, 22, no Shopping 
Interlagos, garotos foram revistados na chegada por um forte esquema 
policial: segundo a imprensa, uma base móvel e quatro camburões para a 
revista, outras quatro unidades da Polícia Militar, uma do GOE (Grupo de
 Operações Especiais) e cinco carros de segurança particular para montar
 guarda. Vários jovens foram “convidados” a se retirar do prédio, por 
exibirem uma aparência de funkeiros, como dois irmãos que empurravam o 
pai, amputado, numa cadeira de rodas. De novo, nenhum furto foi 
registrado. No sábado, 21, a polícia, chamada pela administração do 
Shopping Campo Limpo, não constatou nenhum “tumulto”, mas viaturas da 
Força Tática e motos da Rocam (Ronda Ostensiva com Apoio de 
Motocicletas) permaneceram no estacionamento para inibir o rolezinho e 
policiais entraram no shopping com armas de balas de borracha e bombas 
de gás.</p>
<p>Se não há crime, por que a juventude pobre e negra das periferias da Grande São Paulo está sendo criminalizada?</p>
<p>Primeiro, por causa do passo para dentro. Os shoppings foram 
construídos para mantê-los do lado de fora e, de repente, eles ousaram 
superar a margem e entrar. E reivindicando algo transgressor para jovens
 negros e pobres, no imaginário nacional: divertir-se fora dos limites 
do gueto. E desejar objetos de consumo. Não geladeiras e TVs de tela 
plana, símbolos da chamada classe C ou “nova classe média”, parcela da 
população que ascendeu com a ampliação de renda no governo Lula, mas 
marcas de luxo, as grandes grifes internacionais, aqueles que se 
pretendem exclusivas para uma elite, em geral branca.</p>
<p>Antes, em 7 de dezembro, cerca de 6 mil jovens haviam ocupado o 
estacionamento do Shopping Metrô Itaquera, e também foram reprimidos. 
Vários rolezinhos foram marcados pelas redes sociais em diferentes 
shoppings da região metropolitana de São Paulo até o final de janeiro, 
mas, com medo da repressão, muitos têm sido cancelados. Seus 
organizadores, jovens que trabalham em serviços como o de office-boy e 
ajudante geral, temem perder o emprego ao serem detidos pela polícia por
 estarem onde supostamente não deveriam estar – numa lei não escrita, 
mas sempre cumprida no Brasil. Seguranças dos shoppings foram orientados
 a monitorar qualquer jovem “suspeito” que esteja diante de uma vitrine,
 mesmo que sozinho, desejando óculos da Oakley ou tênis Mizuno, dois dos
 ícones dos funkeiros da ostentação. Às vésperas do Natal, o Brasil 
mostra a face deformada do seu racismo. E precisa encará-la, porque 
racismo, sim, é crime.</p>
<p>“Eita porra, que cheiro de maconha” foi o refrão cantado pelos jovens
 ao entrarem no Shopping Internacional de Guarulhos. O funk é de MC 
Daleste, que afirma no nome artístico a região onde nasceu e se criou, a
 zona leste, a mais pobre de São Paulo, aquela que todo o verão naufraga
 com as chuvas, por obras que os sucessivos governos sempre adiam, 
esmagando sonhos, soterrando casas, matando adultos e crianças. Daleste 
morreu assassinado em julho com um tiro no peito durante um show em 
Campinas – e assassinato é a primeira causa de morte dos jovens negros e
 pobres no Brasil, como os que ocuparam o Shopping Internacional de 
Guarulhos.</p>
<p>A polícia reprimiu, os lojistas fecharam as lojas, a clientela 
correu. Uma das frequentadores do shopping disse a frase-símbolo à 
repórter Laura Capriglione, na Folha de S. Paulo: “Tem de proibir este 
tipo de maloqueiro de entrar num lugar como este”. Nos dias que se 
seguiram, em diferentes sites de imprensa, leitores assim definiram os 
“rolezeiros” (veja entrevista abaixo): “maloqueiros”, “bandidos”, 
“prostitutas” e “negros”. Negros emerge aqui como palavra de ofensa.</p><p>O funk da ostentação, surgido na Baixada Santista e Região 
Metropolitana de São Paulo nos últimos anos, evoca o consumo, o luxo, o 
dinheiro e o prazer que tudo isso dá. Em seus clipes, os MCs aparecem 
com correntes e anéis de ouro, vestidos com roupas de grife, em carros 
caros, cercado por mulheres com muita bunda e pouca roupa. (<a href="http://www.youtube.com/watch?v=5V3ZK6jAuNI" target="_blank">Para conhecer o funk da ostentação, assista ao documentário</a><span style="padding:0px;margin:0px"> <a style="border:medium none;text-decoration:none;padding:0px" title="Get a direct link" target="_blank" href="http://savefrom.net/?url=http%3A%2F%2Fwww.youtube.com%2Fwatch%3Fv%3D5V3ZK6jAuNI&utm_source=firefox&utm_medium=extensions&utm_campaign=link_modifier"><img style="border: medium none; width: auto; height: auto; vertical-align: middle;" title="Get a direct link" alt="SaveFrom.net" src="chrome://savefrom/content/button.gif" border="0"></a></span> <strong>aqui</strong>).
 Diferentemente do núcleo duro do hip hop paulista dos ano 80 e 90, que 
negava o sistema, e também do movimento de literatura periférica e 
marginal que, no início dos anos 2000, defendia que, se é para consumir,
 que se compre as marcas produzidas pela periferia, para a periferia, o 
funk da ostentação coloca os jovens, ainda que para a maioria só pelo 
imaginário, em cenários até então reservados para a juventude branca das
 classes média e alta. Esta, talvez, seja a sua transgressão. Em seus 
clipes, os MCs têm vida de rico, com todos os signos dos ricos. Graças 
ao sucesso de seu funk nas comunidades, muitos MCs enriqueceram de fato e
 tiveram acesso ao mundo que celebravam.</p>
<p>Esta exaltação do luxo e do consumo, interpretada como adesão ao 
sistema, tornou o funk da ostentação desconfortável para uma parcela dos
 intelectuais brasileiros e mesmo para parte das lideranças culturais 
das periferias de São Paulo. Agora, os rolezinhos – e a repressão que se
 seguiu a eles – deram a esta vertente do funk uma marca de insurgência,
 celebrada nos últimos dias por vozes da esquerda. Ao ocupar os 
shoppings, a juventude pobre e negra das periferias não estava apenas se
 apropriando dos valores simbólicos, como já fazia pelas letras do funk 
da ostentação, mas também dos espaços físicos, o que marca uma 
diferença. E, para alguns setores da sociedade, adiciona um conteúdo 
perigoso àquele que já foi chamado de “funk do bem”.</p>
<p>A resposta violenta da administração dos shoppings, das autoridades 
públicas, da clientela e de parte da mídia demonstra que esses atores 
decodificaram a entrada da juventude das periferias nos shoppings como 
uma violência. Mas a violência era justamente o fato de não estarem lá 
para roubar, o único lugar em que se acostumaram a enxergar jovens 
negros e pobres. Então, como encaixá-los, em que lugar colocá-los? 
Preferiram concluir que havia a intenção de furtar e destruir, o que era
 mais fácil de aceitar do que admitir que apenas queriam se divertir nos
 mesmos lugares da classe média, desejando os mesmo objetos de consumo 
que ela. Levaram uma parte dos rolezeiros para a delegacia. Ainda que 
tivessem de soltá-los logo depois, porque nada de fato havia para 
mantê-los ali, o ato já estigmatizou-os e assinalará suas vidas, como 
historicamente se fez com os negros e pobres no Brasil.</p>
<p>Jefferson Luís, 20 anos, organizador do rolezinho do Shopping 
Internacional de Guarulhos, foi detido, é alvo de inquérito policial, 
sua mãe chorou e ele acabou cancelando outro rolezinho já marcado por 
medo de ser ainda mais massacrado. Ajudante geral de uma empresa, 
economizou um mês de salário para comprar a corrente dourada que ostenta
 no pescoço. Jefferson disse ao jornal O Globo: “Não seria um protesto, 
seria uma resposta à opressão. Não dá para ficar em casa trancado”.</p>
<p>Por esta subversão, ele não será perdoado. Os jovens negros e pobres 
das periferias de São Paulo, em vez de se contentarem em trabalhar na 
construção civil e em serviços subalternos das empresas de segunda a 
sexta, e ficar trancados em casas sem saneamento no fim de semana, 
querem também se divertir. Zoar, como dizem. A classe média até aceita 
que queiram pão, que queiram geladeira, sente-se mais incomodada quando 
lotam os aeroportos, mas se divertir – e nos shoppings? Mais uma frase 
de Jefferson Luiz: “Se eu tivesse um quarto só pra mim hoje já seria uma
 ostentação”. Ele divide um cômodo na periferia de Guarulhos com oito 
pessoas.</p>
<p>Neste Natal, os funkeiros da ostentação parecem ter virado os novos 
“vândalos”, como são chamados todos os manifestantes que, nos protestos,
 não se comportam dentro da etiqueta estabelecida pelas autoridades 
instituídas e por parte da mídia. Nas primeiras notícias da imprensa, o 
rolezinho do Shopping Internacional de Guarulhos foi tachado de 
“arrastão”. Mas não havia arrastão nenhum. O antropólogo Alexandre 
Barbosa Pereira faz uma provocação precisa: “Se fosse um grupo numeroso 
de jovens brancos de classe média, como aconteceu várias vezes, seria 
interpretado como um <em>flash mob</em>?”.</p><p>Por que os administradores dos shoppings, polícia, parte da mídia e 
clientela só conseguem enquadrar um grupo de jovens negros e pobres 
dentro de um shopping como “arrastão”? Há várias respostas possíveis. 
Pereira propõe uma bastante aguda: “Será que a classe média entende que 
os jovens estão ‘roubando’ o direito exclusivo de eles consumirem?”. 
Seria este o “roubo” imperdoável, que colocou as forças de repressão na 
porta dos shoppings, para impedir a entrada de garotos desarmados que 
queriam zoar, dar uns beijos e cobiçar seus objetos de desejo nas 
vitrines?</p>
<p>Para nos ajudar a pensar sobre os significados do rolezinho e do funk
 da ostentação, entrevisto Alexandre Barbosa Pereira nesta coluna. 
Professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), ele dedica-se a
 pesquisar as manifestações culturais das periferias paulistas. Em seu 
mestrado, percorreu o mundo da pichação. No doutorado, mergulhou nas 
escolas públicas para compreender o que é “zoar”. Desde 2012, pesquisa o
 funk da ostentação. Mesmo que os rolezinhos, pela força da repressão, 
se encerrem neste Natal, há muito que precisamos compreender sobre o que
 dizem seus protagonistas – e sobre o que a reação violenta contra eles 
diz da sociedade brasileira</p>
<p>- <strong>O rolezinho aparece ligado ao funk da ostentação. Em que medida há, de fato, essa ligação?</strong></p>
<p><strong>Alexandre Barbosa Pereira –</strong> O funk ostentação é uma 
releitura paulista do funk carioca, feita a partir da Baixada Santista e
 da Região Metropolitana de São Paulo, na qual as letras passam a ter a 
seguinte temática: dinheiro, grifes, carros, bebidas e mulheres. Não se 
fala mais diretamente de crime, drogas ou sexo. Os funkeiros dessa 
vertente começaram a produzir videoclipes inspirados na estética dos 
videocliples do gangsta rap estadunidense. Mas o mais curioso desse 
movimento é a virada que os jovens fazem ao mudar a pauta que, até 
então, era principalmente a criminalidade para o consumo. As músicas 
deixam de falar de crime para falar de produtos que eles querem 
consumir. Assim, ao invés de cantarem: “Rouba moto, rouba carro, bandido
 não anda à pé” (Bonde Sinistro), os funkeiros da vertente ostentação 
cantam: “Vida é ter um Hyundai e um hornet, dez mil para gastar, rolex, 
juliet. Melhores kits, vários investimentos. Ah como é bom ser o top do 
momento” (MC Danado). Deste modo, os MCs começaram a ter mais espaços 
para cantar em casas noturnas e passaram a produzir videoclipes cada vez
 mais elaborados, com mais de 20 milhões de acessos no YouTube, o que 
levou a um sucesso às margens da mídia tradicional. Alguns MCs chegaram a
 alcançar grande repercussão entre um segmento do público jovem, sem 
nunca ter aparecido na televisão. Vi meninas chorando por MCs em bailes,
 mesmo antes de o funk ostentação alcançar o destaque que conseguiu na 
grande mídia. Surgiram empresas especializadas na produção de clipes no 
estilo ostentação, como a Kondzilla e a Funk TV, claramente inspirados 
no gangsta rap, em que os jovens aparecem em carrões e motos, 
exibindo-se com roupas, dinheiro e mulheres. Uma reflexão interessante a
 se fazer é como a mídia tradicional, que antes execrava o chamado funk 
proibidão, que falava de crime, drogas e sexo abertamente, agora começa a
 elogiar o funk ostentação, denominando-o até como “funk do bem” e 
ressaltando a trajetória econômica e social ascendente dos MCs.</p>
<p><strong>Pergunta.</strong> Fazendo um parêntese aqui, antes de chegar
 ao rolezinho, qual é o caminho para um jovem pobre ter acesso ao 
consumo de luxo, segundo o olhar do funk da ostentação? Esta virada que 
você mencionou...</p>
<p><strong>Resposta.</strong> Primeiro que esse bem de luxo não é tão de
 luxo assim, afinal uma garrafa de uísque a 60 ou 80 Reais não é nenhum 
absurdo. É sempre possível comprar uma réplica daqueles óculos escuros 
que custam mais de mil reais. Nas casas noturnas de funk que observei, 
este era o preço. Pensemos num grupo de pelo menos quatro amigos 
dividindo o valor da compra. Não sai tão caro brincar de ostentar. 
Agora, tem os carros. Estes sim estão fora do alcance da maioria desses 
jovens. Mas aí há uma explicação interessante, que Montanha, um produtor
 e diretor de videoclipes da Funk TV, em Cidade Tiradentes, sabiamente 
me deu. Ele me disse que as novelas já vendiam uma vida de luxo há muito
 tempo, só que nelas os ricos eram os que pertenciam ao mundo de luxo. 
Nos videoclipes de funk ostentação, são os pobres que aparecem como um 
mundo de “riqueza” ou de “luxo”, com carros, mansões, roupas de marcas 
mais caras. Os jovens agora poderiam, segundo afirmou Montanha, ver-se 
como parte de um mundo de prestígio, daí a grande identificação. O crime
 pode ser um caminho para acessar esse mundo de luxo ou o que esses 
jovens entendem por um mundo de luxo, mas não é único. Esta é a lição 
que muitos MCs de funk têm tentando passar em suas falas na grande 
mídia. Eles de certa forma mostram um outro caminho, que, aliás, sempre 
esteve presente para esses jovens da periferia: tornar-se famoso pela 
música ou pelo futebol. Aliás, esses são caminhos que aparecem como os 
mais possíveis para os jovens negros e pobres das periferias do país 
imaginarem um futuro de sucesso. Num mundo em que há uma forte divisão 
entre trabalho intelectual e manual, com a extrema valorização do 
primeiro, o uso do corpo em formas lúdicas como meio de ganhar dinheiro 
mostra-se como opção para uma transformação da vida. “Crime, futebol, 
música, caralho, eu também não consegui fugir disso aí”, esse é o Negro 
Drama cantado pelos Racionais MC’s. Os MCs de funk ostentação estão 
tentando dizer que é possível construir uma vida de sucesso pela música.
 E o que era ficção, os videoclipes com carros importados emprestados ou
 alugados, com dinheiro cenográfico jogado para o ar, começa a tornar-se
 realidade. Muitos deles começam a ganhar uma quantidade razoável de 
dinheiro com os shows. Acho que a ideia da imaginação como uma força 
criativa apresenta-se fortemente no funk ostentação.</p><p>Por outro lado, é preciso destacar que masculinidades pautadas pelo 
desejo de possuir um automóvel ou uma motocicleta não foram construídas 
pelo funk ostentação. Já existia há um tempo. Para os meninos da 
periferia, possuir um bom carro, bonito e potente, é uma das metas 
principais de vida. A posse do carro é, no imaginário desses jovens, mas
 também da população em geral, um indicativo de sucesso econômico e 
social, garantindo, consequentemente, sucesso com as mulheres.</p>
<p>Neste caldo cultural, o consumo é cada vez mais exaltado como espaço 
de afirmação e de reconhecimento para os jovens. É, inclusive, bastante 
complexa a forma como se dá a relação entre criminalidade e consumo no 
funk. Na virada que produziram, parece que há o recado de que essas duas
 ações sociais podem constituir dois lados de uma mesma moeda. Eles não 
deixam de falar do crime. Acabam citando-o indiretamente, como nas 
músicas do MC Rodofilho, nas quais ele celebra: “Ai meu deus, como é bom
 ser vida loka!”. O importante é entender como o crime e o consumo são 
pautas constantes nas relações de sociabilidade dos jovens da periferia.
 Os mais pobres também querem que ipads, iphones e automóveis potentes 
façam parte de seu mundo social. Ainda preciso observar e refletir mais 
sobre isso, mas acho que tanto no caso do crime, como no do consumo 
temos que atentar mais para o modo como se dão as relações entre pessoas
 e coisas. Fico pensando que a busca de realização apenas pelo consumo 
envolve sentimentos e posturas extremas de um egoísmo hedonista e de um 
profundo desprezo pelos outros humanos. As mercadorias, ou as coisas 
almejadas, de certa forma têm conformado as subjetividades 
contemporâneas. E nessas novas subjetividades, pautadas pelo instantâneo
 e o instável, parece não haver muito espaço para a solidariedade. Há 
uma nova tendência na discussão antropológica afirmando que não podemos 
entender as coisas apenas como representação ou resultado do social. 
Precisamos pensar também em como as coisas fazem as pessoas e mesmo o 
social, como as coisas, ou as mercadorias mais desejadas hoje, motivam 
tanto um consumismo desenfreado, irracional e egoísta, quanto o ingresso
 de jovens na criminalidade. Sempre fico espantado quando vejo as 
imagens, em outros países, das pessoas correndo desesperadas para 
comprar um novo lançamento de smartphone, videogame ou tablet... Mas não
 só isso, tais coisas também motivam e determinam formas de estar, 
pensar, relacionar-se e sentir no mundo contemporâneo.</p>
<p>Penso muito nisso quando parte da classe média critica o consumo 
desses jovens, dizendo que apenas eles – da classe média que, 
supostamente, pagaria os impostos – têm direito a consumir, ou se 
relacionar com certos produtos. Será que, desse modo, a classe média 
entende que os jovens estão roubando o direito exclusivo de eles 
consumirem ou de se relacionarem com esses objetos de prestígio? Direito
 que, por sua vez, vinha sendo roubado desses jovens pobres há muito 
tempo?</p>
<p>Essa crítica pode vir inclusive de certa classe média mais 
intelectualizada e mesmo com ideias políticas progressistas, mas que 
acha que sabe o que é melhor para os pobres. Aí fazem a crítica, a 
partir dos seus ipads e iphones, ao que entendem como um consumo 
irracional dos mais pobres, que deveriam poupar ao invés de gastar com 
produtos que não seriam para o nível econômico deles. Enfim, tem aí um 
jogo de perde e ganha e também de busca de satisfações individuais que 
envolve o roubo do direito de alguns ao consumo, que é preciso 
aprofundar para entendermos melhor essas dinâmicas contemporâneas. Todos
 têm o direito a consumir o que quiserem hoje? E seria viável, hoje, 
todos consumirem em um alto padrão? Que implicações ambientais teríamos?
 E se não é sustentável ou viável que todos consumam em tamanha 
intensidade, por que incentivamos tal consumismo? Com isso, o que quero 
dizer é que não se pode pensar a relação entre crime e consumo apenas 
entre os pobres, mas creio que precisamos também olhar para as classes 
médias e altas e para os crimes que, historicamente, têm sido cometidos 
contra os mais pobres e o meio ambiente para proteger o consumo dos 
ricos.</p>
<p><strong>P.</strong> É neste ponto que os rolezinhos aparecem e criam uma tensão das mais reveladoras neste Natal?</p>
<p><strong>R.</strong> Os rolezinhos nos shoppings estão ligados 
diretamente a esse contexto. Não sei dizer como surgiram efetivamente, 
mas me parece que despontaram por essas novas associações que as redes 
sociais permitem fazer, de forma que uma brincadeira possa virar algo 
sério. De repente, uma convocatória feita na internet pode levar 
centenas de jovens a se encontrarem num shopping, local onde podem ter 
acesso a esses bens cantados nas músicas, ainda que apenas por acesso 
visual. Agora, o que é importante ressaltar é que não foram os 
rolezinhos nem o funk ostentação que criaram essa relação de fascinação 
com consumo. Esta já existia há muito tempo. Os Racionais, há mais de 
dez anos, já cantavam sobre isso, com afirmações como: “Você disse que 
era bom e a favela ouviu, lá também tem uísque, red bull, tênis nike e 
fuzil” ou “Fartura alegra o sofredor”</p><p><strong>P.</strong> Algumas análises relacionam os rolezinhos a uma 
ação afirmativa da juventude negra e pobre, a uma denúncia da opressão e
 a uma reivindicação de participação, neste caso no mundo do consumo. 
Como você analisaria este fenômeno tão novo?</p>
<p><strong>R.</strong> Não me arriscaria a dizer que há um movimento 
político muito claro. Pode indiretamente constituir-se como uma ação 
afirmativa da juventude negra e pobre. Talvez a tensão que se criou com a
 criminalização desses jovens, durante os rolezinhos, possa levar a 
algum tipo de reflexão e ação política maior, mas é difícil prever. Em 
um livro intitulado <em>Cidadania Insurgente</em>, (o antropólogo 
americano) James Holston analisa o surgimento das periferias urbanas no 
Brasil, particularmente em São Paulo, apontando a discriminação contra 
certas espécies de cidadãos no Brasil. Esse autor mostra como, 
historicamente, as formulações de cidadania elaboradas pelos mais pobres
 se deram a partir de sua ocupação dos bairros nas periferias das 
grandes cidades. Noções e práticas próprias de cidadania que se 
produziram, ao mesmo tempo, por meio das experiências de tornar-se 
proprietário, de participar de movimentos sociais por melhorias dos 
bairros e de ingressar no mercado consumidor. Primeiro se ocupou os 
bairros, mesmo sem estrutura mínima. Depois, ocorreram as reivindicações
 pela legalização dos terrenos ocupados. E, enfim, vieram as lutas pela 
chegada da energia elétrica, saneamento básico e asfalto. Acho sempre 
muito interessante, em conversas com lideranças antigas dos bairros 
periféricos de São Paulo, observar que elas indicam a chegada do asfalto
 como o grande marco de transformação do bairro e a integração deste ao 
espaço urbano.</p>
<p>Encaro, portanto, ações como estas, dos rolezinhos, do ponto de vista
 dessa “cidadania insurgente”, referindo-se a associações de cidadãos 
que reivindicam um espaço para si e, assim, se contrapõem ao grande 
discurso hegemônico ou, se não se dissociam do discurso hegemônico, ao 
menos provocam ruídos nele. Trata-se de uma reivindicação por cidadania,
 participação política e direitos que, historicamente, foi feita na 
marra, pelos mais pobres, muitas vezes nas costuras entre o legal e o 
ilegal, e que começou com a própria ocupação dos bairros na periferia da
 cidade de São Paulo, como forma de habitar e sobreviver no mundo 
urbano. Essa cidadania não necessariamente se apresenta como 
resistência, mas pode também querer, em muitos casos, associar-se ao 
hegemônico, produzindo dissonâncias.</p>
<p>O que são o funk ostentação e os rolezinhos se não essa reivindicação
 dos jovens mais pobres por maior participação na vida social mais ampla
 pelo consumo? Estas ações culturais parecem situar-se nessa lógica, que
 não necessariamente se contrapõe ao hegemônico, na medida em que tenta 
se afirmar pelo consumo, mas provoca um desconforto, um ruído 
extremamente irritante para aqueles que se pautam por um discurso e uma 
prática de segregação dos que consideram como seus “outros”.</p>
<p><strong>P.</strong> Como definir este desconforto? O que são os “outros” neste contexto? E que papel estes “outros” desempenham?</p>
<p><strong>R.</strong> O desconforto em ver pobres ocupando um lugar em 
que não deveriam estar, como o de consumidores de certos produtos que 
deveriam ser mais exclusivos. É um tipo de espanto, que indaga: “Como 
eles, que não têm dinheiro, querem consumir produtos que não são para a 
posição social e econômica deles?”. Estes “outros” são os considerados 
“subalternos”. Podem ser funkeiros, pobres e pardos da periferia, mas 
podem ser também as empregadas domésticas, os motoboys, os pichadores, 
entre outros “outros”, que muitas vezes são utilizados como bode 
expiatório das frustrações de uma parcela considerável da classe média.</p><p>Os rolezinhos não são protestos contra o shopping ou o consumo, mas 
afirmações de: “Queremos estar no mundo do consumo, nos templos do 
consumo”. Entretanto, por serem jovens pobres de bairros periféricos, 
negros e pardos em sua maioria, e que ouvem um gênero musical 
considerado marginal, eles passam a ser vistos e classificados pela 
maioria dos segmentos da sociedade como bandidos ou marginais. Vamos 
pensar que, na própria concepção do shopping, não está prevista a 
presença desse público, ainda mais em grupo e fazendo barulho. 
Pergunto-me se fosse em um shopping mais nobre, com jovens brancos de 
classe média alta, vestidos como se espera que um jovem deste estrato 
social se vista, se a repercussão seria a mesma, se a criminalização 
seria a mesma. Talvez fosse considerado apenas um <em>flash mob</em>. Há
 uma tendência, por parcela considerável da classe média, da mídia e do 
poder público de perceber os jovens pobres a partir de três 
perspectivas, quase sempre exclusivistas: a do bandido, a da vítima e a 
do herói.</p>
<p><strong>P.</strong> Como funcionam estas três perspectivas – bandido, vítima e herói?</p>
<p><strong>R. </strong> São muito mais formas de enquadrar esses jovens 
por aqueles que querem tutelá-los do que categorias assumidas pelos 
próprios jovens. Por isso, são contextuais. Dependendo da situação e dos
 atores sociais com quem dialogam, o jovem pode ser entendido a partir 
de uma dessas categorias. O pichador, por exemplo, é um agente que pode 
mobilizar todas essas classificações, dependendo do contexto e dos 
interlocutores: a polícia, a secretaria de cultura, os pesquisadores 
acadêmicos ou a ONG que quer salvar os jovens da periferia da violência.
 No caso do funk, por exemplo, já há comentários e mesmo textos de 
pessoas mais politizadas vendo os rolezinhos como uma ação afirmativa ou
 extremamente contestatória. Para estes, os protagonistas dos rolezinhos
 são vítimas que se tornaram heróis. Outros, como a polícia, a 
administração dos shoppings e a clientela, mas também seus vizinhos, que
 moram lá nos bairros pobres da periferia, enxergam neles principalmente
 vilões e mesmo bandidos.</p>
<p>Jovens como estes que estão nos rolezinhos não necessariamente 
aceitam se encaixar nesses rótulos, mas, em alguns casos, podem também 
se encaixar em todos eles ao mesmo tempo. Não se pode simplificar um 
fenômeno como este. Porém, se pensarmos esse movimento que surge 
principalmente com o hip hop, de valorizar a periferia como espaço 
político e de afirmação positiva, é possível ver, sim, ainda que em 
menor intensidade, uma certa ação política. De dizer: “Somos da quebrada
 e temos orgulho disso”. Um movimento de reversão do estigma em marca 
positiva.</p>
<p><strong>P.</strong> Mas há, de fato, uma ação consciente, organizada,
 com um sentido político prévio? Ou o sentido está sendo construído a 
partir dos acontecimentos, o que é igualmente legítimo?</p>
<p><strong>R.</strong> Olha, sinceramente, é difícil dizer se há um 
sentido político, direto, consciente e/ou explícito. Talvez por parte de
 alguns, mas pelo que vi nas redes sociais, não da maioria. Se o 
movimento persistir ou tomar outras formas, pode ser que tal sentido 
político fique mais forte. Por enquanto é difícil analisar esse ponto. O
 antropólogo (indiano) Arjun Appadurai analisa há algum tempo as 
mudanças que se processam no mundo por causa do avanço das tecnologias 
de comunicação e de transporte. Segundo este autor, as pessoas cada vez 
mais se deslocam no mundo atual, e não apenas fisicamente, mas também e 
talvez principalmente pela imaginação, por causa de meios de comunicação
 como a televisão e, mais recentemente, pela internet. Hoje é possível 
imaginar-se nos mais diferentes lugares do mundo, mas também em 
diferentes classes sociais. O que são os videoclipes de funk da 
ostentação que não imagens/imaginações que os jovens produzem sobre o 
que seria pertencer a outra classe social ou possuir melhores condições 
econômicas para o consumo?</p><p>Essa imaginação, segundo esse autor, pode constituir-se como um 
projeto político compartilhado, mas pode também ser apenas uma fantasia,
 como algo individualista e egoísta, sem grandes potenciais políticos. 
Parece-me que o funk da ostentação em São Paulo e movimentos como o dos 
rolezinhos nos shoppings têm intensamente essas duas potências. Difícil 
saber se alguma delas irá prevalecer ou tornar-se hegemônica.</p>
<p><strong>P.</strong> A escolha da música do MC Daleste, assassinado 
num show em Campinas, para o rolezinho promovido no Shopping 
Internacional de Guarulhos, pode ter um significado a mais?</p>
<p><strong>R.</strong> A escolha da música do MC Daleste na entrada dos 
jovens no shopping de Guarulhos me pareceu bastante significativa, por 
vários motivos. Principalmente, porque a morte dele no palco, cantando 
funk, de certa forma construiu um marco para esse funk da ostentação. O 
seu assassinato acabou por dar ainda mais visibilidade a esta vertente 
do funk paulista. MC Daleste cantava proibidão antes e, assim, essa 
relação confusa entre crime e consumo manifesta-se de modo bastante 
forte no que o MC Daleste representa. Há no seu próprio nome artístico 
essa afirmação de um certo orgulho do lugar de onde vem e de ser da 
periferia, que tanto o funk quanto o hip hop expressam. Não é por acaso 
que ele é “Da Leste”. Lembremos que Guarulhos também está à leste da 
Região Metropolitana de São Paulo.</p>
<p><strong>P.</strong> Hoje, uma parte significativa da geração que se 
criou nas periferias com movimentos contestatórios como o hip hop e a 
literatura periférica ou marginal tem, pelo funk da ostentação, assumido
 os valores de consumo das classes médias e alta. Como você analisa este
 fenômeno e o insere no contexto histórico atual do Brasil?</p>
<p><strong>R.</strong> O que um evento como esse parece evidenciar é, 
por um lado, esse anseio por consumir e por afirmar-se pelo consumo que 
esses jovens vêm demonstrando já há algum tempo, pelas letras dos funks,
 mas que também já é visto no hip hop. Apesar das críticas de certos 
segmentos do hip hop, não sei se o funk ostentação rompe com o hip hop 
mais politizado dos anos 1980 e 1990 ou se oferece uma das muitas 
possíveis continuidades a esse movimento cultural. Parece-me que o funk 
ostentação é uma releitura paulista, muito influenciada pelo hip hop, do
 funk carioca. Muitos MCs de funk eram MCs de hip hop, muitos deles, 
além dos funks, cantam também raps, e músicas dos Racionais são ouvidas 
nos shows. Trechos de letras de músicas dos Racionais podem ser 
encontrados facilmente nas letras do funk. Agora, o fato é que o funk 
não é tão marcado pela questão política como o hip hop. O Montanha, de 
Cidade Tiradentes, disse-me algo interessante, certa vez, de que, na 
verdade, o hip hop ofereceria um espaço de expressão política que 
faltava aos jovens, já o funk é um espaço de lazer e de sociabilidade. 
Parece-me uma reflexão interessante. Não que o hip hop não possa conter 
lazer e sociabilidade também, nem o funk, protesto político, mas que as 
duas vertentes tendem para um dos polos. O funk, aliás, ganhou esse 
grande espaço junto aos jovens das periferias de São Paulo porque, nessa
 articulação de um espaço de lazer, configurou-se um espaço para as 
mulheres que, no hip hop, era mais difícil. As mulheres são presença 
fundamental nos bailes funks. O protagonismo da dança sempre foi delas. 
Ainda que os meninos também dancem e as meninas participem cada vez mais
 como MCs. O hip hop sempre foi muito mais masculino, da dança ao estilo
 de se vestir.</p>
<p><strong>P.</strong> Mas qual é a diferença, na sua opinião, entre a 
forma como, por exemplo, os Racionais falam em consumo e os MCs da 
ostentação falam de consumo?</p><p><strong>R.</strong> Há aí duas perspectivas. Quando digo que os 
Racionais já cantavam isso, quero dizer que eles já identificavam essa 
necessidade de consumir da juventude. E de consumir o que eles achavam 
que era bom, nada de consumo consciente. Por isso digo que os Racionais 
já faziam, há mais de dez anos, uma leitura desse anseio por consumir 
dos jovens pobres. Por outro lado, há essa dimensão de movimentos como o
 dos escritores da periferia, promovendo produtos da periferia, pela 
periferia. O funk ostentação começa sem se preocupar com essa questão 
diretamente. Ele não tem dor na consciência por cantar o consumo em suas
 músicas e aderir ao sistema, por exemplo. Porém, indiretamente, se 
acaba chegando a um outro ponto, na medida em que uma parcela 
considerável de jovens da periferia passa a possuir algum tipo de renda 
com a produção do funk. Sejam os meninos que gravam os videoclipes, os 
próprios MCs, mas também empresários, produtores, técnicos e mesmo 
alguns MCs tornando-se empreendedores e criando seus próprios negócios. 
Como o MC Nego Blue, que observando de perto o sucesso das roupas de 
grife entre os jovens, criou a Black Blue, uma loja de roupas cujo 
símbolo é uma carpa colorida. Hoje, além de possuir lojas próprias, já 
vende suas roupas em lojas multimarcas, ao lado de camisas da Lacoste ou
 de outras marcas famosas que os meninos procuram, e por um preço muito 
parecido. Uma das empresas que agencia shows de funk em Cidade 
Tiradentes chama-se justamente “Nóis por nóis”.</p>
<p>Os rolezinhos parecem dizer: não apenas queremos consumir, mas 
queremos ocupar em massa e se divertir aí nos seus shoppings, nos seus 
ou nos nossos. É importante perceber também que os shoppings onde os 
eventos ocorreram estão em regiões mais periféricas, provavelmente 
próximos ao próprio bairro de moradia dos jovens. Por enquanto, eles não
 têm ido aos templos maiores do consumo de luxo na cidade, na região dos
 Jardins, Faria Lima, Marginal Pinheiros etc. Pode haver aí também um 
componente de um termo que surgiu muito forte para mim na pesquisa que 
fiz em escolas de ensino médio, no meu doutorado, que é a ideia do 
“zoar”. Eles querem zoar, que é chamar a atenção para si e se divertir, 
namorar, brincar e, se for preciso, brigar.</p>
<p><strong>P.</strong> Por que, neste momento, o lazer se impõe como uma
 reivindicação desta geração, acima de questões como saúde, educação e 
transporte de qualidade?</p>
<p><strong>R.</strong> Acho que não há uma reivindicação política bem 
formuladinha como acontecia com o hip hop: queremos mais saúde, educação
 e lazer. Eles simplesmente querem estar nos shoppings para zoar e vão. 
Não há essa reflexão mais elaborada que o hip hop produz, é mais 
espontâneo. Esse talvez possa ser um ponto de distinção. E o próprio 
funk é, por si só, lazer e diversão, um dispositivo poderosíssimo para 
dançar e motivar paqueras. O zoar pode ser lido como um ato político, 
mas não me parece intencional. Acho que cria uma tensão que é política, 
que é de disputa de poder pelos espaços da cidade, mas não há um 
manifesto pela zoeira ou pelos rolezinhos, como houve, por exemplo, no 
caso do manifesto da arte periférica dos escritores.</p>
<p><strong>P.</strong> Há também um movimento maior para sair dos guetos
 e ocupar os guetos da classe média? Em massa e não mais 
individualmente, como quando um grupo de rap aparecia numa TV, mesmo 
sendo a MTV, ou um escritor do movimento literário marginal ou 
periférico publicava numa grande editora? Esta é uma novidade 
importante?</p>
<p><strong>R.</strong> Acho que abre, sim, para fora do gueto, do bairro
 onde se vive, mas não para muito longe, pois, afinal, os shoppings para
 os quais eles vão estão do lado de suas casas. Neste sentido, acho que o
 hip hop, apesar de falar mais do gueto, abre-se muito mais para fora do
 gueto, na medida em que conquista um espaço importante nas políticas 
públicas de cultura, por exemplo.</p><p>Claro que esse espaço de lazer é problemático e conflitivo mesmo 
dentro dos bairros das periferias onde moram esses jovens. Se 
entrevistarmos os seus vizinhos, certamente a maioria vai se posicionar 
totalmente favorável à proibição das festas de rua que eles organizam, 
com som alto que muitas vezes toma a madrugada toda. Por isso, acho 
importante não tomar o funk nem como um movimento libertador, nem como o
 grande vilão ou o grande movimento de corrupção da juventude 
contemporânea, como setores mais moralistas, à esquerda e à direita, 
tendem a fazer.</p>
<p>A questão do consumo também me parece problemática. O desejo pelo 
consumo sempre existiu. Bem antes do governo Lula, o processo de 
urbanização induz a esse apego maior ao consumo. Porém, não dá para se 
negar que houve, nos últimos anos, também uma melhora econômica para 
segmentos que antes estavam bastante afastados do mercado. Porém, acho 
que reduzir o sucesso do funk da ostentação a isso é simplificar demais o
 movimento e esquecer que ocorreram e ocorrem movimentos juvenis 
parecidos em outras partes do mundo, como o próprio gangsta rap, nos 
Estados Unidos, no qual os videoclipes se inspiram.</p>
<p>Devemos questionar não a ação dos meninos, mas as relações sociais 
fomentadas na contemporaneidade. É preciso conceder aos jovens, e não 
apenas aos pobres, mas aos de classe média e alta também, outros espaços
 de reconhecimento e de estabelecimento de relações sociais que não 
sejam pautados pela afirmação por meio da posse e do consumo de bens. 
Porque, afinal, como dizem os Racionais, mais uma vez: “Quem não quer 
brilhar, quem não? Mostra quem. Ninguém quer ser coadjuvante de 
ninguém”. De repente, para alguns, ter um tênis caro, um smartphone de 
última geração ou ir ao shopping para zoar, pode ser uma forma 
encontrada para tentar brilhar.</p>
<p><strong>P.</strong> Ao ocupar os shoppings, os adeptos do funk da 
ostentação estariam promovendo sua primeira atitude de insurgência 
contra o sistema, no sentido de: “Vou ocupar o espaço que me é negado ou
 onde não me querem”. É isso? Ou as próprias letras das músicas, 
interpretadas, em geral, como adesão ao sistema, já seriam, de fato, uma
 insurgência, na medida que se apropriam, simbolicamente, dos valores da
 elite e da classe média e, agora, com os rolezinhos, também de seus 
espaços físicos?</p>
<p><strong>R.</strong> Sim, acho que essa é a maior irritação da classe 
média com esses movimentos. Basta ver os comentários aos videoclipes no 
YouTube, irritados com os meninos ostentando e exibindo-se com produtos 
mais caros, que não deveriam estar com aqueles meninos, pobre e negros, 
em sua maioria. Esta é a principal insurgência que eles provocam. A 
classe média, de uma maneira geral, a mais pobre ou a mais rica, a mais 
ou menos intelectualizada, irrita-se bastante quando os subalternos 
compram bens caros, mesmo antes deles. Já ouvi comentários indignados, 
do tipo: “Minha empregada comprou uma televisão de última geração, 
melhor do que a minha”. Isso tem antecedentes históricos que parecem 
refletir até hoje. James Holston, ainda no livro sobre cidadania 
insurgente, que citei anteriormente, traz como exemplo a legislação 
colonial portuguesa, que proibia aos negros o uso de joias e artigos 
considerados finos...</p>
<p><strong>P.</strong> Parece que os “rolezeiros” dos shoppings estão 
ocupando o mesmo lugar simbólico dos “vândalos” nas manifestações, na 
narrativa feita por parte da grande mídia e pelas autoridades 
instituídas. Como você interpreta essa reação?</p><p><strong>R.</strong> O que me assustou de verdade nessa história toda 
foram as reações, de mídia e de polícia, condenando e mandando prender, 
mesmo em casos em que disseram que não houve arrastões, mas correrias. 
Fico questionando quem provocou a correria: os jovens ou a ação dos 
seguranças e da polícia? Eventos como estes revelam também uma faceta 
complicada e extremamente preconceituosa da classe média brasileira. Dei
 uma entrevista curta para o site de um grande grupo de comunicação e 
fiquei assustado ao ler os comentários dos leitores, de um ódio terrível
 contras os meninos e meninas que foram aos shoppings, contra os pobres,
 contra mim, que tive uma fala dissonante na entrevista, ressaltando a 
forma preconceituosa com que tal tema vinha sendo tratado. Ao falarem do
 evento, algumas palavras utilizadas como categorias de acusação contra 
os jovens e as jovens foram bastante reveladoras do preconceito, e mesmo
 do racismo, deste segmento social: “favelados”, “maloqueiros”, 
“bandidos”, “prostitutas” e “negros”. Nesse último caso, inclusive, fica
 evidente o racismo que aparece em muitos comentários dessa notícia, mas
 também nas comunidades dos rolezinhos que os jovens criaram nas redes 
sociais. Um dos comentários pede para que os jovens voltem para a 
África. Isso é muito grave. Revela esse profundo racismo entranhado em 
parcela considerável da população. Como se tal sociedade dissesse, por 
meio dos representantes dos shoppings, da mídia e da polícia, brincando 
um pouco com a questão das manifestações de junho: “Vocês, pobres, podem
 consumir, mas ir ao shopping em grandes grupos, só para zoar e cantar 
funk, aí já é vandalismo”.</p>
<p><strong>P.</strong> A classe média é racista?</p>
<p><strong>R.</strong> O que chamamos de classe média não é um todo 
homogêneo. É possível segmentá-la em diferentes níveis e a partir de 
diferentes contextos, é possível pensar em uma classe média 
intelectualizada ou não intelectualizada. Contudo, parece-me que a 
divisão mais importante para se pensar a classe média em São Paulo é a 
que se dá por critérios socioeconômicos e espaciais. Há a classe média 
que está concentrada principalmente no entorno do eixo central, que vai 
do Centro a Pinheiros, passando pela Avenida Paulista e bairros 
próximos. Esta, em sua maioria, vive numa bolha e tem poucos contatos 
com outras classes sociais, com exceção dos trabalhadores subalternos: 
porteiros, empregadas domésticas etc. Para esta, em grande medida, o 
Shopping Itaquera pode estar mais distante do que Paris ou Londres.</p>
<p>Porém, há também certa classe média baixa que vive na periferia. 
Citando novamente o Holston, ele fala de uma diferenciação que se 
produziu nas periferias de São Paulo entre aqueles que compraram seus 
terrenos, ainda que por meio de contratos obscuros, e aqueles que 
ocuparam os espaços da cidade, formando as favelas. Essa pequena 
diferença não cria um grande abismo econômico, mas produz uma profunda 
diferenciação, por meio do qual um grupo estigmatiza o outro. Já vi um 
indivíduo desta classe média da periferia questionando programas como o 
bolsa família, porque tinha visto potes vazios de iogurte no lixo da 
favela. Este indivíduo afirmava que nem ele consumia iogurte com tanta 
frequência, como eles se davam ao direito de consumir tal produto, que 
era um luxo, raro, mas sobre o qual ele detinha certa exclusividade?</p>
<p>A questão do auxílio aos mais pobres, principalmente o bolsa família,
 é um forte fator de estigmatização por parte desses diferentes 
segmentos da classe média, mas principalmente por parte dessa classe 
média da periferia. Estive, recentemente, em uma escola pública próxima a
 uma grande favela de São Paulo. Segundo os professores, um dos 
problemas daquela escola era o fato de que 90% dos alunos vinham da 
favela vizinha. E que, hoje, esses alunos estavam muito acomodados, pois
 viviam de bolsas e na favela tinham tudo muito fácil, com a grande 
quantidade de projetos presentes por lá. Inclusive, projetos de música, 
ressaltou um professor. É muito importante refletir sobre isso, porque 
esses professores, se não moram na favela, são vizinhos dela. Mas, ainda
 assim, permitem-se diferenciar-se dos jovens por questões muito 
pequenas. E são estes professores os responsáveis por formar esses 
jovens. Será que, com este olhar, são capazes de lutar para que a escola
 se torne um espaço de convivência, afirmação e reconhecimento para os 
jovens?</p>
<p><strong>P.</strong> Como você, que tem acompanhado o cotidiano de escolas públicas, em São Paulo, percebe a educação?</p><p><strong>R.</strong> É necessário pensarmos em uma educação para as 
diferenças, para que não caiamos mais na armadilha da intolerância e das
 análises apressadas e preconceituosas de setores das elites e das 
camadas médias, ao se referirem aos “subalternos”. Lembro-me de um 
documentário português, que vale a pena ser assistido, sobre a história 
de um arrastão que não existiu. <a href="http://brasil.elpais.com/brasil/2013/12/23/opinion/%20http://www.dailymotion.com/video/xe4px_era-uma-vez-um-arrastao_news" target="_blank">Chama-se: “Era uma vez um arrastão” (assista</a> <strong>aqui</strong>).
 Nele, conta-se do dia em que jovens caboverdianos ou descendentes de 
caboverdianos resolveram frequentar a nobre praia de Carcavelos, em 
Portugal. A polícia, ao ver a concentração de jovens de origem africana,
 assustou-se e resolveu intervir, provocando uma grande correria, que 
foi noticiada como arrastão. Mas, de fato, os jovens fugiam da repressão
 policial gratuita. Isso talvez nos ensine algo sobre os arrastões que 
estamos a criar todo dia, criminalizando jovens pobres cotidianamente.</p>
<p>Quando estive pesquisando em escolas públicas da periferia de São 
Paulo, era comum ouvir dos professores que, naquela escola, os alunos 
eram todos bandidos ou marginais. O discurso da criminalização é efetivo
 e poderoso e condena muita gente ao fracasso escolar e mesmo ao crime. O
 sociólogo polonês Zygmunt Bauman, num livro sobre educação e juventude,
 ressalta a necessidade cada vez mais premente, na contemporaneidade, de
 desenvolvermos a arte de conviver com os estranhos e a diferença. Em 
especial num mundo no qual as migrações tendem a aumentar cada vez mais.
 No nosso caso, não foi preciso a chegada de estrangeiros para a 
expressão das mais brutais formas de preconceito, pois os estrangeiros 
éramos nós, os brasileiros. Mas brasileiros que moram muito, muito 
distante, ainda que vizinhos. Moram em Guaianazes, Capão Redondo, 
Grajaú, Cidade Ademar, Cidade Tiradentes, Vila Brasilândia...</p>
<p><strong>P.</strong> Em que medida, na sua opinião, os rolezinhos se ligam às manifestações de junho?</p>
<p><strong>R.</strong> Acho que não há uma ligação direta. Mas, 
indiretamente, é possível perceber a reivindicação comum do uso do 
espaço público e de quebra das marcas da segregação. Lembro-me que, 
antes das manifestações de junho, para a imprensa conservadora era um 
tabu ocupar a Avenida Paulista. Os movimentos sociais mostraram que não 
apenas não era um tabu, como era um direito, o direito de ir às ruas e 
ocupá-las para protestar. Os rolezinhos não parecem ter uma pauta tão 
clara, mas também estão, ainda que indiretamente, dizendo: “Vocês não 
disseram que era bom consumir? Pois bem, nós também queremos!”</p>
<p><strong>P.</strong> Essa ocupação de espaços que supostamente 
pertenceriam a “outros”, tanto no caso das manifestações como no caso 
dos rolezinhos, parece marcar uma novidade importante. O que está 
acontecendo?</p>
<p><strong>R. </strong> Acho que a novidade está aí, mas é difícil dizer
 o que está acontecendo ou o que acontecerá. Pode ser apenas um surto – 
algo parecido com o que foi a revolta da vacina como reação às propostas
 políticas opressoras de reforma sanitária do Rio de Janeiro, por 
exemplo – ou pode ser uma nova forma de pensar os espaços públicos e 
privados nas cidades brasileiras. Porém, é difícil prever. Os rolezinhos
 podem ter acabado nesta semana, por exemplo. E movimentos como os de 
junho não se repetiram com tanta intensidade e repercussão. Contudo, o 
que movimentos como estes garantem é a possibilidade de se tensionar 
essa ocupação dos espaços urbanos, amplamente negada até então.</p><p><strong>P.</strong> Por que este nome, rolezinho? E que significados ele contém?</p>
<p><strong>R.</strong> Rolezinho é um termo que está diretamente ligado à
 ideia de lazer. De sair para se divertir e usufruir da cidade. Os 
pichadores, com os quais realizei pesquisa no mestrado, também usam a 
ideia de rolê, para se referirem às suas pichações. Com isso estão 
dizendo que pichar é dar voltas para conhecer e se apropriar da cidade. 
Parece que, por este termo, indiretamente, podemos entender uma 
reivindicação pelo direito de se divertir na cidade.</p>
<p><strong>P.</strong> Divertir-se na cidade não seria um ato de insubordinação para jovens pobres e negros? Talvez até o maior ato de insubordinação?</p>
<p><strong>R.</strong> Sim, principalmente numa sociedade em que pobres e
 negros têm que trabalhar – e apenas trabalhar – sem reclamar. Lembremos
 de que a ROTA, no final do regime militar, atuava nas periferias 
abordando os moradores e cobrando-lhes a carteira profissional como 
prova de que eram trabalhadores e não vagabundos. Devotados, portanto, 
ao trabalho e não à diversão. Agora, claro que esses jovens não estão 
pensando exatamente nisso. Querem muito mais é se divertir.</p>
<p><strong>P.</strong> Como entender este fenômeno, que é, ao mesmo tempo, uma insubordinação e uma adesão ao sistema?</p>
<p><strong>R. </strong> Acho que a melhor palavra é paradoxo. O funk da 
ostentação em São Paulo é paradoxal: não dá para situá-lo num polo ou 
noutro, dentro do modo tradicional de pensar a política. Conservador ou 
revolucionário? Nenhum dos dois, mas com possibilidade para os dois ao 
mesmo tempo.</p>
<strong></strong><p><br></p><br><br>-- <br><div dir="ltr"><div>carlos palombini<br>professor de musicologia ufmg<br><a href="http://proibidao.org" target="_blank">proibidao.org</a><br></div><a href="http://ufmg.academia.edu/CarlosPalombini" target="_blank">ufmg.academia.edu/CarlosPalombini</a><br>
<a href="http://scholar.google.com.br/citations?user=YLmXN7AAAAAJ" target="_blank"><span style="display:block">scholar.google.com.br/citations?user=YLmXN7AAAAA</span></a><br><div></div><div></div><div></div><div></div><div>
</div><div></div><div></div><div></div><div></div><div></div><div></div><div></div><div></div><div></div></div>
<div style id="__af745f8f43-e961-4b88-8424-80b67790c964__"></div></div>