[ANPPOM-Lista] Daleste e seus algozes

Carlos Palombini cpalombini em gmail.com
Sex Jul 26 00:42:25 BRT 2013


Se o Estado não tem moral na periferia, evidentemente que isso não é fruto
de letras ofensivas feitas por jovens entusiastas do crime, e sim, entre
tantas coisas, resultado da terrível qualidade dos serviços públicos
oferecidos à parcela pauperizada da sociedade – serviços estes que incluem,
por sua vez, a truculência policial

*16/07/2013*

*Por Christian Gilioti**

**Para além de meros indivíduos, existem homens e mulheres que conseguem
fazer de suas vidas a expressão livre, fiel e radical de poderosas ideias –
ou ideais. Mas o contrário também é verdade: não são raros os casos em que
ideias dotadas de alguma força tomam de assalto pessoas fazendo delas seres
menores, reféns de motivos absolutamente exteriores, reduzindo-as
praticamente à condição de marionetes.

Os primeiros são muito poucos; os segundos, a grande maioria. E é no mínimo
intrigante reconhecer que a trajetória do menino Daniel Pellegrine – mais
conhecido como MC Daleste – parece combinar simultaneamente os dois
fenômenos.

Daleste foi covardemente assassinado no dia 6 de julho, desfecho de uma
vida bastante jovem e que merecia seguir em frente – ele tinha apenas 20
anos de idade. Repleto de mistérios, impactante sobretudo pela
circunstância insólita em que ocorreu (morreu em cima do palco durante *show
* que realizava em quermesse no CDHU do bairro San Martin, periferia de
Campinas), o assassinato virou espetáculo no *youtube* e nos programas mais
sórdidos do jornalismo nacional de perfil sensacionalista.

Não demorou muito para o esgoto reacionário e protofascista transbordar
pelas bocas dos analfabetos políticos; centenas de comentários se
alastraram na *internet* comemorando a morte do funkeiro, boa parte, aliás,
impulsionados pela cobertura da grande mídia que fez questão de associar a
produção artística do garoto ao “funk proibidão” – sem dúvida, o ramo mais
estigmatizado de um gênero musical contraditoriamente cultuado por parte
considerável da juventude brasileira e, ao mesmo tempo, rechaçado por
diferentes setores e camadas sociais.

Para quem não conhece muito de funk, o “proibidão” (também chamado de
“neuroticão” ou “da apologia”) é um estilo mais agressivo cujas letras
celebram o modo de vida daqueles que atuam no crime organizado (PCC,
Comando Vermelho e etc.). Uma leitura chapada encontra ali apenas o elogio
de práticas criminosas e brutais em geral descritas com naturalidade, como
se não passassem de aventuras infanto-juvenis, exaltando a figura do
bandido. Este último, personagem central, é idolatrado graças a um
determinado ‘poder’ que ele próprio possui e faz questão de ostentar.

Diferente dos comuns, sua superioridade seria por assim dizer garantida a
partir de um privilégio: a capacidade de *exercer violência* contra as
forças policiais, as classes dominantes e os grupos inimigos. Partindo daí,
não são poucos os que reconhecem o “proibidão” como um tipo de música
execrável que incentiva o ingresso dos adolescentes no chamado “mundo do
crime” e banaliza formas violentas de convívio, além de promover a
desmoralização da polícia e, por tabela, também do Estado.

Mas embora tudo isso não deixe de parecer verdade, trata-se tão somente de
uma verdade superficial, ou melhor: uma ilusão compartilhada. Não podemos
imputar ao funk o que é produto da experiência social mais ampla. Os
“soldados do crime” crescem em número principalmente pela absoluta ausência
de perspectiva no que diz respeito às possibilidades reais de sucesso
material pela via do trabalho dito “honesto”. Além disso, eles geralmente
nascem em regiões periféricas que, como se sabe, apresentam precariedade na
oferta de saneamento, saúde, educação, moradia, lazer e etc.

A própria dificuldade – territorial e monetária – de locomoção, por
exemplo, torna o *direito à cidade* (sobretudo o acesso às regiões centrais
e os produtos que dispõem) uma espécie de valor utópico para os sujeitos
periféricos e, com isso, uma gama considerável de distorções aparecem no
imaginário.

Não pretendemos aqui defender ou mesmo justificar a prática de sequestros,
latrocínios e etc. A questão no limite é outra: muito antes da ação
perversa e sanguinária dos chamados bandidos, a banalização da violência
não encontraria já na arquitetura das favelas sua concretização mais
explícita e representativa? Como é possível formas de habitação que
produzem o empilhamento de seres humanos se tornarem, nos últimos anos,
verdadeiros pontos de turismo cujo passeio é previamente comercializado nas
agências de viagem? Nunca é demais relembrar que o pacote é vendido com
direito a guia turístico e, em algumas ocasiões, *souvenir* sexual para
fidelizar o cliente.

Em todo caso, se o Estado não tem moral na periferia, evidentemente que
isso não é fruto de letras ofensivas feitas por jovens entusiastas do
crime, e sim, entre tantas coisas, resultado da terrível qualidade dos
serviços públicos oferecidos à parcela pauperizada da sociedade – serviços
estes que incluem, por sua vez, a truculência policial.

Daleste era um artista de origem genuinamente popular. Foi nas quebradas da
Penha (bairro periférico da zona leste de São Paulo) que o funkeiro nasceu.
Iniciou sua carreira de MC aos 16 anos cantando suas composições em bailes
e *shows *modestíssimos, sempre nas periferias. Justamente nesta fase é que
surgem os “proibidões” mais contundentes, quando as letras são quase que
inteiramente preenchidas por nomes, marcas e tipologias de revólveres,
pistolas, fuzis, granadas e etc.

No entanto, o aspecto que mais chama a atenção é a recorrência das
expressões ‘guerrilheiro’ e ‘terrorista’. O interessante é que muito embora
utilizadas como sinônimos, na contramão do senso comum elas não apresentam
sentido pejorativo; na verdade servem de elogio e tornam a figura do
criminoso uma espécie de emblema superior e portador de valores nobres, um *
outsider* que não tem nada de pacífico e que se encontra profundamente
comprometido com a sobrevivência e a vitória na ‘guerra’ – outra expressão
recorrente.

No imaginário sedimentado pela poesia dos funkeiros chapa-quente, o crime,
mais do que produto de ressentimento, sintoma de perversidade ou projeto de
fancaria, é na verdade um *estilo de vida* combativo à ordem violenta e
opressiva que submete os de baixo. Isso tudo, vale dizer, apenas na
perspectiva da poesia do imaginário chapa-quente.

Assim, o banditismo conformaria simbolicamente um exército de ‘heróis da
favela’, aqueles que, segundo a canção de Daleste, enfrentam o risco de
terminarem confinados nos presídios ou mesmo mortos em nome de uma causa
maior: a vida no crime como *gesto de poder*.

Mas além do suposto entusiasmo pelo crime organizado, uma segunda face do
funkeiro também vem sendo exaustivamente explorada pela grande mídia: a
aparente esbórnia com que Daleste vivia, sem grandes pudores, ao desfilar
pelos becos e vielas da zona leste com seu *Porsche Cayenne*, vidro
abaixado, *Rolex *no pulso e anéis e pulseiras de ouro todos à mostra.

O estereótipo de ‘*bon vivant’* respeitado na quebrada, a bem da verdade,
foi conscientemente incorporado pelo jovem. Nos últimos anos ele abandonou
um pouco a “apologia” partindo para outro ramo, o chamado “funk ostentação”
que, se por um lado, permanece celebrando o ‘poder’ entre os favelados, por
outro desloca o empoderamento das armas e do crime para as roupas, os
carros, as bebidas e as mulheres, todos caríssimos – e que, na condição de
“produtos de poder”, obrigatoriamente se mostram réplicas ou exemplares
autênticos daquilo que normalmente é valorizado e consumido pela alta
burguesia.

Entre muitos outros, há basicamente três importantes problemas perceptíveis
a partir da construção de identidades apoiadas fortemente na “ostentação”
de bens de consumo: 1) a interiorização da perspectiva típica das classes
dominantes por parte das camadas dominadas, que passam a partilhar um
ideário que, no fundo, é estrategicamente favorável e plenamente instituído
somente entre os dominadores; 2) através do exibicionismo consumista de
alguns sujeitos periféricos, a crença infundada de que a pobreza não
apresenta raízes históricas objetivas que se formam a partir das interações
sociais ganha força, assim como a noção de que o empenho individual é a
verdadeira balança do sucesso material (inclusive entre os que
originalmente se encontram em situação de pobreza); 3) o amor incondicional
aos produtos de luxo submete toda e qualquer experiência humana aos
feitiços da mercadoria, que imperam como realização absoluta de tudo o que
aparentemente merece ser vivido ou possui valor de verdade.

É claro que a abordagem midiática passa a quilômetros de distância disso.
Na melhor das hipóteses o que será ressaltado é o esforço dos artistas, que
chegam a fazer cinco *shows* numa única noite e, portanto, merecem usufruir
da riqueza que dispõem. Todavia, é precisamente essa maneira de enquadrar a
questão que acaba dando brecha para que tipos deploráveis da sociedade
brasileira, sobretudo de classe média, intensifiquem ainda mais o ódio que
sentem pela população das periferias, geralmente miscigenada e descendente
de africanos escravizados ou, mais recentemente, de trabalhadores que
vieram das regiões norte e nordeste do país. Ao toparem com os funkeiros
“na telinha”, pensam consigo mesmos: “Como pode um animal desses ter um
carro de luxo lotado de gostosas enquanto eu, que trabalho há vinte anos”
etc., etc. e etc...

Ocorre que a arte de Daleste extrapola os regimes da “ostentação” e da
“apologia”. Ele também produziu funks “românticos”, orientados pela
expectativa de realização ideal do amor verdadeiro, bem como funks de
“consciência”, cuja sobriedade da letra somada à visão crítica em relação
às dificuldades que o mundo impõe aos pretos e pobres da periferia
apresenta forte afinidade com o rap. Mas com diferenças significativas.

Na obra dos Racionais o alto valor estético se sustenta pela elaboração
estilística sólida, fruto do acúmulo de politização e também de repertório
cultural, ambos adquiridos ao longo de duas décadas. Já a música do jovem
funkeiro apresenta certa simplicidade técnica e artística (característica
essa um tanto quanto comum ao funk em geral), as composições funcionam
através de rimas simples e motivos comuns. No entanto, elas não perdem a
dimensão lírica da existência humana, e sustentam em certa medida algo de
dramático que tem parte com a experiência social.

Essa dualidade se cristaliza com especial vigor, por exemplo, no timbre de
voz de Daleste. Meio infantil, meio efeminado e fortemente adocicado, ele
corresponde ao gosto de mercado característico do *pop* em geral; todavia,
há elementos mais complexos como certos exageros vocais que deixam
transparecer em desafino o esforço empreendido, ou mesmo a velocidade e a
destreza na dicção.

Esse jogo entre o que parece lúdico e pueril e, ao mesmo tempo, laborioso e
produtor de sofrimento, lança alguma luz sobre o complexo em questão:
Daleste conseguia, a seu modo, ser um produto que não deixava de revelar a
dor da produtividade, e isso de uma maneira bastante peculiar e sutil. Sua
voz, perfeitamente adequada ao gosto da massa, permanecia imperfeitamente
relutante à ideia de perfeição. É como se o artista fosse o catalisador de
materiais e elementos que percorrem a indústria cultural sem, contudo,
sucumbir inteiramente aos seus domínios.

Outra cristalização nítida desse jogo de contrários é o desarranjo
produzido pelos contrastes gritantes entre a pobreza e a riqueza que, à
revelia da vontade pessoal, conviviam sempre juntas. O rapaz vivia pelas
quebradas mesmo depois da fama, fazia jus ao apelido que carregava (Daleste
surgiu como ênfase do lugar de origem, isto é, “da zona leste”), e nos
diversos vídeos espalhados pelo *youtube* não há como desconsiderar o
estranhamento e a faísca que o luxo e a precariedade, em constante
interação visual, são capazes de produzir.

A variedade de estilos que explorou, em consonância à complexidade de sua
própria personalidade, faz de Daleste uma espécie de condensação de tipos
sociais profundamente representativos das periferias dos grandes centros
urbanos.

No filme *Bróder* (Jeferson De, 2010), a título de exemplo, havia três
grandes amigos representantes dos caminhos que se oferecem aos jovens
pobres da cidade grande: Macu (Caio Blat) interpretava um jovem ligado ao
crime; Jaiminho (Jonathan Haagensen) era o jogador de futebol, ídolo na
comunidade e símbolo da ascensão social; enquanto Pibe (Sílvio
Guindane)* *representava
o trabalhador comum, homem de família, conformado às regras sociais e aos
limites colocados pelo destino.

Os três formavam assim o elo de um universo fechado em diferentes níveis. E
eles podem claramente servir para compreendermos Daleste que, em quatro
anos de carreira, conseguiu ser um pouco de cada uma dessas personagens sem
deixar de ser ele próprio.

É verdade, porém, que todo seu talento e fama tornaram-se irrelevantes à
objetividade específica dos cálculos estatísticos que computam, na última
década, o crescimento incisivo do número de jovens negros vítimas de
homicídio no Brasil. Sua morte figura apenas como mais uma entre as
inúmeras tragédias que se repetem diariamente em nosso país.

E independente se foi crime passional, cobrança de dívida, rivalidade ou
ação de grupos de extermínio, o fato mesmo é que o menino não mais voltará
a pisar nos palcos para encantar o povo pobre da periferia. Embora agindo
por algum tempo como anfitrião, o ‘mundo cão’ parece mesmo ter conspirado
contra Daleste.

** Christian Gilioti é professor de filosofia no ensino médio e mestrando
em filosofia na FFLCH-USP. Pesquisa as formas artísticas de parte do cinema
nacional da última década e suas imbricações com a cultura e a política
contemporâneas.*
http://www.brasildefato.com.br/node/13618

-- 
carlos palombini
pesquisador visitante, centro de letras e artes, unirio
ufmg.academia.edu/CarlosPalombini
proibidao.org
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