[ANPPOM-Lista] Campus de discriminados (Viver Brasil)

Carlos Palombini cpalombini em gmail.com
Qui Abr 4 17:31:56 BRT 2013


Capa Campus de discriminados Alunos denunciam atos racistas na maior
universidade de Minas Texto: Claudia Rezende | Fotos: Juliana
Flister/Agência i7

A federal mineira, a respeitada UFMG, envolta em cortina, de silêncio e
omissão, que esconde uma prática cotidiana de discriminação racial e até
mais que isso.

------------------------------


Tentando, dá para esquecer um monte de ofensas colecionadas ao longo da
vida, para ignorar o passado e até acreditar que o país vive uma democracia
racial. Tentando, até dá para fazer isso. Mas tem gente que não deixa, que
fica o tempo inteiro reforçando a divisão social covarde e obscura entre
negros e brancos. Dentro dos lugares menos imagináveis. Por exemplo, na
universidade pública, local de diversidade, produção de conhecimento e
troca de saberes. Entre elas, está a federal mineira, a respeitada UFMG,
envolta em cortina, de silêncio e omissão, que esconde uma prática
cotidiana de discriminação racial e até mais que isso.

 As histórias são muitas. Vem de professores, alunos, servidores. As vozes,
poucas. Um e outro se aventura a falar, a dizer “sim, aconteceu comigo;
sim, fui vítima de racismo”. Por vergonha, por constrangimento, por medo.
“Eu fiquei muito tempo sem conseguir falar desse assunto”, conta uma das
poucas vozes que ousou se manifestar. É de Alysson Armondes da Costa, 28
anos, aluno de ciências sociais. “A primeira vez que fui apontado como
negro foi dentro da UFMG”, diz. Foi de uma forma inesperada para ele, mas
que revelaria, a partir de então, ideologias, crenças, preconceitos e
conceitos que fazem parte da mente dos produtores de conhecimento.

 Após uma intervenção à fala do professor, ainda no início do curso,
Alysson ouviu de um dos colegas de sala: “Tinha de ser negro”. O resto da
turma riu. Alysson paralisou. “Não consegui reagir. Aquilo me incomodou
profundamente.” E assim ficou por muito tempo, sem tocar no assunto. Foi
quando a ficha caiu a respeito da forma como ele era visto pelo mundo
exterior e o fez entrar para a militância, na esperança de mudar com
palavras e ações uma realidade em vigor, que não está apenas em situações
expressas, verbalizadas. Como em outro momento em que ele e dois amigos
voltavam de uma festa dentro do campus da Pampulha, conversando alto e
brincando. Os outros dois brancos, apenas ele negro. “Eu era o que estava
mais quieto, mas os policiais vieram em cima de mim. Como eu já estava mais
politizado, acabei discutindo com eles e até chamaram o chefe da segurança.”

 Alysson não está sozinho no grupo dos que vivem um cotidiano universitário
racista, muitas vezes mascarados por piadinhas ou argumentos de tratamento
igual a todos. No dia 18 de março, uma das faces desse tipo de
discriminação foi revelada com o trote pregado pelos veteranos do curso de
direito. Pintaram os novatos de preto. Um deles, mulher, presa a  corrente
puxada por um veterano, teve de carregar placa em que estava escrito
“Caloura Chica da Silva”, referência à ex-escrava que viveu em Diamantina,
no século 18. Outro foi amarrado em uma pilastra e, junto a três alunos,
que fizeram a saudação nazista.

 Logo depois disso, um estudante do mesmo curso deu entrevista em que disse
que não é racista e que tem até amigos negros, inclusive, o símbolo da
Atlética dele é um macaco. Em seguida, uma série de manifestações, em tom
de brincadeira, começaram a ser divulgadas, como nas músicas da charanga do
direito, que atacam mulheres e estudantes de instituições privadas. Essas
primeiras divulgações revelaram ferida aberta dentro da universidade e, ao
mesmo tempo, uma espiral do silêncio compactuada até pelas autoridades
acadêmicas.

 Estudante da pós-graduação, negra e mulher, Joyce Santos, 29 anos, decidiu
entrar na discussão a respeito das manifestações discriminatórias do
direito, em um grupo do Facebook. Foi incisiva, protestou, argumentou
contra quem acha que não passou de brincadeira. Não ficou por menos. Em
questão de minutos, um perfil fake entrou no grupo e começou a postar
mensagens de agressão aos negros. O nome dele era Ethan White e, apesar de
ser o mesmo nome de jogador negro, dos Estados Unidos, tinha a foto de uma
criança branca e loura. A primeira postagem foi um banner com a foto do
político José Serra e os dizeres “Adoro negros. Pena que pararam de
vender”. Depois desse, outro banner foi postado. Tinha um cachorro pastor
alemão dirigindo veículo e os dizeres: “Negros a vista. É hora de
acelerar”. Embora estivesse discutindo com alunos do direito no momento,
Joyce prefere não atribuir o perfil a um dos membros.

 “Estou considerando o benefício da dúvida. Podem ter colocado isso lá
porque acharam engraçado, sem a intenção de agredir, mas, independentemente
da motivação, são mensagens racistas”, observa  Joyce. Diante da agressão
explícita, ela foi a todas as instâncias que podem investigar e punir os
responsáveis: no site de crimes pela internet e no da Polícia Federal, na
Delegacia de Crimes Cibernéticos, no Ministério Público estadual e federal,
no Movimento de Juventude Negra Nacional, na ouvidoria da UFMG e em um
grupo de direitos humanos do Rio de Janeiro. Também já acionou advogado.

 Articulada e militante, Joyce diz que essa é apenas uma das manifestações
que já presenciou e a primeira diretamente contra ela dentro da
universidade. No entanto, já perdeu a conta do número de denúncias que
recebeu. Muitos dos ataques vêm pela internet. “Existem manifestações muito
sutis e outras que são feitas como coisa normal, por exemplo, as piadinhas.
Fora as tentativas de tentar diminuir a inteligência dos negros, de quem
passou no vestibular por cotas ou bolsas.” Até contra deficientes físicos,
a estudante já viu dentro da universidade.

 Coordenadora do programa Conexão de Saberes – que oferece bolsas de
pesquisa para estudantes de trajetória popular –, a professora de
psicologia social Cláudia Mayorga confirma a existência de manifestações de
discriminação dentro da UFMG. Ela mesma, quando fazia pesquisa sobre a
trajetória dos alunos negros dentro da universidade, recebeu a denúncia de
uma aluna, negra e de baixa renda, que é de chocar. A jovem contou que
deixaram uma banana em cima da carteira dela. “Chegam muitos casos
semelhantes”, afirma Cláudia. Além de racismo, de homofobia, de assédio de
professores contra alunos, de discriminação por gênero. E, em volta disso
tudo, impera o silêncio. “Quando você diz que está disponível para ajudar,
a pessoa não quer denunciar. Isso demonstra que a UFMG não garante uma
permanência bem-sucedida de determinado segmento na universidade.”

 Episódios do tipo levantam a questão, conforme a professora, do papel que
a universidade exerce, ao permitir que atos desse e outros, como o trote,
aconteçam. Na opinião dela, deveria haver punição rigorosa. “Tem de
jubilar”, defende. Para ela, o fato de a UFMG não nomear essas atitudes e
de não assumir a existência da discriminação cria uma barreira para o
combate desses problemas. Ela exemplifica com a campanha Bocado de
gentileza, criada para desestimular o trote, substituindo-o por bom
recebimento dos calouros. “Não estamos falando de gentileza, mas de
racismo. E racismo é crime. O trote é a ponta de um iceberg.” Acredita que
a instituição deve criar uma política permanente para atacar essas
situações e preveni-las.

[image: UFMG] <http://alexeiweb.org/wp-content/uploads/2013/03/UFMG.jpg>
Dois fatores estariam por trás das manifestações discriminatórias dentro da
universidade, conforme a professora. A primeira delas é o fato de a
academia ter se firmado ao longo dos anos como o lugar da neutralidade, o
que tem consequências sérias, como o de silenciar as pessoas. A segunda é o
momento de mudança, no caso das federais, com a implantação do Programa de
Apoio ao Plano de Reestruturação e Expansão (Reuni) – na UFMG, em 2008 – e
dos sistemas de bônus (2008) e cotas (2013). Essas ações têm ampliado a
diversidade dentro da instituição, mas não na mesma medida do aumento do
debate sobre essas políticas, o que acaba levando aos atos violentos de
negação à democratização do espaço. A falta de diálogo e de posicionamento
da universidade sobre o assunto faz com que outras formas de discriminação
surjam, contra os alunos vindos de bônus, cotas e de cursos do Reuni. Como
este é o primeiro ano de cotas na UFMG, os boatos que correm entre os
alunos é de que os calouros estão sendo pintados de preto em referência aos
cotistas. A informação não foi confirmada. O que se sabe apenas é que um
cotista que participou do trote do direito foi chamado para falar na
comissão de sindicância que foi organizada pela UFMG para investigar o caso
e que tem até 19 de maio para apresentar seu relatório.

    [image: Alysson Armondes, que sofreu discriminação durante uma
aula:] Alysson Armondes, que sofreu discriminação durante uma aula:
"não consegui
reagir". Foto: Pedro Vilela

Recém-formada em ciências do estado – que surgiu com o Reuni –, Cecília
Reis Aquino, 22 anos, relata como o curso e os alunos dele foram
discriminados quando chegaram à UFMG, especialmente porque ele foi
instalado no prédio da Faculdade de Direito, no centro, e funcionava na
parte da tarde. “Tentaram a todo custo tirar a gente de lá. Diziam que
ciências do estado não era curso, mas disciplina do direito.”
 Cecília foi da primeira turma do curso e acompanhou todos os embates.
Dentre os episódios, ela se lembra de que os estudantes de direito diziam
que os elevadores iam ficar muito cheios por causa do ciências do estado.
Também se recorda das festas com som alto. “Eu, várias vezes, desci ao
pátio para pedir para abaixarem, porque estavam atrapalhando.” Segundo ela,
muitas denúncias foram feitas, mas providências não eram tomadas. “É
ridículo a UFMG dizer que não sabia de nada. Lá é um território livre.”

 E não foram somente dos alunos do direito que as agressões chegaram aos de
ciências do estado. De professores, também. Cecília Reis Aquino conta que
um dia duas colegas de sala dela tinham passado bilhetinho uma para a
outra. O professor viu e disse, interrompendo a explicação: “Esse é o
problema do Reuni”. Em seguida, continuou a aula. “Na hora, eu não
acreditei. Depois é que nós fomos debater isso.” Segundo ela, professores e
alunos de cursos tradicionais discriminam os do Reuni.
 Um estudante do sexto período de direito – que pediu para não ser
identificado – diz que já presenciou manifestações de professores contra
cotistas e bonistas. “Um colega da minha sala fez pergunta e o professor
respondeu: que pergunta idiota! Parece até que você é cotista.” Ele conta
que se manifestou na hora, questionando o professor, mas foi uma reação
solitária. Segundo ele, a questão das cotas é polêmica entre os estudantes
do curso, sendo que a maioria se manifesta contra o sistema. Da mesma
forma, afirma que a comunidade está dividida sobre a ocorrência e
repercussão do trote de cunho racista, sexista e nazista. “Há os que veem
uma oportunidade para a faculdade repensar sua postura e tem os que acham
que é sensacionalismo da mídia e, logo, todo o mundo esquece e as coisas
voltam ao normal.”

 O trote de cunho nazista despertou surpresa em parte da comunidade
acadêmica e das pessoas que estão fora dela, mas não é surpresa para
muitos. “Esse aluno (um dos que faz gesto nazista) sempre se manifestou
abertamente como sendo da extrema direita. Agora a gente só não sabe até
que ponto ele está engajado em movimentos, se somente simpatiza com a
ideologia ou se manifesta para chamar a atenção”, diz. O aluno, G. S., que
é o que se manifesta como membro da ultradireita, aparece em fotos
disponíveis nas redes sociais com um símbolo do movimento Pátria Nostra
Brasile (MPN), de extrema direita, que já teve o primeiro encontro em Belo
Horizonte, sob o nome Movimento Pátria Brasil, conforme o jornal italiano A
tutta destra.

 Professora de história social na UFMG e ativista, Regina Helena Alves da
Silva não se surpreende com o fato. “Muitos ex-alunos meus me procuram para
me pedir ajuda porque eles vão dar aula e encontram alunos com pensamentos
neonazistas e não sabem como lidar.” Segundo ela, não é novidade existir
núcleos ultradireitistas na UFMG. “Tudo o que tem fora da universidade tem
dentro.” O que deve haver, de acordo com ela, é uma manifestação clara da
instituição, dizendo que não admite discriminação e intolerância de
qualquer tipo.

 Regina também acredita que está havendo incremento nas manifestações
devido à maior democratização da academia. “O que estamos vendo é o
acirramento da disputa entre os que se julgam privilegiados contra aqueles
que eles não consideram. Isso se chama nazismo. Nada mais que isso.” Ela
refuta o argumento de que os alunos que vêm de rede pública, cotas e bônus
têm menor condição de fazer os cursos. “A universidade não trabalha com
conteúdo, mas com produção de conhecimento. Há pesquisas que mostram que
esses estudantes têm até melhores notas.”

 Ela também já presenciou manifestações de discriminação dentro da UFMG. Um
deles era um famoso trote em que estudantes de engenharia iam até a Fafich
para gritar, na cantina: “Um, dois, três, quatro, aqui só tem veado;
quatro, três, dois, um, eles dão para qualquer um”. Professores e alunos
passaram pedindo a proibição dele à reitoria, até que conseguiram tirá-lo.
Outra situação de que se lembra ocorreu quando apareceu o primeiro
travesti. “Houve uma onda leve de gente querendo três banheiros.”

 A ideia de que existe um grupo superior a outro dentro da UFMG também se
manifesta na delicada relação entre professores e alunos, na forma de
assédio, moral ou sexual. A reportagem teve conhecimento de pelo menos três
professores com investigação contra eles por causa desse crime. Um deles
leciona sociologia na Faculdade de Educação (FAE); outro é do Departamento
de Sociologia e Antropologia; e o terceiro é professor de direito penal. Os
nomes foram preservados porque a UFMG se recusou a informar seu
posicionamento a respeito das denúncias.

 O da FAE teria denúncias por discriminação e preconceito; o da sociologia,
por assédio sexual a alunas; o de direito por assédio a alunos. Este último
chegou a ser expulso da universidade após a conclusão das investigações. No
entanto, ele prestou concurso novamente e retornou às salas de aulas.
Alunos do curso contam que a banca que o aprovou era formada somente por
ex-alunos dele e que não foi a primeira vez.

 Outro grupo que sofre pressão cotidiana é o dos alunos intercambistas,
especialmente os que vêm do continente africano. V. B, 25 anos, natural do
Benin, formou-se na instituição e agora cursa o mestrado. “O preconceito
aqui é oculto. Todo o mundo diz que não tem, mas, na convivência, você
acaba vendo.” Com ela, nunca houve manifestação direta, mas indireta era
recorrente. “Eu via que, quando tinha trabalho em grupo, ninguém me
chamava. Não posso acusar, mas é a impressão que passa.” Também questionam
o motivo de os africanos estarem lá.
 Servidores técnico-administrativos também  têm queixas contra professores.
“Tratam como se fôssemos invisíveis e querem decidir nossa vida. Isso ficou
muito claro com a imposição do ponto eletrônico para a gente e, para eles,
não”, diz a presidente do Sindicato dos Trabalhadores das Instituições
Federais (Sindifes-MG), Cristina del Papa.

 Presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-MG, William Santos
observa que o crime de racismo é imprescritível e inafiançável. “Isso quer
dizer que, daqui a 10 anos, a pessoa pode responder ainda. E também não dá
para pagar fiança, pode ser presa em flagrante”, diz. Segundo ele, o
problema é que os policiais são despreparados para receber as denúncias e,
assim,  classificam como injúria racial, e o crime pode ser convertido em
prestação de serviço à comunidade.

 A reportagem procurou a UFMG por três dias seguidos – 25, 26 e 27 de
março. No entanto, a instituição não forneceu respostas sobre as denúncias.
Informou apenas o número de africanos: 70 na graduação. De acordo com o
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Escolares, existem 58.605 alunos
negros nas instituições federais do país, em universo de 1.032.936 (cerca
de 5%). Na UFMG seriam 3%, conforme o Coletivo de Estudantes Negros, que
também há apenas uma professora-titular negra. Mas a reportagem apurou
outra aprovada recentemente.

  Trotes na UFMG com conteúdo discriminatório
Racismo, sexismo e nazismo: dois alunos, um homem e uma mulher, foram
pintados de preto por veteranos. A menina foi acorrentada e carregou placa
com os dizeres “Caloura Chica da Silva”; o menino foi aprisionado em uma
pilastra; os três veteranos que o acompanhavam fizeram saudação nazista;
todos estavam com bigode em referência a Hitler

 Sexismo: alunas do curso de engenharia tiveram que simular sexo oral em
cassetetes revestidos por preservativos

 Homofobia: alunos de engenharia invadiam a Fafich, cantando: “Um, dois,
três, quatro, aqui só tem veado; quatro, três, dois, um, eles dão para
qualquer um”.

http://alexeiweb.org/?p=277

http://www.revistaviverbrasil.com.br/141/materias/01/capa/campus-de-discriminados/

carlos palombini
ufmg.academia.edu/CarlosPalombini<http://www.researcherid.com/rid/F-7345-2011>
"Ici je ne tiens à charmer personne." (Paul Valéry)
-------------- Próxima Parte ----------
Um anexo em HTML foi limpo...
URL: <http://www.listas.unicamp.br/pipermail/anppom-l/attachments/20130404/2ed7b11d/attachment.html>


Mais detalhes sobre a lista de discussão Anppom-L