[ANPPOM-L] FWD: entrevista com o compositor Flo Menezes

Jos=?ISO-8859-1?B?6SA=?=Luiz Martinez rudrasena em uol.com.br
Qua Jul 11 11:35:27 BRT 2007


Folha de São Paulo

Odisséia eletroacústica

Por Humberto Pereira da Silva

O compositor Flo Menezes, que lança novo livro, ataca o nacionalismo
brasileiro e critica o culto à Villa-Lobos

Flo Menezes, nascido em 1962, é um dos criadores mais representativos da
música erudita brasileira atual, com obras constantemente executadas em
diversos centros de música contemporânea do país e da Europa. Filho do poeta
Florivaldo Menezes -identificado com os concretistas Augusto e Haroldo de
Campos e Décio Pignatari- e irmão do poeta Philadelpho Menezes (1960-2000),
desde adolescente viveu ambiente propício para a trajetória que seguiu.

Ele caminha com desenvoltura singular entre a elaboração teórica -em 1987
desponta com ³Apoteose de Schoenberg² (Nova Stella/Edusp; a segunda edição é
de 2002, pela Ateliê Editorial)- e a criação: compositor premiado pela
Unesco em Paris, em 1989, pela Trimalca em Mar del Plata, em 1993, e
vencedor do prestigioso Prix Ars Electronica de Linz, Áustria, com a obra
eletroacústica ³Parcours de l´Entité², em 1995.

Aluno de Willy Corrêa de Oliveira na USP entre 1980 e 1985, em seguida
deixou o Brasil por quase dez anos, momento em que estudou com os renomados
Pierre Boulez e Luciano Berio. Em 1992 doutorou-se pela Universidade de
Liège (Bélgica), com tese orientada por Henri Pousseur, que logo ganhou
reputação internacional e que versa sobre a história da música
eletroacústica.

De volta ao Brasil em 1992, fixou-se como professor de composição na Unesp,
onde fundou o Studio PANaroma de Música Eletroacústica da Unesp/Fasm e criou
o Cimesp (Concurso Internacional de Música Eletroacústica de São Paulo) e a
Bimesp (Bienal Internacional de Música Eletroacústica de São Paulo).

Estudioso disciplinado, rigoroso e com visão polimática dos diversos
aspectos da história da arte, senhor de escrita tão sedutora quanto vigorosa
e com posições ³fortes² sobre as controvérsias que envolvem a criação
artística, ele publica agora o caudaloso ³Música Maximalista: Ensaios Sobre
a Música Especulativa e Radical² (Editora Unesp, 548 págs.), que cobre um
percurso teórico iniciado pouco mais de 20 anos atrás.

Na entrevista a seguir, Flo Menezes fala da questão da compreensão técnica
da música e de sua posição antinacionalista. Para ele, ³todo nacionalismo
beira o caquético. Mas o nacionalismo brasileiro, além desse seu aspecto
conservador, apresenta-se como anacrônico, condizente com a ditadura de
Vargas.²

O compositor também dispara contra o culto nacional à Villa-Lobos: ³É-se
forçado, aqui, a venerar Villa-Lobos como um gênio nacional, quando na
verdade trata-se de um compositor de talento e autor de algumas obras muito
boas, mas igualmente de uma grande quantidade de obras medíocres, cujo
número ultrapassa, de longe, os feitos bem-sucedidos².

*

O conceito de ³música maximilista², que serve de título ao seu novo livro,
foi criado em 1983, no Masp, em um programa de concerto com suas obras. Esse
conceito se aplica exclusivamente à música eletroacústica ou pode-se
estendê-lo inclusive para composições que se situam no âmbito do tonalismo?

Flo Menezes: De modo algum o conceito relativo a ³maximalismo² restringe-se
ao universo eletroacústico. Aliás, quando o introduzi, em 1983, nem
enveredava ainda pela odisséia eletroacústica, o que veio a se concretizar
apenas a partir de 1985. O maximalismo refere-se a toda e qualquer escuta da
complexidade, a uma condição labiríntica ou, para falarmos com Luciano Berio
(e com o poeta Edoardo Sanguineti, um de seus colaboradores), ³laboríntica²
da escuta. A um labirinto decorrente de duro ³labor² e no qual, como quer
Pierre Boulez, possamos nos perder.

Picasso dizia que preferia primeiro achar para depois procurar. Mas para
³achar², é preciso se perder. Desatar as amarras das convenções e forçar a
percepção sonora como os músculos em um exercício rotineiro em uma academia
de ginástica! Com a diferença de que, ao exercitar por demais os músculos,
tem-se a tendência a uma diminuição da massa cerebral, enquanto que o
exercício contínuo e sistemático de uma escuta complexa faz com que
dilatemos nosso cérebro (se não física, ao menos intelectual e
psiquicamente), e quem sabe possamos ter nosso cérebro, um dia, pesando os
cerca de 4 kg que pesava o cérebro de Trotsky, como bem relatou Isaac
Deutscher em sua extraordinária biografia sobre o maior dos políticos do
século XX.

Em suma: toda obra fenomenologicamente complexa implica maximalismo, e isto
estende-se -como aliás deixo claro no prefácio de ³Música Maximalista²- a um
Liszt, a um Monteverdi, enfim, a todos aqueles que, em seus respectivos
tempos, constituíram a vanguarda mais autêntica da composição.


No livro você faz referência aos termos ³música radical² e ³música
especulativa². Esses termos deixam às vezes a sensação de que se opõem à
música tonal: anterior, portanto, às inovações introduzidas por Schoenberg.
Eu gostaria que você falasse sobre eles.

Menezes: A tonalidade imperou por alguns séculos por constituir, ao longo da
história, a mais perfeita sistematização das hierarquias harmônicas de que o
homem foi capaz.

Opor-se ao tonalismo seria uma idiotice. Maravilhar-se com ele no dia-a-dia,
revisitando os mestres do passado, é algo imprescindível a todo Músico com
³m² maiúsculo. Mas igualmente limitada é a visão de que um sistema harmônico
-ou qualquer ³sistema² que seja, no terreno estético- tenha que exercer suas
funções até seu completo esgotamento para que dê lugar a algum outro tipo de
sistematização enquanto proposta que se instaura de modo propulsor para
novos caminhos da linguagem musical.

Mesmo porque será difícil dizer que algo possa, de fato, esgotar-se por
completo, e o ³giro em falso² institui-se como uma condição tipicamente
humana (haja vista o que ocorre, se transplantarmos a questão ao âmbito
econômico e político, com o capitalismo e sua quase permanente agonia).

Determinadas condições históricas, das quais se originam proposições tão
inevitáveis quanto necessárias, acabam por gerar conseqüências especulativas
que enveredam por outros caminhos (ou até mesmo descaminhos), mesmo que as
portas dos sistemas anteriores insistam em permanecer abertas,
principalmente para espíritos menos arrojados e mais conservadores.

Nesse sentido, a mais instigante composição é aquela que é, em essência,
especulativa. Disso tinham consciência mestres do passado remoto, de Jean de
Muris na Idade Média ao Barroco de Gioseffo Zarlino, isto sem falarmos de
compositores mais próximos de nossa época, como Igor Stravinsky.


Você defende à identificação entre ética e estética, sustentada pelo
filósofo Ludwig Wittgenstein. E com espírito wittgensteiniano sentencia: ³A
música é uma matemática dos afetos². Mas dos afetos -como da matemática-,
Wittgenstein pondera que se trata do indizível. Você crê, à maneira de
Wittgenstein, que o valor da música se pode mostrar, mas não se pode falar?

Menezes: Talvez nesse ponto eu não seja assim tão ³wittgensteiniano² quanto
você diz. Pois, se o afeto fosse indizível, o que seria da psicanálise?
Pode-se argumentar que, ao falar, em um divã, do afeto, não se fala o afeto,
mas apenas sobre ele. Mas ³falar sobre² é refletir o sentido (em seu amplo
³sentido²: o que se sente e os seus significados).

Refletir na instância da elaboração psíquica, no nível consciente das
articulações semânticas. Creio, assim, que o gosto é uma das coisas que mais
se discute, e sobre a qual, aliás, mais se deve discutir. A música, aí,
desempenha um papel especial: espraia-se da intuição à razão ³pura², e
institui campo fértil para que os afetos sejam elaborados.

É nesse contexto que a música pode ser resumida a uma matemática dos afetos:
afecções calculadas, compostas, dimensionados como discurso do tempo. Como
uma espécie de ³matemática², suas fórmulas são sempre aparentemente
elementares, mas o significado e o afeto que cada componente das formulações
musicais carrega fazem dessa matemática algo supremo.

E nessa perspectiva arrisco-me a outra sentença, exposta no livro: a música
é, por isso, o mais sublime exercício de abstração e, como tal, a mais
difícil das artes. Torna-se presa fácil dos humanos pelo seu apelo aos
sentimentos, mesmo que tais sentimentos não sejam verbalizáveis de modo
inequívoco, mas, no que diz respeito a seu pleno entendimento, demonstra-se
como quase que inatingível aos humanos que não enveredem pela sua própria e
intrincada tecnicidade.

Entender de fato a música só se torna possível, então, com o domínio dos
aspectos técnicos da composição, algo a que poucos, nas sociedades atuais,
terão ou desejarão ter acesso. A música é, assim, uma espécie de
³maçonaria². Adentra-se seu templo apenas nas condições da irmandade, de uma
irmandade com a linguagem histórica da música, imbuída de tecnicidade.

O entendimento da música não admite o supérfluo. No nível da
superficialidade, ela torna-se objeto de consumo obrigatório das sociedades
capitalistas em suas instâncias utilitárias: do fundo sonoro dos
supermercados às salas de espera dos médicos. Isto tudo quando depararíamos
em tais circunstâncias, com muito maior prazer, com o silêncio ou, para
sermos mais precisos, com a escuta dos eventos do mundo, tão interessantes e
tão negligenciados em face do massacre auditivo a que nos sujeitamos. É
nesse contexto que a assertiva de John Cage adquire valor: ³Se você quer
ouvir uma boa música, deite no chão e escute o mundo a seu redor².


Lembro de mais uma das afirmações enigmáticas de Wittgenstein: ³Em Brahms já
ouço o barulho da máquina². Wittgenstein era refratário às inovações atonais
propostas por Schoenberg. Ele via os caminhos tomados pela música atonal
como sinal de decadência. Como você vê a pressuposição de que a presença da
máquina sinaliza para a decadência da cultura?

Menezes: Negar o interesse dos sons industriais é tão decadente quanto a
pressuposta decadência da cultura pelo viés da inserção das máquinas em
nosso dia-a-dia. O que declina não são os novos meios, mas os velhos fins.
Se mudarmos os fins, os meios podem ser potencializados, isto sem falarmos
que os próprios meios podem servir como agentes de tal mutação.

De toda forma, no tocante aos sons é preciso ser tão perspicaz quanto o gume
duplo de uma faca com a qual não se sabe bem o que cortar: os sons podem
portar um interesse espectral em si, mas nada serão se não estiverem
contextualizados de modo consistente em uma obra musical, nos substratos de
suas estruturas, em sua arquitetura.


Em ³Música Maximalista² você se mostra por demais radical em relação às
estéticas diluidoras voltadas ao mercado: ³Nutro profunda desconfiança de
posturas pseudopopulares e ao mesmo tempo pseudoeruditas que atuam num
hibridismo tipicamente diluidor². Trata-se de um mundo com valores e formas
de expressão artística para as quais o sentido da palavra ³música² seja
esvaziado?

Menezes: Não há postura que seja radical ³por demais². Ou se é radical, ou
não se atinge a raiz das coisas, como bem dizia o bom e velho Marx.
Confunde-se, infelizmente, radicalismo com dogmatismo ou, pior, com
sectarismo. A radicalização implica atingir o viés do alimento: a raiz. É
dela que se nutrem os frutos.

O problema esbarra na autenticidade das atitudes estéticas, e a
autenticidade se mede pelas condições dadas a tal ou tal exercício de um
saber artístico. Se se tem acesso a certos tipos de informação (leia-se
aqui: articulações sígnicas), deve-se exigir, então, certo grau mínimo de
responsabilidade. Costumo ³reduzir² a tipificação artística poundiana nos
três tipos mais essenciais, aplicáveis ao fazer musical: mestria, invenção e
diluição revelam-se, aí, como as três atitudes possíveis, e destas apenas as
duas primeiras adquirem valor estético e autenticidade.

A diluição resume-se a um afrontamento superficial com os meandros da
linguagem da composição. Algo, para mim, inadmissível, pois admitir a
diluição seria o mesmo que pedir à secretária de um dentista que aumento o
volume do rádio na sala de espera do consultório, ao invés de desligá-lo e
ouvirmos o ³silêncio².


No artigo ³Música Eletroacústica: Eu Não Me Canso de Falar², você afirma que
³será óbvio reconhecer que tanto um Gil quanto um Caetano são absolutos
gênios da música popular². Que valor você vê na música popular urbana? Em
matéria de criação musical, como a palavra gênio pesa em suas considerações?

Menezes: O essencial dessas minhas colocações não reside na palavra
³gênios², mas antes nas palavras que localizam a suposta genialidade como
pertencente a tal ou tal esfera de atuação musical. Dentro de certos
parâmetros, há de se admitir que certos criadores ultrapassam as medidas
mais convencionais e arriscam uma mais profunda elaboração da invenção, mas
no mesmo texto afirmo que ³duvido em essência que a genialidade em arte não
passe igualmente pela opção quanto ao próprio âmbito de atuação lingüística
do artista².

Lendo o texto como um todo, percebe-se que acabo por relativizar o conceito
de genialidade, impingindo maior relevância, em primeiríssima instância, à
esfera de atuação do próprio artista. E nesse sentido, prefiro dizer que, ao
invés de Caetano ou Gil, são gênios Schoenberg, Stockhausen, Berio. Estes
sim superaram todos os entraves, radicalizaram seus fazeres, e inventaram
genuinamente.

Jamais procuro escutar a música popular urbana, e isto dá a perfeita medida
ao valor que dou a ela. Quando sou forçado a escutá-la, lamento a perda de
tempo. Para descansar, prefiro assistir a uma boa partida do Palmeiras ou ao
milésimo gol do Romário, mas para exercer a música -ouvindo-a ou fazendo-a-,
não admito submeter minha escuta a propostas não-radicais.

As diferenças, importantes, ficam ³restritas² às especulações da chamada
música contemporânea: de Ferneyhough a Xenakis, de Ligeti a Stockhausen, de
Boulez a Manoury, Jonty Harrison, Gilles Gobeil, Henri Pousseur, e tantos
outros nomes desconhecidos pelas ³massas² da classe média que preferem os
DJs e os promovem aos genuínos criadores daquilo que, erroneamente, se
designa hoje por ³música eletrônica².


³Quanto mais o país (Brasil) tiver alfabetização musical e cultura, tanto
menor será o papel da música popular em geral². Por essa afirmação, os
antropólogos de plantão cairiam de pau em você, pois parece pensar nos
moldes da cultura européia. Gostaria que falasse sobre o que é a cultura
para você. A cruzada por uma educação musical por aqui não seria uma cruzada
³fora do lugar²?

Menezes: Em primeiro lugar, prefiro os antropófagos aos antropólogos de
plantão. Em segundo, é preciso proferir em alto e bom tom sentenças que
desafiem os dogmas institucionalizados: nenhuma música é eterna, e a música
popular sofrerá, tanto quanto qualquer outra, as ações do tempo e as
conseqüências das mutações sociais. Se se galgarem os passos de uma maior
educação musical, é óbvio que a erudição se fará mais presente. Os fazeres
se aprimoram, ainda que certos rituais possam permanecer quase que intactos.

Enquanto rituais, preservarão seus potenciais de contaminação e irradiação
psíquicas. Não há qualquer ilegitimidade nisso. Mas é inevitável que a
música, em uma sociedade mais informada e justa, se desenvolva para muito
além das circunstâncias ritualísticas de uma roda de samba, por mais
contagiante e autêntica que esta possa ser e de fato seja. Em terceiro
lugar, penso a cultura como condição utópica. Ou seja, literalmente, como
condição não-localizável (u-topia).

Não me alinho, nessa perspectiva, à música ³européia², mesmo porque o que
valorizo da Europa, o faço para além de suas fronteiras, curtindo-a no meu
atual habitat, seja onde for. Não há fronteiras para o saber humano, e
aquilo que se designa como ³europeu² é, na verdade, produto do mundo, tanto
quanto o que aqui se produz de radical. Nesse sentido, toda cruzada situa-se
³fora do lugar², porque instituir um lugar é aprisioná-la, e sou partidário
e propositor primeiro (e único, até aqui) da cidadania post-mortem: é ao
cadáver que se deveria, caso realmente necessário, dar um passaporte, não a
um bebê recém-nascido.


Em relação ao Brasil, me chama a atenção teu antinacionalismo: ³É preciso
admitir que o nacionalismo musical foi e continua sendo o grande responsável
pelo atraso musical que vivemos no Brasil². Seria descabido falar em
nacionalismo quando se pensa na música germânica (lembro principalmente de
Wagner), na russa (lembro de Mussorgski), na polonesa, na húngara?

Menezes: Por princípio, todo nacionalismo beira o caquético. Mas o
nacionalismo brasileiro, além desse seu aspecto conservador, apresenta-se
como anacrônico, condizente com a ditadura de Vargas. Entre nós, representou
e, nas pobres almas penosas que persistem em coabitar certos corpos vivos,
ainda representam, o que há de mais avesso ao Novo. E, como dizia Freud numa
sábia frase que cito em minha obra ³labORAtorio²: ³Apenas o Novo pode
constituir a condição do prazer².

Por mais que tal asserção refira-se à curiosidade sexual e implique quase
sempre perversão, é de fato pervertendo o velho -a partir da pressuposição
essencial de que se conheça e se ame o Velho- que se atinge o orgasmo novo,
ou o orgasmo de novo.

No mais, o fato de eu criticar enfaticamente o nacionalismo brasileiro não
significa que eu deixe de tecer críticas ao autoritarismo de verve, por
exemplo, wagneriana, autor de grande potencialidade musical, mas de
inquestionável prepotência. Em arte, ser pretensioso é tão essencial quanto
possuir dotes naturais, mas presunção e prepotência são adjetivos que
abomino.

Não há como se confundir pretensão (necessária ao criador de calibre) com
presunção (sinal de ignorância crônica e de estupidez de pseudocriadores). À
presunção e à prepotência, alia-se o conservadorismo, quando devemos, isto
sim, transgredir, ou melhor ainda, trans-gressar. É no transgresso -um
progresso quântico, arborescente, polivalente- que reside a força da
invenção em arte.


Você acentua que se deva superar a idéia de um ³público², pois esta idéia se
conforma aos imperativos da indústria cultural. Mas, nesse jogo que opõe
criador e apreciador de uma obra musical, como fica a questão do gosto? Você
está mais próximo de Hegel, para qual ³o gosto não vai além dos pormenores,
a fim de que estes concordem com o sentimento e repele a profundidade da
impressão que o todo possa produzir², ou de Kant, que entende que ³sem
pensar na universalidade do juízo de gosto ninguém teria idéia de usar essa
expressão²?

Menezes: Demócrito bem dizia: ³A verdade acha-se na profundidade². Portanto,
não creio que o gosto deva se instaurar em patamares meramente superficiais,
nem acho que ele não deva ser discutido e, dentro de tal perspectiva, que
deixe de se fundamentar conceitualmente.

Ainda que nossos sabores sejam em grande parte determinados pelas condições
culturais às quais devemos nossa história pessoal, possuímos um cérebro, ou
seja, uma massa pensante que pode e deve refletir, elaborar e, se preciso,
até mesmo interferir no gosto ao qual nos habituamos. Isto porque, ainda que
produto da cultura, o gosto assemelha-se, na verdade, a todo resíduo de
passado.

Retomo, aqui, Roland Barthes em sua magnífica definição de cultura: ³É tudo
em nós, exceto nosso presente². No presente reserva-se o direito da
interferência, da mudança de percurso, do desvio, e nessa possível
relativização retrabalhamos os gostos e questionamos sua sedimentação. E, se
Merleau-Ponty bem disse que ³a verdade é um outro nome da sedimentação²,
será nessa perspectiva de profundidade que levantamos o pó de cada sedimento
para podermos, alérgicos a todo resíduo, espirrar e chacoalhar nossas idéias
e hábitos.


No artigo ³A Estonteante Velocidade da Música Maximalista - Música e Física:
Elos e Paralelos², você faz interessantes aproximações entre música e
física; em particular com as teorias das supercordas. Fica-se, no entanto,
com a impressão de que apenas na música maximalista se pode pensar em elos
com a teoria das supercordas. É isso mesmo que se deve deduzir?

Menezes: Os elos e paralelos entre a música e as matemáticas são válidos
para a linguagem musical considerada genericamente, e é a tomada de
consciência, por parte do compositor, de tais correlações que poderá aguçar
mais ou menos tais imbricações no seio da própria obra musical. Mas, em
contrapartida a essa correspondência quase óbvia, apenas numa música
suficientemente complexa, onde níveis de simultaneidade dos materiais
constituam o emaranhado sonoro a ser percebido, é que se tem uma aproximação
da música à velocidade da luz, quando então tudo pára e o tempo se suprime
numa janela hiperextensa de eternidade.

Isto porque, diante do complexo, a percepção tende a diminuir o fluxo da
percepção temporal, até anular por completo a percepção e mesmo a lembrança
da existência do tempo. Se a luz atinge a eternidade por uma velocidade
inumana, a complexidade musical a almeja pelo viés de um ³rallentando²
perceptivo que abole a noção mesma de tempo e que, fechando o ciclo, acaba
por aproximar a música maximalista da velocidade da luz.

A lentificação, aí, iguala-se a uma velocidade estonteante. E assim é que
esquecer-se do tempo constitui uma das estratégias mais significativas da
arte de compor. Mas, para tanto, é necessário um edifício de muitas facetas,
vislumbrando-o de supetão como um aglomerado múltiplo de espaços
simultâneos. Em meio a tal labirinto, fazem-se opções. Mas nenhum percurso
poderá se circunscrever a um itinerário inequívoco e unilateral. Todo
caminho é, em ato e em potência, uma ramificação, mais ou menos vivenciada
pela concretude de cada passo.


Você, ao se referir à tripartição proposta por Ezra Pound, defende que
Schoenberg é um caso atípico de criador, pois foi igualmente um grande
mestre e inventor, mas também um diluidor. Digno de nota nesses artigos
iniciais do livro é a pesquisa vigorosa sobre o ³Acorde de Tristão² em
³Música Especulativa - Harmonia Especulativa². Você mostra toda a trajetória
do arquétipo wagneriano desde Scarlatti até o ³Op. 19² de Schoenberg. Para a
compreensão da música atonal, por que esse acorde se reveste de tanta
importância?

Menezes: O acorde de Tristão reveste-se, efetivamente, de um significado
especial em face das condições histórico-musicais em que eclode ao início da
ópera wagneriana. Ele acaba por desvendar aspectos estruturais e semânticos
que extrapolam sua própria constituição e que podem ser vistos como
fenômenos ligados a todas as constituições arquetípicas ou potencialmente
arquetípicas da harmonia, independentemente da época em que emergem. Em uma
palavra: às entidades da harmonia.

Entender os princípios que regem as entidades harmônicas faz com que
compreendamos melhor toda harmonia, incluindo aí a época tonal. Isso já me
era claro desde os idos dos anos 1980, quando concebi meu primeiro livro,
³Apoteose de Schoenberg². Nesse sentido, é impróprio falarmos de ³ruptura²
com o passado. Ao invés de romper com o passado, os grandes gênios da
história musical sempre preferiram, mesmo que inconscientemente, transgredir
o presente.

Dentro de tal perspectiva, Schoenberg se colocava como ³evolucionário², e
não como revolucionário. Certamente tal asserção calca-se em sua postura
politicamente conservadora. Mas a arte constitui um campo flexível em que um
conservador pode ser, ao mesmo tempo, um (r) evolucionário. Com ou sem ³r²,
as facetas de mestre e inventor, no caso de Schoenberg, desempenharam papel
mais decisivo que sua faceta diluidora e ideologicamente conservadora.


Você conviveu em graus distintos de profundidade com os principais
representantes da geração pós-weberniana -Stockhausen, Boulez, Berio,
Pousseur. Quando se considera a criação musical, o que esta geração criou em
relação à de Schoenberg, Berg e Webern?

Menezes: Esses nomes que você cita, e que fazem parte do que chamo de
³referências históricas da vanguarda² -ao lado das ³referências da vanguarda
histórica² (Schoenberg, Berg, Webern)-, edificaram os baluartes mais sólidos
da linguagem musical da era pós-weberniana. Cada qual contribuiu, a seu
modo, para o desenvolvimento de aspectos fundamentais do fazer
contemporâneo, e a eles acresça-se o nome de Cage, que desempenhou um
importante papel como exemplo de radical modernidade.

Não houve, no Brasil contemporâneo ao período em que tais compositores foram
mais ativos e representantes da linguagem mais atual da composição
(sobretudo a partir da década de 1950), criadores de mesmo calibre. É-se
forçado, aqui, a venerar Villa-Lobos como um gênio nacional, quando na
verdade trata-se de um compositor de talento e autor de algumas obras muito
boas, mas igualmente de uma grande quantidade de obras medíocres, cujo
número ultrapassa, de longe, os feitos bem-sucedidos.

Se me acusam de defender uma visão ³européia², é porque reconheço nesses
mestres a fonte mais rica de recursos musicais para as ramificações que
perfazem a atualidade da composição.

Talvez o aspecto que mais nos chame a atenção, procurando resumir
drasticamente a questão, seja a extensão da consciência perceptiva, no ato
da composição (e conseqüentemente da escuta da obra), dos mais distintos
aspectos da textura sonora: registros, densidades, estruturações polifônicas
ou heterofônicas, planos de simultaneidades, concomitância de velocidades
distintas, relativização dos tempos dos eventos sonoros.

Aspectos que foram elaborados, ao menos parcialmente, pelo serialismo
integral dos anos 1950, que possui o grande mérito de haver proporcionado um
considerável alargamento dos parâmetros compositivos, a despeito da aversão
cega que os nacionalistas nutrem pelo intelectualismo de índole serial.

Do livro, me ficou impressão fortemente positiva de um compositor que creio
aqui no Brasil seja conhecido em círculos bem fechados: Brian Ferneyhough.
De algum modo o trabalho dele se aproxima do seu, a ponto de você ponderar
que não se pode confundir maximalismo com a ³nova complexidade² de Brian
Ferneyhough. Você poderia traçar as linhas gerais do trabalho desenvolvido
por ele?

Menezes: Tanto a música de um Berio, que dou como exemplo bem-sucedido de
música maximalista, quanto a de um Ferneyhough são, cada qual à sua maneira,
partidárias da complexidade.

Há, no entanto, uma diferença substancial entre a poética de um Berio, um
Boulez ou um Pousseur e a obra hipercomplexa de Ferneyhough: a complexidade
deste último é essencialmente não-fenomenológica. Decorre, em grande parte,
de operações combinatórias oriundas de cálculos preocupados com o fenômeno
auditivo, mas que dele se distanciam por enveredarem por elaborações pouco
factíveis seja com a realidade interpretativa, seja com a capacidade
perceptiva das estruturas musicais, por mais dotada que seja, intelectual e
musicalmente, uma determinada escuta.

A rigor, Ferneyhough acaba por retomar, em certa medida, o puro
intelectualismo do serialismo integral do início dos anos 1950,
protagonizado pelo próprio Boulez, Pousseur, Stockhausen e outros.

Mas, enquanto estes superaram a fase aguda do serialismo integral pelas vias
de um amadurecimento das propostas a serem elaboradas na composição, sem que
abrissem mão das aquisições mais fundamentais do pensamento serial,
Ferneyhough resgata a desvinculação direta da elaboração compositva com o
resultado perceptivo, ocasionando um divórcio entre idéia e resultado que
muito se assemelha às elucubrações mais desprovidas de sentido musical dos
primórdios do serialismo generalizado, com a agravante de que, em meio a
tais elaborações hipercomplexas, a teia de Ferneyhough inclui um achatamento
deveras problemático da figura do intérprete, relegado à condição de
impotente em face da dificuldade praticamente insuperável de execução de
suas partituras.

Como quer que seja, entre as posturas diluidoras e regressivas e as
propostas da hiper-complexidade, há de se preferir, indubitavelmente, as
proposições de Ferneyhough, mesmo porque nelas podem-se entrever aplicações
de extremo interesse para a composição, e que, uma vez aliadas a uma
fenomenologia da escuta, podem resultar em obras de grande interesse.

Tal é, por exemplo, as diversas idéias, bastante originais, que Ferneyhough
nos expõe em alguns de seus textos sobre as configurações rítmicas. Deixemos
os sectarismos para os sectários e lancemos mão de recursos que, em nossas
mãos, podem resultar em obras de real valor musical.


De ³Apoteose de Schoenberg² à ³Música Maximalista² temos um percurso de mais
de 20 anos. Algumas das idéias e dos temas daquele livro de meados dos anos
80 são retomados e aprofundados no livro atual. Tanto no plano teórico como
o de criação, em que momento se encontra o cenário da música atual?

Menezes: Philippe Manoury, importante compositor francês da atualidade,
disse certa vez que a modernidade tem a forma de um arquipélago, não de um
continente. E tem, nisso, toda razão. A música nova, hoje, arrisca-se por
soluções distintas, às vezes díspares, numa complexa rede de fazeres nem
sempre correlatos.

Superamos, de longe, a necessidade de uma constante recorrência a sistemas
padronizadores de referência comum, como foi o caso da velha era tonal. A
mudança de foco é hoje mais pertinente que a focalização em um único ponto
centralizador. Mas, se em meio à contemporaneidade deparamos com uma
arborescência de propostas e caminhos muito diversos, de uma coisa tenho
convicção: a linguagem musical atual será, na maior parte de suas
articulações, elaborações e propostas, associada irrevogavelmente às novas
tecnologias, as quais desdobram os instrumentos tradicionais no espaço e
ampliam consideravelmente sua gama de ação.


Você poderia falar do trabalho desenvolvido no Studio PANaroma de Música
Eletroacústica? Aproveito para dizer que, talvez contrário aos seus
princípios, acho importante ³divulgar² o que se faz no PANaroma.

Menezes: Não sou de forma alguma contrário à divulgação da música. Muito ao
contrário, empreendo desde sempre várias iniciativas que nada mais fizeram
que tentar divulgar, do modo mais amplo que me foi possível, o fazer musical
contemporâneo, e em especial o eletroacústico, ao maior número possível de
pessoas.

É nesse sentido que criei e toco adiante projetos que assumiram um papel
difusor de suma relevância até mesmo no cenário internacional, tais como o
Cimesp (Concurso Internacional de Música Eletroacústica de São Paulo), a
partir de 1995, e a Bimesp (Bienal Internacional de Música Eletroacústica de
São Paulo), a partir de 1996.

Isto sem falarmos da série de concertos que o PANaroma já realizou, com mais
de 100 concertos difundindo repertório nacional e internacional, e da série
de CDs e DVDs, que já conta com 12 números. Os livros e minha atuação junto
à Unesp reforçam meus intuitos no sentido de uma divulgação da composição
eletroacústica e da música nova como um todo.

Não se trata, portanto, de negar o valor de um acesso mais amplo. Trata-se,
isto sim, de não se fazer qualquer concessão da linguagem musical para que
se atinja um grande número de pessoas, mesmo porque, como sempre frisei,
realizar algo que seja efetivamente ³de massas², em uma sociedade
tardo-capitalista como as nossas, é sinal de corrosão da linguagem e adoção
de estratégias diluidoras.

Nosso rio é bem mais fundo, e o mergulho deve ser proporcional à
profundidade das águas, sempre mutantes, mas que preservam, de algum modo, o
traço irreverente e conseqüente de toda especulação. Como disse em um de
meus textos, parafraseando Heráclito em ³Música Maximalista² e permitindo-me
uma auto-citação à guisa de conclusão, a entidade permanece rio, mas a água
é sempre outra.

.

Humberto Pereira da Silva
É professor de filosofia e sociologia no ensino superior e crítico de
cinema, autor de "Ir ao cinema: um olhar sobre filmes" (Musa Editora).

http://p.php.uol.com.br/tropico/html/textos/2880,1.shl







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