<div dir="ltr"><h2 class=""><font><span style="font-weight:normal">Acho que este texto responda sua pergunta, Hugo.</span></font><br></h2><h2 class="">Crônica</h2>
            <h1 class="">"Os empregados têm carro e andam de avião. Eu estudei tanto pra quê?"</h1>
        
    
                             
                                 
                                 
            
                <div id="parent-fieldname-description" class="">
                   Se você, a exemplo dos professores que fizeram 
galhofa sobre homem "mal-vestido" no aeroporto, já se fez esta pergunta,
 parabéns: você não aprendeu nada
                </div>
            
            
        
                             

                             <div class="" id="plone-document-byline">
  

  
  
    <span class="">
      por <a href="http://www.cartacapital.com.br/autores/Matheus-Pichonelli">Matheus Pichonelli</a>
         —
    </span>
  
  

  
  <span class="">
    <span>publicado</span>
    07/02/2014 13:20,
  </span>

  <span class="">
    <span>última modificação</span>
    07/02/2014 14:40
  </span>
  

  

  

  

  

</div><br><div><p>O condômino é, antes de tudo, um especialista no tempo. Quando 
se encontra com seus pares, desanda a falar do calor, da seca, da chuva,
 do ano que passou voando e da semana que parece não ter fim. À primeira
 vista, é um sujeito civilizado e cordato em sua batalha contra os 
segundos insuportáveis de uma viagem sem assunto no elevador. Mas tente 
levantar qualquer questão que não seja a temperatura e você entende o 
que moveu todas as guerras de todas as sociedades em todos os períodos 
históricos. Experimente. Reúna dois ou mais condôminos diante de uma 
mesma questão e faça o teste. Pode ser sobre um vazamento. Uma goteira. 
Uma reforma inesperada. Uma festa. E sua reunião de condomínio será a 
prova de que a humanidade não deu certo.</p>
<p>Dia desses, um amigo voltou desolado de uma reunião do gênero e 
resolveu desabafar no Facebook: “Ontem, na assembleia de condomínio, 
tinha gente 'revoltada' porque a lavadeira comprou um carro. ‘Ganha 
muito’ e ‘pra quê eu fiz faculdade’ foram alguns dos comentários. Um dos
 condôminos queria proibir que ela estacionasse o carro dentro do 
prédio, mesmo informado que a funcionária paga aluguel da vaga a um dos 
proprietários”.</p>
<p>Mais à frente, ele contava como a moça havia se transformado na peça 
central de um esforço fiscal. Seu carro-ostentação era a prova de que 
havia margem para cortar custos pela folha de pagamento, a começar por 
seu emprego. A ideia era baratear a taxa de condomínio em 20 reais por 
apartamento.</p>
<p>Sem que se perceba, reuniões como esta dizem mais sobre nossa 
tragédia humana do que se imagina. A do Brasil é enraizada, incolor e 
ofuscada por um senso comum segundo o qual tudo o que acontece de ruim 
no mundo está em Brasília, em seus políticos, em seus acordos e seus 
arranjos. Sentados neste discurso, de que a fonte do mal é sempre a 
figura distante, quase desmaterializada, reproduzimos uma indigência 
humana e moral da qual fazemos parte e nem nos damos conta.</p>
<p>Dias atrás, outro amigo, nascido na Colômbia, me contava um fato que 
lhe chamava a atenção ao chegar ao Brasil. Aqui, dizia ele, as pessoas 
fazem festa pelo fato de entrarem em uma faculdade. O que seria o começo
 da caminhada, em condições normais de pressão e temperatura, é tratado 
muitas vezes como fim da linha pela cultura local da distinção. O ritual
 de passagem, da festa dos bixos aos carros presenteados como prêmios 
aos filhos <i>campeões</i>, há uma mensagem quase cifrada: “você 
conseguiu: venceu a corrida principal, o funil social chamado 
vestibular, e não tem mais nada a provar para ninguém. Pode morrer em 
paz”.</p>
<p>Não importa se, muitas e tantas vezes, o curso é ruim. Se o professor
 é picareta. Se não há critério pedagógico. Se não é preciso ler duas 
linhas de texto para passar na prova. Ou se a prova é mera formalidade.</p>
<p>O sujeito tem motivos para comemorar quando entra em uma faculdade no
 Brasil porque, com um diploma debaixo do braço, passará automaticamente
 a pertencer a uma casta superior. Uma casta com privilégios inclusive 
se for preso. Por isso comemora, mesmo que saia do curso com a mesma 
bagagem que entrou e com a mesma condição que nasceu, a de indigente 
intelectual, insensível socialmente, sem uma visão minimamente crítica 
ou sofisticada sobre a sua realidade e seus conflitos. É por isso que 
existe tanto babeta com ensino superior e especialização. Tanto médico 
que não sabe operar. Tanto advogado que não sabe escrever. Tanto 
psicólogo que não conhece Freud. Tanto jornalista que não lê jornal.</p>
<p>Função social? Vocação? Autoconhecimento? Extensão? Responsabilidade 
sobre o meio? Conta outra. Com raras e honrosas exceções, o ensino 
superior no Brasil cumpre uma função social invisível: garantir um selo 
de distinção.</p>
<p>Por isso comemora-se também à saída da faculdade. Já vi, por exemplo,
 coordenador de curso gritar, em dia de formatura, como líder de torcida
 em dia de jogo: “vocês, formandos, são privilegiados. Venceram na vida.
 Fazem parte de uma parcela minoritária e privilegiada da população”; em
 tempo: a formatura de um curso de odontologia, e ninguém ali sequer 
levantou a possibilidade de que a batalha só seria ganha quando 
deixássemos de ser um país em que ter dente é, por si, um privilégio.</p>
<p>Por trás desse discurso está uma lógica perversa de dominação. Uma 
lógica que permite colocar os trabalhadores braçais em seu devido lugar.
 Por aqui, não nos satisfazemos em contratar serviços que não queremos 
fazer, como lavar, passar, enxugar o chão, lavar a privada, pintar as 
unhas ou dar banho em nossos filhos: aproveitamos até as últimas 
conseqüências o gosto de dizer “estou te pagando e enquanto estou 
pagando eu mando e você obedece”. Para que chamar a atenção do garçom 
com discrição se eu posso fazer um escarcéu se pedi batata-fria e ele me
 entregou mandioca frita? Ao lembrá-lo de que é ele quem serve, me 
lembro, e lembro a todos, que estudei e trabalhei para sentar em uma 
mesa de restaurante e, portanto, MEREÇO ser servido. Não é só uma 
prestação de serviço: é um teatro sobre posições de domínio. Pobre o 
país cujo diploma serve, na maioria dos casos, para corroborar estas 
posições.</p>
<p>Por isso o discurso ouvido por meu amigo em seu condomínio é ainda 
uma praga: a praga da ignorância instruída. Por isso as pessoas se 
incomodam quando a lavadora, ou o porteiro, ou o garçom, “invade” 
espaços antes cativos. Como uma vaga na garagem de prédio. Ou a 
universidade. Ou os aeroportos.</p>
<p>Neste caldo cultural, nada pode ser mais sintomático da nossa 
falência do que o episódio da professora que postou fotos de um 
“popular” no saguão do aeroporto e se questionaram no Facebook: “Viramos
 uma rodoviária? Cadê o glamour?”. (Sim, porque voar, no Brasil, também 
é, ou era, mais do que se deslocar ao ar de um local a outro: é lembrar 
os que rastejam por rodovias quem pode e quem não pode pagar para andar 
de avião).</p>
<p>Esses exemplos mostram que, por aqui, pobre pode até ocupar espaços 
cativos (não sem nossos protestos), mas nosso diploma e nosso senso de 
distinção nos autorizam a galhofa: “lembre-se, você não é um de nós”. 
Triste que este discurso tenha sido absorvido por quem deveria ter como 
missão a detonação, pela base e pela educação, dos resquícios de uma 
tragédia histórica construída com o caldo da ignorância, do privilégio e
 da exclusão.</p></div>-- <br><div dir="ltr"><div>carlos palombini<br>professor de musicologia ufmg<br><a href="http://proibidao.org" target="_blank">proibidao.org</a><br></div><a href="http://ufmg.academia.edu/CarlosPalombini" target="_blank">ufmg.academia.edu/CarlosPalombini</a><br>
<br></div>
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