[ANPPOM-L] Fwd: Artigo na Folha - O fetiche de quantidade

Didier Guigue didierguigue em gmail.com
Dom Maio 9 20:12:20 BRT 2010


*O fetiche de quantidade*

*Metas de produtividade e burocracia acadêmica diminuem o potencial de
pesquisas científicas *

*A criação de conhecimento não pode ser medida somente pelo número de
trabalhos escritos pelos pesquisadores, como é a tendência atual no Brasil *

*RENATO MEZAN*
COLUNISTA DA FOLHA

A cada tanto tempo, volta-se a discutir como deve ser avaliado o trabalho
dos professores. O grande número de pessoas envolvidas nos diversos níveis
de ensino, assim como o de artigos e livros que materializam resultados de
pesquisa, tem determinado uma preferência por medidas quantitativas.
Se estas podem trazer informações úteis como dado parcial para comparar
resultados de escolas em vestibulares ou o desempenho médio de alunos em
determinada matéria, sua aplicação como único critério de "produtividade" na
pós-graduação vem gerando -a meu ver, pelo menos- distorções bastante
sérias.
Não é meu intuito recusar, em princípio, a avaliação externa, que considero
útil e necessária. Gostaria apenas de lembrar que a criação de conhecimento
não pode ser medida somente pelo número de trabalhos escritos pelos
pesquisadores, como é a tendência atual no Brasil. Tampouco me parece
correta a fetichização da forma "artigo em revista" em detrimento de textos
de maior fôlego, para cuja elaboração, às vezes, são necessários anos de
trabalho paciente.
A mesma concepção tem conduzido ao encurtamento dos prazos para a defesa de
dissertações e teses na área de humanas, com o que se torna difícil que
exibam a qualidade de muitas das realizadas com mais vagar, que (também) por
isso se tornaram referência nos campos respectivos.
O equívoco desse conjunto de posturas tornou-se, mais uma vez, sensível para
mim ao ler dois livros que narram grandes aventuras do intelecto: "O Último
Teorema de Fermat", de Simon Singh (ed. Record), e "O Homem Que Amava a
China", de Simon Winchester (Companhia das Letras).
O leitor talvez objete que não se podem comparar as realizações de que
tratam com o trabalho de pesquisadores iniciantes; lembro, porém, que os
autores delas também começaram modestamente e que, se lhes tivessem sido
impostas as condições que critico, provavelmente não teriam podido
desenvolver as capacidades que lhes permitiram chegar até onde chegaram.

*Everest da matemática*
O teorema de Fermat desafiou os matemáticos por mais de três séculos, até
ser demonstrado em 1994 pelo britânico Andrew Wiles. O livro de Singh narra
a história do problema, cujo fascínio consiste em ser compreensível para
qualquer ginasiano e, ao mesmo tempo, ter uma solução extremamente complexa.
Em resumo, trata-se de uma variante do teorema de Pitágoras: "Em todo
triângulo retângulo, a soma do quadrado dos catetos é igual ao quadrado da
hipotenusa", ou, em linguagem matemática, a2²=b2²+c2².
Lendo sobre esta expressão na "Aritmética" de Diofante (século 3º), o
francês Pierre de Fermat (1601-65) -cuja especialidade era a teoria dos
números e que, junto com Pascal, determinou as leis da probabilidade- teve a
curiosidade de saber se a relação valia para outras potências: x3³= y3³ +
z3, x4 = y4 + z4 e assim por diante. Não conseguindo encontrar nenhum trio
de números que satisfizesse as condições da equação, formulou o teorema que
acabou levando seu nome -"Não existem soluções inteiras para ela, se o valor
de n for maior que 2"- e anotou na página do livro: "Encontrei uma
demonstração maravilhosa para esta proposição, mas esta margem é estreita
demais para que eu a possa escrever aqui".
Após a morte de Fermat, seu filho publicou uma edição da obra grega com as
observações do pai. Como o problema parecia simples, os matemáticos
lançaram-se à tarefa de o resolver -e descobriram que era muitíssimo
complicado.
Singh conta como inúmeros deles fracassaram ao longo dos 300 anos seguintes;
os avanços foram lentíssimos, um conseguindo provar que o teorema era válido
para a potência 3, outro (cem anos depois) para 5 etc. O enigma resistia a
todas as tentativas de demonstração e acabou sendo conhecido como "o monte
Everest da matemática". É quase certo que Fermat se equivocou ao pensar que
dispunha da prova, que exige conceitos e técnicas muito mais complexos que
os disponíveis na sua época.
Quem a descobriu foi Andrew Wiles, e a história de como o fez é um forte
argumento a favor da posição que defendo. O professor de Princeton
[universidade americana] precisou de sete anos de cálculos e teve de criar
pontes entre ramos inteiramente diferentes da disciplina, numa epopeia
intelectual que Singh descreve com grande habilidade e clareza. Não é o caso
de descrever aqui os passos que o levaram à vitória; quero ressaltar somente
que, não tendo de apresentar projetos nem relatórios, publicando pouquíssimo
durante sete anos e se retirando do "circuito interminável de reuniões
científicas", Wiles pôde concentrar-se com exclusividade no que estava
fazendo.
Por exemplo, passou um ano inteiro revisando tudo o que já se tentara desde
o século 18 e outro tanto para dominar certas ferramentas matemáticas com as
quais tinha pouca familiaridade, mas indispensáveis para a estratégia que
decidiu seguir. Questionado por Singh sobre seu método de trabalho, Wiles
respondeu: "É necessário ter concentração total. Depois, você para. Então
parece ocorrer uma espécie de relaxamento, durante o qual, aparentemente, o
inconsciente assume o controle. É aí que surgem as ideias novas".
Este processo é bem conhecido e costumo recomendá-lo a meus orientandos:
absorver o máximo de informações e deixá-las "flutuar" até que apareça algum
padrão, ou uma ligação entre coisas que aparentemente nada têm a ver uma com
a outra. Uma variante da livre associação, em suma.
Ora, se está correndo contra o relógio, como o estudante pode se permitir
isso? A chance de ter o "estalo de Vieira" é reduzida; o mais provável é que
se conforme com as ideias já estabelecidas, o que obviamente diminui o
potencial de inovação do seu trabalho.

*Tarefa hercúlea*
Outro exemplo de que o tempo de gestação de uma obra precisa ser respeitado
é o de Joseph Needham (1900-95), cuja vida extraordinária ficamos conhecendo
em "O Homem Que Amava a China".
Bioquímico de formação, apaixonou-se por uma estudante chinesa que fora a
Cambridge [no Reino Unido] para se aperfeiçoar; ela lhe ensinou a língua e,
à medida que se aprofundava no estudo da cultura chinesa, Needham foi se
tomando de admiração pelas suas realizações científicas e tecnológicas.
Em 1943, o Ministério do Exterior britânico o enviou como diplomata à China,
então parcialmente ocupada pelos japoneses. Sua missão era ajudar os
acadêmicos a manter o ânimo e a prosseguir em suas pesquisas.
Para saber do que precisavam, viajou muito pelo país e entrou em contato com
inúmeros cientistas; em seguida, mandava-lhes publicações científicas,
reagentes, instrumentos e o que mais pudesse obter.
Nessxe périplo, Needham se deu conta de que -longe de terem se mantido à
margem do desenvolvimento da civilização, como então se acreditava no
Ocidente- os chineses tinham descoberto e inventado muito antes dos europeus
uma enorme quantidade de coisas, tanto em áreas teóricas quanto no que se
refere à vida prática (uma lista parcial cobre 12 páginas do livro de
Winchester).
Formulou então o que se tornou conhecido como "a pergunta de Needham": se
aquele povo tinha demonstrado tamanha criatividade, por que não foi entre
eles, e sim na Europa, que a ciência moderna se desenvolveu?
A resposta envolvia provar que existiam condições para que isso pudesse ter
acontecido, e depois elaborar hipóteses sobre por que não ocorreu. Daí a
ideia de escrever um livro que mostrasse toda a inventividade dos chineses,
tendo como base os textos recolhidos em suas viagens e as práticas que
pudera observar.
Embora o projeto fosse ambicioso, a Cambridge University Press o aceitou,
considerando que, uma vez realizado, abrilhantaria ainda mais a reputação da
universidade.
"Science and Civilization in China" [Ciência e Civilização na China] teria
sete volumes, e Needham acreditava que poderia escrevê-lo "num prazo
relativamente curto para uma obra acadêmica: dez anos".
Na verdade, tomou quatro vezes mais tempo, e, quando o autor morreu, em
1995, já contava 15 mil páginas. Empreendimento hercúleo, como se vê, que
transformou radicalmente a percepção ocidental quanto ao papel da China na
história da civilização.
O volume de trabalho envolvido era imenso: de saída, ler e classificar
milhares de documentos sobre os mais variados assuntos; em seguida,
organizar tudo de modo claro e persuasivo, e por fim apresentar algumas
respostas à "pergunta de Needham". Várias pessoas o auxiliaram no percurso
(em particular, sua amante chinesa), mas a concepção de base, e boa parte do
texto final, se devem exclusivamente a ele.

*Monumento*
Needham não publicou uma linha de bioquímica durante os últimos 30 anos de
sua carreira.
Tampouco tinha formação acadêmica em história das ideias -mas isso não o
impediu de, com talento e disciplina, redigir uma das obras mais importantes
do século 20.
Se tivesse sido atrapalhado por exigências burocráticas, se tivesse de
orientar pós-graduandos, se a editora o pressionasse com prazos ou não o
deixasse trabalhar em seu ritmo (o primeiro volume levou seis anos para
ficar pronto), teria talvez escrito mais um livro interessante, mas não o
monumento que nos legou.
O que estes exemplos nos ensinam é que um trabalho intelectual de grande
alcance só pode ser feito em condições adequadas -e uma delas é a confiança
dos que decidem (e manejam os cordões da bolsa) em quem se propõe a
realizá-lo.
Tal confiança envolve não suspeitar que tempo longo signifique preguiça,
admitir que pensar também é trabalho, que a verificação de uma ideia-chave
ou de uma referência central pode levar meses -e que nada disso tem
importância frente ao resultado final.
Em tempo: um dos motivos encontrados por Needham para o estancamento da
criatividade chinesa a partir de 1500 foi justamente a aversão de uma
estrutura burocrática acomodada na certeza de sua própria sapiência a tudo
que discrepasse dos padrões impostos.
Enquanto isso, na Europa (e depois na América do Norte) a inovação era
valorizada, e o talento individual, recompensado. Nas palavras de um
sinólogo citado no fim do livro, o resultado da atitude dos mandarins foi
que "o incentivo se atrofiou, e a mediocridade tornou-se a norma". Seria uma
pena que, em nome da produtividade medida em termos somente quantitativos,
caíssemos no mesmo erro.
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*RENATO MEZAN* é psicanalista e professor titular na Pontifícia Universidade
Católica de SP. Escreve na seção "Autores", do *Mais!*.
-- 
Didier Guigue
UFPB--Departamento de Música
Programa de Pós-Graduação em Musica
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Didier Guigue chez l'Editeur Harmattan -
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