[ANPPOM-Lista] fidelidade à partitura

silvioferrazmello silvioferrazmello em uol.com.br
Qua Out 26 12:27:50 BRST 2011


cara cristina..a minha proposição é realmente aquela de trazer um olhar de fora, justamente.
um olhar que o pianista não terá pois ele, mesmo tendo sólida formação, estará atento a outros detalhes que julga mais pertinentes.
um compositor ou regente estaria livre destes detalhes, mas atento a outros.
e sempre existem os compositores que ou tem obras para piano e tem pesquisado bastante sobre a escrita para piano, ou mesmo foram pianistas.
claro que ao falarmos desta relação para outros instrumentos talvez não tenhamos compositores ou regentes especialistas no instrumento, mas o que eu mencionava era a necessidade e interesse de um olhar de fora, não técnico.

me lembro do helffer dando aulas, o aluno estava tocando berio (rounds) e o helffer na lousa escrevendo as datas de nascimento de ligeti, stockhausen, boulez, xenakis e berio, quando de repente se virou e falou ao aluno para não tocar aquele acorde utilizando o polegar na nota mais grave, mas cruzar e utilizar indicador na nota mais grave e polegar na nota subsequente...na hora foi um susto "como ele poderia saber se estava de costas"...claro, já havia tocado mil vezes e sabia que ali todo pianista busca uma solução para o acorde e ele conhecia as saídas.

é neste ponto que vejo o olhar do músico instrumentista...ele está atento a detalhes que ajudem na performance, já o compositor talvez esteja mais atento a timbre, a formas de ataque, a conexão entre ideias etc...e deixe (sem dúvida deixará) passar estes detalhes... mas dando-se conta de outros.

eu tenho trabalhado em aulas de música de câmara e isto não só tem sido importante para meu trabalho de compor como também para acuidade nos modos de falar questões de interpretação, citaria aqui um exemplo que para mim é um grande modelo (e que é exímio pianista...o que não é meu caso...loooonge disto) que é o trabalho do kurtag.

interessante é que diversos grupos na europa chamam compositores para trabalhar com eles na função mesmo de produtor (daquele que ouve de fora) o que acaba enriquecendo fortemente o trabalho e refazendo o "elo perdido" entre compositores e interpretes.

é forte a especialização atual, mas pianistas e músicos de um modo geral tem muito a contribuir a compositores e regentes, e a reciproca também deve de ser verdadeira.

abs
silvio



On Oct 26, 2011, at 11:50 AM, Cristina Capparelli Gerling wrote:

> Colegas  Catarina e Zélia e compositor Sílvio,
> O preparo que pianistas têm tido acesso hoje  em dia, tal como as três que tem vindo de público se manifestar, é sólido, abrangente e flexível, tem uma carga extremamente significativa de erudição, de conhecimento do campo de trabalho e de prática na vida real do palco. Inclui tanto a pluralidade quanto visões muito  delineadas do que venha a ser o aceitável e o inaceitável quanto aos limites da leitura e da realização da partitura. Inclui também como não poderia deixar de ser, idéias muito profícuas sobre o  inefável e o intangível na realização artística, algo que motiva constantemente a nossa trajetória por mais evanescente que esta busca  seja. Portanto, em uma banca de piano, um regente ou compositor é bem vindo para trazer algumalenha para fogueira mas, eu garanto, pianistas deste calibre e com esta bagagem tão respeitável dão conta do recado de maneira exemplar, inatacável quanto à lisura, e de forma planemante satisfatória quanto aos conhecimentos musicais.
> 
> Sabe que esta discussão entre o alto clero está muito interessante?
> Cristina
> 
> 
> 
> Citando silvioferrazmello <silvioferrazmello em uol.com.br>:
> 
>> cara catarina zélia e colegas,
>> 
>> no final da longa mensagem da catarina tem um detalhe importante "pluralidade de critérios na própria banca do concurso".
>> este aspecto é interessante.
>> uma banca de um concurso de instrumento não implica em apenas instrumentistas manifestarem suas visões técnicas interpretativas, mas a presença de um compositor ou regente é sempre interessante, sobretudo se o compositor ou regente tiver uma visão mais recente de prática e criação musical.
>> pois traria às bancas aquele oxigênio que é resultado do entrecruzamento de visões.
>> é assim que recentemente em uma banca de composição uma das coisas que mais nos chamou a atenção foi a prática enquanto musicista do compositor concorrente, e o fato de ter um regente na banca ajudou justamente a pontuar esta diferença, que sem dúvida está também inscrita na partitura do jovem compositor.
>> 
>> bancas que reúnem apenas especialistas e de visões coincidentes, acabam sendo bancas sem surpresas.
>> creio que talvez, paralelamente à questão da "fidelidade à partitura" temos também a da homogeneidade ou não da banca, e da importância de atentarmos para a possibilidade de novos modos de se compor bancas (sobretudo atualmente em que para cada banca assina-se um termo de ética que impede que se tenha trabalhado ou sido professor de concorrentes, etc...e que tem tornado cada vez mais difícil montar tais bancas).
>> 
>> abs
>> silvio
>> 
>> 
>> On Oct 25, 2011, at 11:41 AM, Catarina Domenici wrote:
>> 
>>> 
>>> Prezada Zélia,
>>> 
>>> Agradeço a tua mensagem, pois você tocou num ponto muito importante que merece ser discutido nesta lista: a fidelidade à partitura. Apenas com o intuito de dar início a uma discussão (que espero renda bons frutos), lanço o exemplo da peça de confronto do quarto turno do concurso em discussão no momento: o primeiro movimento da Sonatina III de MIgnone. Em primeiro lugar, temos que lidar com a imprecisão do próprio texto, o qual, por um erro de edição/impressão, contém alturas incorretas, como a falta de sustenidos na mão direita no comp. 38, por exemplo (caso semelhante ao sol bemol na mão esquerda no comp. 6 do segundo movimento da Suite n. 3 de Ronaldo Miranda). Em segundo lugar, mas não menos importante, há a questão da compreensão do texto. Explico: na peça em questão, Mignone escreve indicações de metrônomo para cada seção da peça, as quais às vezes consistem de apenas uns poucos compassos! Se o intérprete não compreende o grande arco formal da peça, construído por uma curva de aceleração em direção ao andamento "Vivo" seguida de outra curva de desaceleração em direção ao "Tempo Primo", corre o grande risco de ter uma interpretação fortemente secionada que prejudica a compreensão da forma como um todo. Baseio a minha visão da peça nas próprias indicações de MIgnone, tais como a indicação de "un poco animato" na pag.2, seguida pelo "Animando" e pelo "animando e accellerando" na pag. 3. Temos o mesmo procedimento de desaceleração gradual após o "Vivo": "poco meno" na pag. 4, seguido de "piu calmo", "poco meno" e "ancora meno" na pag. 5. Note-se que Mignone forneceu uma indicação de metrônomo para a maioria dessas pequenas seções (exceções são o "un poco animato" e o "piú calmo") e que mesmo fornecendo uma indicação de metrônomo para o "Animando" na pag. 3, acho relevante que tenha colocado o verbo no gerúndio e que tenha se precavido em acrescentar uma indicação de "animando e accellerando e crescendo" nos compassos 38-39 no mesmo trecho. Portanto, se o intérprete escolhe seguir à risca as indicações de metrônomo sem considerar como essas seções se articulam na grande forma, irá provavelmente ter vários problemas de ordem musical a serem resolvidos, tal como o tamanho do gesto de "allargando" no compasso 55, o qual, por conduzir ao climax da peça no compasso 56 e "anunciar" ele mesmo o início da curva de desaceleração, tem tanto uma função expressiva quanto de articulação formal. Seguindo essa linha de raciocínio, não podemos deixar de questionar qual a atitude que se espera do intérprete diante da partitura. Se, considerando o caso acima exposto, esperamos obediência fiel aos aspectos fixos da música (tudo que está objetivamente notado na partitura), teremos muito provavelmente uma interpretação incorreta, tanto do ponto de vista das alturas, quanto do ponto de vista formal (tal qual uma versão produzida pelo finale, com alturas "erradas" e mudanças abruptas de andamento).
>>> 
>>> Deixando o exemplo de Mignone de lado, me lembro de Bach. Com o advento das edições "Urtext" e da ideologia da fidelidade inquestionável ao texto impresso, em meados do século XX desenvolveu-se toda uma escola de interpretação de suas obras ao piano que preconizava que Bach não poderia ser tocado com dinamicas, pedal, legato (ou outra articulação que não o non-legato) etc. Mesmo hoje, com o entendimento que temos (e ainda estamos desenvolvendo) sobre a obra de Bach, tocar Bach em concurso é sempre espinhoso, posto que o discurso sobre os aspectos objetivos e de fidelidade à partitura não se aplicam confortávelmente à interpretação desse repertório, especialmente depois de termos sido devidamente "informados" sobre as práticas de performance pelos estudiosos do movimento HIP(historically informed performance). Ou seja, quanto mais nos afastamos historicamente de determinado repertório, mais nos vemos numa situação na qual não podemos ignorar a "tradição(ou tradições) oral (ou aural)" na construção de interpretações desse repertório.
>>> 
>>> E já que esse assunto foi motivado por um concurso, eu não poderia deixar de mencionar um caso que parece ter colocado em xeque o discurso da fidelidade à partitura fora do meio acadêmico (o qual já vem se debruçando sobre o assunto com bastante intensidade nas últimas décadas): a vitória do pianista japonês Nobuyuki Tsujii no concurso Van Cliburn em 2009. Pianista cego de nascença, Nobuyuki declarou em diversas entrevistas que prefere aprender o seu repertório de ouvido, ao invés de lê-lo em braile. Quem se interessar em saber um pouco mais sobre ele pode acessar o link: http://www.caller.com/news/2010/oct/07/japans-piano-superstar-will-play-with-corpus/. Nessa reportagem, o presidente do juri do concurso, o Maestro John Giordano, declarou: "He is amazing.We closed our eyes and it's so phenomenal that it's hard to withhold your tears. ... Nobu played the most difficult hourlong Beethoven piece [a sonata Hammerklavier - nota minha] flawlessly. For anyone, it's extraordinary. But for someone blind who learns by ear, it's mind-boggling." ("Ele é fantástico. Nós fechamos nossos olhos e é tão fenomenal que é difícil segurar as lágrimas. ... Nobu tocou a peça mais difícil de Beethoven impecávelmente. Para qualquer um, é extraordinário. Mas para um cego que aprende [música] de ouvido, é formidável. Tradução minha).
>>> É curioso que Nobuyuki tenha dividio o primeiro prêmio com outro pianista, o chinês Haochen Zhang, que é, em inúmeros aspectos, muito diferente de Nobu, apontando para a pluralidade de critérios na própria banca do concurso.
>>> 
>>> Que o debate prossiga!
>>> 
>>> Cordialmente,
>>> 
>>> Catarina Leite Domenici
>>> 
>>> On Oct 24, 2011, at 7:47 AM, Zélia Chueke wrote:
>>> 
>>>> Assino em baixo.
>>>> 
>>>> Em concurso, os critérios devem ser muito claros e os aspectos objetivos
>>>> tem que estar em primeiro lugar. Notas certas, ritmo certo...as vezes
>>>> perdemos os "artistas" mais inspirados, mas como se trata de competição,o
>>>> subjetivo quase  nao é levado em conta, pois nao pode ser explicado. Conta
>>>> a fidelidade à partitura em primeiro lugar.
>>>> 
>>>> O Julius Levine, "o contrabaxista" de Tanglewood, com quem tive coaching
>>>> na Mannes, referindo-se à concursos para orquestra, dizia que as vezes
>>>> perdemos os melhores candidatos na eliminatoria, mas com 150 candidatos
>>>> para ouvir, o critério tem que ser o mais objetivo possivel!
>>>> 
>>>> Nao quer dizer que sao os concursos que determinam os grandes artistas;
>>>> exemplos nao faltam, mas como disse a Cristina, uma vez que se faz a
>>>> inscrição, é como assinar um contrato, aceitando as regras e a autoridade
>>>> do juri.
>>>> 
>>>> Zélia Chueke
>>>> 
>>>> 
>>>>> Concordo com o Carlos. Ou seja, a inscrição para um concurso pressupõe
>>>>> que o candidato está disposto a aceitar o resultado. Aliás. uma vez
>>>>> que o candidato tocou, o resultado passa a ser inteiramente uma
>>>>> consideração do juri e deixa imediatamente de ser um assunto do
>>>>> candidato. Neste  tipo de situação, uns tocam  e outros decidem, os
>>>>> papéis são muito claros e não se misturam. Quem não entende esta
>>>>> premissa e não concorda que não entre em concurso porque estes são os
>>>>> termos.
>>>>> Cristina Capparelli Gerling
>>>>> 
>>>>> 
>>>>> Citando Carlos Palombini <cpalombini em gmail.com>:
>>>>> 
>>>>>> Como disse Abbie Hoffman: "My critique of democracy begins and ends with
>>>>>> this point. Kids must be educated to disrespect authority or else
>>>>>> democracy
>>>>>> is a farce." Ou, numa tradução livre: "Minha crítica à democracia começa
>>>>>> e
>>>>>> termina aqui. Neguim deve ser educado para desrespeitar a autoridade, se
>>>>>> não, a democracia é uma farsa."
>>>>>> 
>>>>>> cp
>>>>>> 
>>>>>> --
>>>>>> carlos palombini
>>>>>> www.researcherid.com/rid/F-7345-2011
>>>>>> 
>>>>> 
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>>>>> 
>>>>> ________________________________________________
>>>>> Lista de discussões ANPPOM
>>>>> http://iar.unicamp.br/mailman/listinfo/anppom-l
>>>>> ________________________________________________
>>>>> 
>>>> 
>>>> 
>>>> Zélia Chueke, DMA
>>>> Pianist - researcher
>>>> Professor of Music- DeArtes, UFPR
>>>> Permanent Researcher - Observatoire Musical Français/Sorbonne,Paris 4
>>>> www.zeliachueke.com
>>>> 
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>>>> http://iar.unicamp.br/mailman/listinfo/anppom-l
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