[SECURITY-L] Novo Código Civil não se aplica aos spammers

Silvana Mieko Misuta mieko em ccuec.unicamp.br
Sex Jan 17 11:31:38 -02 2003


De fora
Novo Código Civil não se aplica aos spammers


João Campos*


Lamentavelmente, não sou otimista quanto à aplicação do novíssimo
(talvez não tão novíssimo assim depois de 30 anos de tramitação), embora
respeite as ponderáveis opiniões em contrário, emanadas de grandes
juristas nacionais.

Alguns artigos citados pelos especialistas, sequer são novos, o que me
autoriza a dizer que não foram aplicados antes e não serão utilizados
agora. De fato, os arts. 159, 1.521 e seguintes do código antigo tinham
o mesmo sentido, com diferenças apenas cosméticas, dos atuais 187, 927,
1.011, 1.016 do diploma que entrou em vigor no dia 11 de janeiro.

Sou um combatente do spam, fato que já meu deu grandes dores de cabeça,
embora me tenha granjeado a solidariedade de internautas daqui e de
fora. Por isso, eu seria o primeiro a tentar vergar os artigos do novo
Código Civil a favor das teses que venho defendendo (privacidade,
idoneidade dos administradores de sites, comércio ético e lícito, etc.).

Estou, contudo, entre os que dizem que comércio eletrônico e Internet
ficaram fora do novo código e invoco em defesa desse entendimento a
palavra do próprio relator, Ricardo Fiúza, que, nas páginas 14 e 15 da
Introdução de seu "Novo Código Civil Comentado", Edição Saraiva, 2003,
afirma:

"Reclamam alguns da ausência de temas novos, tais como a clonagem,
negócios eletrônicos, dentre outros vários que ainda não estão
pacificados na doutrina, muito menos na jurisprudência dos tribunais,
quando é notório que nos Códigos devem figurar apenas matérias
consolidadas, sedimentadas, estratificadas na consciência jurídica
nacional".

E termina dizendo:

"Vê-se, portanto, caro leitor, que não poderia o novo Código pretender
tudo disciplinar. Se tivéssemos, de alguma forma, tratado desses temas
que acabei de abordar, certamente o novo Código, em curtíssimo espaço de
tempo, já estaria superado, em decorrência da evolução natural da
ciência".

De fato, não existe lei específica, apenas um bom projeto em andamento
(Projeto de Lei 4.906/01), que já foi aprovado pela Comissão Especial de
Ciência, Tecnologia e Informação da Câmara dos Deputados, além da Medida
Provisória 2.200, que trata de Certificação Digital.

O projeto remete a proteção do usuário diretamente ao Código de Defesa
do Consumidor (Lei 8.078/90), que hoje, ao lado do Código Civil, passou
a ser lei importantíssima.

Exige, ainda, o projeto as empresas mantenham atendimento on-line e
permite ao comerciante solicitar quando muito os dados necessários a
realização da venda. As informações cadastrais dos clientes só podem ser
usadas com autorização expressa do interessado, ou seja, consagra o
"marketing de adesão".

Finalmente, para não me alongar, há no projeto incentivo à arbitragem,
desde que previamente acordada pelas partes, o que viria aliviar o
acúmulo de disputas judiciais. Mas, desafortunadamente, mesmo nesse
excelente projeto, o spam continua o grande ausente.

Os artigos acima citados, que alguns colegas entendem aplicáveis ao
mundo da eletrônica, do spam e da Internet, ainda que o próprio relator
não o dissesse, estão longe de enfrentar essas questões.

O artigo 186 repete o artigo 159 do código anterior, que já tratava da
indenização devida pelo causador de algum dano a alguém. O problema é
que o spammer considera sua atividade lícita, uma propaganda normal ou,
como quis uma juíza sul-mato-grossense, uma simples mala-direta!

Dizem alguns juristas que o artigo 187, que considera ato ilícito o uso
de algum direito cometendo alguns excessos, se aplicaria à prática do
spam, mas, no meu entender, não é bem assim.

Um fotógrafo profissional que passe a fotografar crianças em poses
eróticas se enquadra, certamente, nesse artigo. Mas, além de ser terreno
movediço saber o que são os tais "limites impostos pelo seu fim
econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes", o spammer diz
que não comete qualquer excesso, que está anunciando um produto lícito e
não invadindo sua "casa" virtual...

O artigo 21 já estava na Constituição Federal, era auto-aplicável e, no
entanto, nunca foi respeitado nos julgamentos contra spammers. Era
sempre a mesma história: entrar no computador não é invadir a
intimidade.

De qualquer forma, acho positiva a inclusão do dispositivo
constitucional na lei ordinária, pois reafirma o tema privacidade como
valor social e individual. Afinal, a Internet sempre foi vista como um
grande "Big Brother" internacional, onde todo mundo espia todo mundo...

O atual artigo 927 substitui a seqüência do artigo 1.521 e seguintes do
antigo código, que estabeleciam a responsabilidade do patrão por atos do
empregado, do dono da empresa pelo administrador e assim por diante.
Mas, de novo, o problema dos crimes ou abusos eletrônicos está na sua
tipificação e não na falta de leis.

Os artigos 1.011 e 1.016, que também substituem artigos da seqüência
acima referida, se aplicáveis à Internet, poderiam ser invocados em
defesa dos próprios spammers! Pois, não dizem eles, quando estão
administrando provedores de Internet e vendendo maillings, que estão
apenas praticando bom marketing e agindo licitamente?

Assim, quanto mais e-mails mandarem para atazanar a nossa vida, mais
satisfação estarão dando a seus clientes, as empresas usuárias dessa
nefasta propaganda. Estão, parafraseando novamente a juíza acima citada,
sendo eficientes no exercício do marketing eletrônico.

Exemplificando com parte do artigo 1.016, para o qual os
"administradores respondem solidariamente perante a sociedade e os
terceiros prejudicados, por culpa no desempenho de suas funções", lembro
que para os defensores dos spammers:

a- os milhões de internautas não são vítimas ou prejudicados, mas
"felizes integrantes" de uma poderosa ferramenta publicitária chamada
"mailling".

b- não se fala em "culpa no desempenho de suas funções", que não
consideram ilícitas, mas atividade econômica não proibida em lei.

Enquanto a lei não disser que o envio de propaganda não solicitada é
crime - tipificar o delito -, nada se conseguirá contra o spamming.

Processar o provedor ou o próprio spammer baseado no Código do
Consumidor será um gesto de pouco alcance, se o fundamento for a remessa
de propaganda sem solicitação, já que esse Código considera essa
propaganda uma espécie de "amostra grátis". Nada mais. Para o spammer
continua uma festa! Enquanto, repito, a remessa propriamente dita não
for considerada prática ilícita, a ação dificilmente terá sucesso.

Note-se que a simples invasão não é considerada em nosso Direito, e sim
o uso comercial dos dados adquiridos ilicitamente. Curiosamente, os
provedores usam para proteger o spammer o mesmo argumento que deveria
nos socorrer, como vítimas do spam. Quando acionados, dizem que "não
podem invadir a privacidade" do seu cliente, do spammer, do anunciante.
Não vale para a vítima, mas vale para o provedor!

Uma lei mais rígida seria a salvação da lavoura? Seria, no mínimo, um
bom começo. Mas, como já disse, a lei precisa especificar o que é
propaganda lícita e o que é abuso. Enquanto houver essa promiscuidade,
essa indefinição, inclusive com alguns marketeiros repisando que a
publicidade eletrônica é um avanço (e como é lucrativo!), o usuário terá
pouca defesa.

É verdade que anunciar em um site é uma atividade lícita se ficasse
apenas nisso. Afinal, eu posso consultar o site, ver o anúncio e
acessá-lo, se o produto me interessar. O abuso ocorre quando esse
anúncio é mandado ao meu endereço eletrônico, aos magotes, aos milhões,
à minha custa.

A questão central é a que já coloquei em uma ação contra spammers: meu
computador é uma extensão de minha casa e nele só poderá entrar quem por
mim for convidado. É isso que precisa ir para o texto de lei. O resto é
perfumaria.

E o que dizer dos spams remetidos do exterior? Nesse caso, praticamente
nada há a fazer. Muitos países, aliás, querem que a Internet tenha um
tráfego absolutamente livre. Rastreei, há pouco tempo, um site desses
até as Bahamas. Contactei colegas advogados britânicos e desisti: lá a
lei não só permite esse "comércio" (sequer há proibição de drogas ou
pornografia) como ainda incentiva abertamente a vinda de sites ilegais
de todas as partes do mundo.

Não por acaso, esses países que já eram chamados "paraísos fiscais",
agora são chamados paraísos da pornografia e do jogo ilegal.

Nesse sentido, minha esperança reside nos tratados internacionais
(alguns dos quais estão tentando contemplar a Internet), que poderão
regular, senão o envio, pelo menos o montante das indenizações
aplicáveis em cada caso. Se o crime é inevitável, pelo menos que seja
lucrativo também para a vítima...

Conclusão

Enquanto não temos uma lei suficientemente severa para desestimular os
spammers, que o alvo de todas as reclamações e ações cíveis e penais
sejam os vendedores de cadastros. Nesse ponto, a única inovação a
comemorar é o artigo 16 do novo código ("Toda pessoa tem direito ao
nome, nele compreendidos o prenome e o sobrenome"), único, a meu ver,
aproveitável na guerra contra o spam.

Se tenho direito ao meu nome, bem principal, tenho também o direito de
proibir (bem acessório) a sua venda a quem quer que seja. Se uma
indústria me manda uma propaganda de chocolate, comprou meu nome de
alguém, e posso chamá-la em juízo e obrigá-la a revelar quem vendeu uma
lista com meu nome. Com o tempo, o custo de tantas demandas tornará
proibitiva e temerária qualquer propaganda por e-mail. É por aí que
vamos.

Revista Consultor Jurídico, 16 de janeiro de 2003.

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João Campos é advogado especializado em Direito do Consumidor em Campo
Grande/MS, autor do "Manual do Consumidor Indignado" e autor da primeira
ação contra a prática do spam no Brasil.

http://conjur.uol.com.br/view.cfm?id=16239&ad=a





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