[ANPPOM-Lista] A palhaçada do Concurso de Tatuí

Carlos Yansen cyansen em yahoo.com.br
Sex Out 21 10:39:28 BRST 2011


Caro André:
Parabéns pela iniciativa de se manifestar contra a política suja dos concursos de piano. Isso demonstra o quanto as pessoas são inconsequentes quando estão favorecidas e não levam a sério a música no Brasil. Fiz em 1985 o Concurso Estímulo patrocinado pela Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo e, na ocasião, aconteceu algo parecido. Espero que isso seja um estímulo para que mais pessoas se manifestem contra este tipo de despotismo.
Abraço grande
Carlos Yansen


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De: André Fadel <andrefadel em gmail.com>
Para: anppom-l em iar.unicamp.br
Enviadas: Quinta-feira, 20 de Outubro de 2011 10:13
Assunto: [ANPPOM-Lista] A palhaçada do Concurso de Tatuí





  
A palhaçada do Concurso de Piano de Tatuí
  
(Para aqueles que quiserem ir direto ao assunto, podem pular para a segunda parte)
 
 
1. Considerações sobre concursos de instrumento
 
Todo concurso é polêmico. É uma das piores maneiras de se descobrir e premiar instrumentistas porque é um procedimento que foge à natureza da arte. Em arte não deveria haver competição. Mas músicos – como todo animal mamífero – têm espírito competitivo e querem se destacar para poderem sobreviver às intempéries mundanas. Afinal, o mundo é selvagem demais e todo esforço é pouco para se alcançar a caça e dominar o fogo.
 
Observando os concursos internacionais mais importantes tem-se a impressão de que estes eventos não diferem muito das Olimpíadas: pessoas sacrificam boa parte da fase produtiva de suas vidas esperando obter, em lapso de minutos, um breve reconhecimento pelos seus esforços. Não devemos esquecer que os músicos estão lá por livre e espontânea... necessidade. Para abocanharem contratos, prêmios e turnês todos devem se submeter ao crivo de um jurado. Concursos lembram a democracia de Churchill, que dizia que esta é a pior forma de governo, tirando todas as outras já existentes. A diferença é que, se a oportunidade do instrumentista não aparecer por meio do concurso, deverá ocorrer por meio de relações sociais e políticas, o que complica e muito as coisas para a maioria que não tem sobrenome, seita ou outros círculos de amizade.
 
Também existe um lado bom para os competidores, independentemente dos resultados. Quando alguém se prepara para um concurso, ocorre um processo de grande superação dos próprios limites. Pode-se aprender menos em termos quantidade de repertório, mas há coisas que só são conquistadas por processos intensos e contínuos. Heinrich Neuhaus comparou uma vez o estudo do piano com a fervura da água, pois esta não borbulha se o fogo for desligado de tempos em tempos. Além disso, há também o lado emocional. Seja com traumas ou láureas, competidores sempre aprendem. 
 
Vendo o crescente número de competições no mundo, a prática está longe de ser abolida ou substituída. Contudo, algumas iniciativas estão sendo tomadas para aumentar sua transparência. Uma delas foi adotada apenas recentemente pelo 14º. Concurso Tchaikovsky, cujas etapas foram teletransmitidas ao vivo e no qual foi dada aos espectadores a oportunidade de opinarem  e se manifestarem sobre os concorrentes. A tecnologia hoje permite muitos procedimentos e, quando se trata de concurso musical, a gravação deveria ser o mais elementar deles. Outras sugestões são apresentadas em um ótimo artigo de Michael Johnson.
 
Eu, pessoalmente, não aguento assistir a concursos de piano. Normalmente são chatos e muito cansativos. As provas são longas, os repertórios variam pouco e a pressão é desumana. Às vezes parece que estão tentando enfiar o músico numa lâmina microscópica para a análise de suas virtudes e defeitos. Mas o espírito da competição é esse, da mesma forma que a natureza seleciona os mais aptos a sobreviverem. Apesar disso, não hesito em participar de um ou outro quando as exigências do edital coincidem com o repertório que estou estudando. Seja para fins competitivos ou artísticos, quando estou ao instrumento procuro esquecer todo o lixo que está em volta e imergir na música.
 
Mas o que determina uma virtude nas competições? E o que define o que seriam defeitos? Ah, os critérios...
 
 
2. Sobre Tatuí
 
No Brasil há poucos concursos de piano e nenhum com grande tradição. Por isso, qualquer um que ofereça um prêmio interessante (apresentações, dinheiro, instrumentos) merece a atenção de quem estuda. Como no Brasil não há reconhecimento duradouro por concursos, pelo menos a conquista de um deles recompensa – em parte – o esforço e agrega pontinhos para o currículo (às vezes, a alimentação do Currículo Lattes também parece uma Olimpíada!). O Concurso de Tatuí oferecia prêmio de R$ 5.000,00 e recital com orquestra. O prêmio não chega perto dos U$ 20.000,00 de um concurso do Cazaquistão (o país ridicularizado pelo "Borat"), mas não é nada mal para a terra de cegos – ou seria "surdos"?
 
Na teoria, pelo que foi exposto antes, concurso pode ser considerado um instrumento  democrático por oferecer tratamento isonômico aos participantes. Só na teoria. O grande problema reside fundamentalmente no poder de validação detido soberanamente pela banca avaliadora. É ela que vai brincar de chefe e dar as batatas ao vencedor. Mas sob quais critérios? 
 
Uma vez que haja a participação decisória de seres humanos num sistema, pode-se questionar todo e qualquer resultado. A neurociência tem uma coleção de estudos (Zimbardo, Harris, Milgram) que fragilizam cada vez mais a ideia de que humanos tenham o que se entende por objetividade, justiça, imparcialidade e até mesmo moralidade. Imagine  acrescentar "musicalidade" nessa lista. Exigir tudo isto de uma banca de concurso pode ser demais.
 
Portanto, é evidente que todo resultado de concurso será polêmico. Mas existem critérios que podem ser discutidos e adotados no julgamento de candidatos, no sentido de tentar aproximar o poder de validação de uma banca de algo que seja mais ou menos consenso entre quem entende do assunto. Não acho que o "voto popular" seja o caminho, mas isto não deixaria de ser útil para indicar o que pode ser viável comercialmente, por exemplo.
 
Há corporativismo no meio dos concursos de música? Lógico que há. Há corrupção? Sim. Há decisões marcantes? Também. O exemplo mais célebre de que eu me lembro foi no Concurso Chopin de 1980, quando Ivo Pogorelich foi desclassificado pelo júri e Martha Argerich se retirou da banca, inconformada. Mas foi alguma coisa assim que houve no Concurso de Tatuí? Não.
 
O que houve foi uma demonstração de como a inépcia de uma banca avaliadora pode prejudicar a credibilidade de um concurso, devido a ausência de critérios objetivos que deveriam nortear o que se busca em termos de música numa ocasião como esta. 
 
Arrisco o primeiro critério possível que poderia orientar uma banca, partindo do princípio da isonomia: fidelidade às ideias contidas na partitura. Pode haver uma sensação ilusória de objetividade neste quesito? Sim, não tenho dúvidas, mas não deixa de ser um critério mais objetivo do que  tentar medir algo que não pode ser medido (p.e., conceitos como “brasilidade”). A notação musical continua sendo referência mundial para a interpretação de uma obra, mas também seria ingenuidade deixar de notar que há sim um universo além da partitura. Se assim não fosse, qualquer computador poderia ser considerado o melhor intérprete possível. No entanto, parece-me que ignorar a clareza (e, por que não, a limpeza) de uma apresentação equivale a deixar de notar que há um rinoceronte branco na sala.
 
Já outro critério é um pouco mais complicado, mas não pode deixar de ser mencionado: respeito ao estilo do compositor. Para isso, seria necessário exigir conhecimento histórico e capacidade auditiva em reconhecê-lo. Não vou entrar na seara de a referida banca ser capacitada para isto ou não. 
 
O que prevalece realmente é aquilo que dizia o pianista François Fréderic Guy: os jurados são as pessoas que "sabem". “Eles têm um tipo de código musical e se você não estiver conectado a este código, você não tem chance”. É este código que estou questionando. Porque suspeito que o código da banca de Tatuí sequer foi musical.
 
A prova exigia uma peça de confronto – aos que não sabem, é uma peça que todos os candidatos devem interpretar – e uma obra de livre escolha, ambas brasileiras. Vale dizer que a edição da peça de confronto era lamentável. Eu fui o único candidato que "corrigiu" todas as muitas notas erradas da edição. Aliás, a incompetência editorial musical do Brasil mereceria outro texto. Também fui o único que respeitou o andamento indicado, e, se bem me lembro, devo ter esbarrado em uma notinha. Sou grato aos meus mestres por terem me ensinado a analisar uma obra musical e também por poder ouvi-la e reproduzi-la em suas nuances.
 
Quanto à obra de livre escolha, há alguns meses tive a preciosa oportunidade de tocá-la ao filho do compositor que me deu ideias, questionou algumas e validou outras que eu já tinha. Quanto à apresentação na prova do concurso, faço antes um comentário: quem me conhece sabe que o maior crítico de mim sou eu mesmo. Dificilmente saio satisfeito de uma apresentação, por melhor que seja o feedback. Excepcionalmente, neste concurso saí do palco muito contente mesmo sabendo que poderia ter feito melhor, mas acreditando que tinha estabelecido a barra num nível bem alto. Também fiz questão de assistir a todas as provas (faltei apenas a uma delas porque uma jornalista pediu que eu desse uma entrevista, ironicamente sobre a importância dos concursos). Houve candidatos brilhantes e outros nem tanto que não preciso detalhar aqui, mas apenas menciono que, dos candidatos que estavam em sintonia com o meu código musical, a maioria não levou nenhum
 prêmio.
 
O anúncio da premiação foi muito estranho: todos os candidatos levaram um “puxão de orelha” porque, segundo a teoria da avaliadora (vou dar o nome fictício de Sra. “Adolfa”), todos os pianistas deveriam frequentar rodas de samba para poderem tocar música brasileira. Mesmo depois de eu ter admitido que não frequento rodas de choro, samba ou fandango, ainda assim foi uma grande surpresa saber que as minhas notas foram as mais baixas do concurso.
 
Pela lógica, eu preciso ser luterano para poder tocar a música de Bach, místico para tocar Scriabin e homossexual para tocar Poulenc.
 
Por mais inadequado que fosse, estava curiosíssimo em saber o que é que eu tinha feito de errado. Questionada, a presidente da banca Adolfa respondeu que faltou "ginga", que a "agógica" não foi respeitada e que os deslocamentos rítmicos não foram realizados. Em resposta, gostaria que a Adolfa ouvisse novamente a prova. Há testemunhas, mas não preciso delas. O que parece que falta aqui se chama honestidade intelectual. Diante da omissão de opinião dos que dividiram a mesa, Sra. “Benita” e Sr. “Blondi”, suponho que tenham concordado com tudo o que foi dito.
  
Tenho curiosidade em saber como seria a avaliação, por essa ilustre equipe, da interpretação do Rudepoema de Marc-André Hamelin, já que o mesmo não deve ter ensaiado na vida um passo de samba. Ou alguém acha que o Nelson Freire fica dançando no banheiro para tocar o Choros n. 5 ou a Toccata de Guarnieri? Colocação igualmente absurda seria dizer que pianistas brasileiros não sabem tocar Prokofiev ou Medtner. Por que há essa mística tão grande em torno de “música brasileira”? Só o nosso povo tem este hábito ridículo.
 
Pela interpretação teleológica da expressão, se eu toco música de um compositor brasileiro, eu faço música brasileira. A julgar pela interpretação das peças tupiniquins pelos candidatos estrangeiros no Concurso Cidade de Florianópolis em 2010, os “gringos” não devem nada em termos de musicalidade. Já em termos de “brasilidade”, deixo os argumentos para a Sra. Adolfa.
 
Por mais que alguns me considerem um "eurocêntrico" (eu não ligo, às vezes acho um elogio), eu considero imensamente todas as manifestações artísticas não importa de onde venham. Quando se trata de preferência pessoal, é pessoal e fim de papo. Mas esse argumento não vale quando se tem a responsabilidade de ser jurado de concurso. Antes de ter opinião pessoal, é necessário provar que pelo menos o julgador tenha ouvidos.
 
Em 1999, Matt Stone e Trey Parker, criadores de South Park, concorreram ao Oscar pela melhor trilha sonora, mas o prêmio acabou indo para Phil Collins. Não tiveram dúvida: no episódio televisivo seguinte massacraram e ridicularizaram o cantor, inclusive com a estatueta enfiada lá mesmo. “Estávamos TÃO preparados para perder, mas não desse jeito! Não para o Phil Collins”, disseram. Fizeram errado, Stone & Parker. Eu também estava preparado para perder, mas não desse jeito. Só que vocês deveriam ter enfiado a estatueta nos que elegeram o Phil Collins, não no coitado.
 
Termino com Griboyedov: “...mas quem são os juízes”?
 
 
André Fadel
músico
 
 
 


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