[ANPPOM-Lista] A palhaçada do Concurso de Tatuí

André Fadel andrefadel em gmail.com
Qui Out 20 10:13:49 BRST 2011


*A palhaçada do Concurso de Piano de Tatuí*



(*Para aqueles que quiserem ir direto ao assunto, podem pular para a segunda
parte*)





*1. Considerações sobre concursos de instrumento*



Todo concurso é polêmico. É uma das piores maneiras de se descobrir e
premiar instrumentistas porque é um procedimento que foge à natureza da
arte. Em arte não deveria haver competição. Mas músicos – como todo animal
mamífero – têm espírito competitivo e querem se destacar para poderem
sobreviver às intempéries mundanas. Afinal, o mundo é selvagem demais e todo
esforço é pouco para se alcançar a caça e dominar o fogo.



Observando os concursos internacionais mais importantes tem-se a impressão
de que estes eventos não diferem muito das Olimpíadas: pessoas sacrificam
boa parte da fase produtiva de suas vidas esperando obter, em lapso de
minutos, um breve reconhecimento pelos seus esforços. Não devemos esquecer
que os músicos estão lá por livre e espontânea... necessidade. Para
abocanharem contratos, prêmios e turnês todos devem se submeter ao crivo de
um jurado. Concursos lembram a democracia de Churchill, que dizia que esta é
a pior forma de governo, tirando todas as outras já existentes. A diferença
é que, se a oportunidade do instrumentista não aparecer por meio do
concurso, deverá ocorrer por meio de relações sociais e políticas, o que
complica e muito as coisas para a maioria que não tem sobrenome, seita ou
outros círculos de amizade.



Também existe um lado bom para os competidores, independentemente dos
resultados. Quando alguém se prepara para um concurso, ocorre um processo de
grande superação dos próprios limites. Pode-se aprender menos em termos
quantidade de repertório, mas há coisas que só são conquistadas por
processos intensos e contínuos. Heinrich Neuhaus comparou uma vez o estudo
do piano com a fervura da água, pois esta não borbulha se o fogo for
desligado de tempos em tempos. Além disso, há também o lado emocional. Seja
com traumas ou láureas, competidores sempre aprendem.



Vendo o crescente número de competições no mundo, a prática está longe de
ser abolida ou substituída. Contudo, algumas iniciativas estão sendo tomadas
para aumentar sua transparência. Uma delas foi adotada apenas
recentemente pelo 14º. Concurso Tchaikovsky, cujas etapas foram
teletransmitidas ao vivo e no qual foi dada aos espectadores a oportunidade
de opinarem  e se manifestarem sobre os concorrentes. A tecnologia hoje
permite muitos procedimentos e, quando se trata de concurso musical, a
gravação deveria ser o mais elementar deles. Outras sugestões são
apresentadas em um ótimo
artigo<http://www.factsandarts.com/articles/behind-the-scenes-at-piano-competitions/>de
Michael Johnson.



Eu, pessoalmente, não aguento assistir a concursos de piano. Normalmente são
chatos e muito cansativos. As provas são longas, os repertórios variam pouco
e a pressão é desumana. Às vezes parece que estão tentando enfiar o músico
numa lâmina microscópica para a análise de suas virtudes e defeitos. Mas o
espírito da competição é esse, da mesma forma que a natureza seleciona os
mais aptos a sobreviverem. Apesar disso, não hesito em participar de um ou
outro quando as exigências do edital coincidem com o repertório que estou
estudando. Seja para fins competitivos ou artísticos, quando estou ao
instrumento procuro esquecer todo o lixo que está em volta e imergir na
música.



Mas o que determina uma virtude nas competições? E o que define o que seriam
defeitos? Ah, os critérios...





*2. Sobre Tatuí*



No Brasil há poucos concursos de piano e nenhum com grande tradição. Por
isso, qualquer um que ofereça um prêmio interessante (apresentações,
dinheiro, instrumentos) merece a atenção de quem estuda. Como no Brasil não
há reconhecimento duradouro por concursos, pelo menos a conquista de um
deles recompensa – em parte – o esforço e agrega pontinhos para o currículo
(às vezes, a alimentação do Currículo Lattes também parece uma Olimpíada!).
O Concurso de Tatuí oferecia prêmio de R$ 5.000,00 e recital com orquestra.
O prêmio não chega perto dos U$ 20.000,00 de um concurso do Cazaquistão (o
país ridicularizado pelo "Borat"), mas não é nada mal para a terra de cegos
– ou seria "surdos"?



Na teoria, pelo que foi exposto antes, concurso pode ser considerado um
instrumento  democrático por oferecer tratamento isonômico aos
participantes. Só na teoria. O grande problema reside fundamentalmente no
poder de validação detido soberanamente pela banca avaliadora. É ela que vai
brincar de chefe e dar as batatas ao vencedor. Mas sob quais critérios?



Uma vez que haja a participação decisória de seres humanos num sistema,
pode-se questionar todo e qualquer resultado. A neurociência tem uma coleção
de estudos (Zimbardo, Harris, Milgram) que fragilizam cada vez mais a ideia
de que humanos tenham o que se entende por objetividade, justiça,
imparcialidade e até mesmo moralidade. Imagine  acrescentar "musicalidade"
nessa lista. Exigir tudo isto de uma banca de concurso pode ser demais.



Portanto, é evidente que todo resultado de concurso será polêmico. Mas
existem critérios que podem ser discutidos e adotados no julgamento de
candidatos, no sentido de tentar aproximar o poder de validação de uma banca
de algo que seja mais ou menos consenso entre quem entende do assunto. Não
acho que o "voto popular" seja o caminho, mas isto não deixaria de ser útil
para indicar o que pode ser viável comercialmente, por exemplo.



Há corporativismo no meio dos concursos de música? Lógico que há. Há
corrupção? Sim. Há decisões marcantes? Também. O exemplo mais célebre de que
eu me lembro foi no Concurso Chopin de 1980, quando Ivo Pogorelich foi
desclassificado pelo júri e Martha Argerich se retirou da banca,
inconformada. Mas foi alguma coisa assim que houve no Concurso de Tatuí?
Não.



O que houve foi uma demonstração de como a inépcia de uma banca avaliadora
pode prejudicar a credibilidade de um concurso, devido a ausência de
critérios objetivos que deveriam nortear o que se busca em termos de música
numa ocasião como esta.



Arrisco o primeiro critério possível que poderia orientar uma banca,
partindo do princípio da isonomia: fidelidade às ideias contidas
na partitura. Pode haver uma sensação ilusória de objetividade neste
quesito? Sim, não tenho dúvidas, mas não deixa de ser um critério mais
objetivo do que  tentar medir algo que não pode ser medido (p.e., conceitos
como “brasilidade”). A notação musical continua sendo referência mundial
para a interpretação de uma obra, mas também seria ingenuidade deixar de
notar que há sim um universo além da partitura. Se assim não fosse, qualquer
computador poderia ser considerado o melhor intérprete possível. No entanto,
parece-me que ignorar a clareza (e, por que não, a limpeza) de uma
apresentação equivale a deixar de notar que há um rinoceronte branco na
sala.



Já outro critério é um pouco mais complicado, mas não pode deixar de ser
mencionado: respeito ao estilo do compositor. Para isso, seria necessário
exigir conhecimento histórico e capacidade auditiva em reconhecê-lo. Não vou
entrar na seara de a referida banca ser capacitada para isto ou não.



O que prevalece realmente é aquilo que dizia o pianista François Fréderic
Guy: os jurados são as pessoas que "sabem". “*Eles têm um tipo de código
musical e se você não estiver conectado a este código, você não tem chance*”.
É este código que estou questionando. Porque suspeito que o código da banca
de Tatuí sequer foi musical.



A prova exigia uma peça de confronto – aos que não sabem, é uma peça que
todos os candidatos devem interpretar – e uma obra de livre escolha, ambas
brasileiras. Vale dizer que a edição da peça de confronto era lamentável. Eu
fui o único candidato que "corrigiu" todas as muitas notas erradas da
edição. Aliás, a incompetência editorial musical do Brasil mereceria outro
texto. Também fui o único que respeitou o andamento indicado, e, se bem me
lembro, devo ter esbarrado em uma notinha. Sou grato aos meus mestres por
terem me ensinado a analisar uma obra musical e também por poder ouvi-la e
reproduzi-la em suas nuances.



Quanto à obra de livre escolha, há alguns meses tive a preciosa oportunidade
de tocá-la ao filho do compositor que me deu ideias, questionou algumas e
validou outras que eu já tinha. Quanto à apresentação na prova do concurso,
faço antes um comentário: quem me conhece sabe que o maior crítico de mim
sou eu mesmo. Dificilmente saio satisfeito de uma apresentação, por melhor
que seja o *feedback*. Excepcionalmente, neste concurso saí do palco
*muito*contente mesmo sabendo que poderia ter feito melhor, mas
acreditando que
tinha estabelecido a barra num nível bem alto. Também fiz questão de
assistir a todas as provas (faltei apenas a uma delas porque uma jornalista
pediu que eu desse uma entrevista, ironicamente sobre a importância dos
concursos). Houve candidatos brilhantes e outros nem tanto que não preciso
detalhar aqui, mas apenas menciono que, dos candidatos que estavam em
sintonia com o *meu* código musical, a maioria não levou nenhum prêmio.



O anúncio da premiação foi muito estranho: todos os candidatos levaram um
“puxão de orelha” porque, segundo a teoria da avaliadora (vou dar o nome
fictício de Sra. “Adolfa”), todos os pianistas deveriam frequentar rodas de
samba para poderem tocar música brasileira. Mesmo depois de eu ter admitido
que não frequento rodas de choro, samba ou fandango, ainda assim foi uma
grande surpresa saber que as minhas notas foram as mais baixas do concurso.



Pela lógica, eu preciso ser luterano para poder tocar a música de Bach,
místico para tocar Scriabin e homossexual para tocar Poulenc.



Por mais inadequado que fosse, estava curiosíssimo em saber o que é que eu
tinha feito de errado. Questionada, a presidente da banca Adolfa respondeu
que faltou "ginga", que a "agógica" não foi respeitada e que os
deslocamentos rítmicos não foram realizados. Em resposta, gostaria que a
Adolfa ouvisse novamente a prova. Há testemunhas, mas não preciso delas. O
que parece que falta aqui se chama honestidade intelectual. Diante da
omissão de opinião dos que dividiram a mesa, Sra. “Benita” e Sr. “Blondi”,
suponho que tenham concordado com tudo o que foi dito.



Tenho curiosidade em saber como seria a avaliação, por essa ilustre equipe,
da interpretação do *Rudepoema* de Marc-André Hamelin, já que o mesmo não
deve ter ensaiado na vida um passo de samba. Ou alguém acha que o Nelson
Freire fica dançando no banheiro para tocar o *Choros n. 5* ou a
*Toccata*de Guarnieri? Colocação igualmente absurda seria dizer que
pianistas
brasileiros não sabem tocar Prokofiev ou Medtner. Por que há essa mística
tão grande em torno de “música brasileira”? Só o nosso povo tem este hábito
ridículo.



Pela interpretação teleológica da expressão, se eu toco música de um
compositor brasileiro, eu faço música brasileira. A julgar pela
interpretação das peças tupiniquins pelos candidatos estrangeiros no
Concurso Cidade de Florianópolis em 2010, os “gringos” não devem nada em
termos de musicalidade. Já em termos de “brasilidade”, deixo os argumentos
para a Sra. Adolfa.



Por mais que alguns me considerem um "eurocêntrico" (eu não ligo, às vezes
acho um elogio), eu considero imensamente todas as manifestações artísticas
não importa de onde venham. Quando se trata de preferência pessoal, é
pessoal e fim de papo. Mas esse argumento não vale quando se tem a
responsabilidade de ser jurado de concurso. Antes de ter opinião pessoal, é
necessário provar que pelo menos o julgador tenha ouvidos.



Em 1999, Matt Stone e Trey Parker, criadores de *South Park*, concorreram ao
Oscar pela melhor trilha sonora, mas o prêmio acabou indo para Phil Collins.
Não tiveram dúvida: no episódio televisivo seguinte massacraram e
ridicularizaram o cantor, inclusive com a estatueta enfiada lá mesmo.
“*Estávamos
TÃO preparados para perder, mas não desse jeito! Não para o Phil Collins*”,
disseram. Fizeram errado, Stone & Parker. Eu também estava preparado para
perder, mas não desse jeito. Só que vocês deveriam ter enfiado a estatueta
nos que elegeram o Phil Collins, não no coitado.



Termino com Griboyedov: “...*mas quem são os juízes*”?





*André Fadel*

músico
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