[ANPPOM-Lista] agradecimento

Carlos Palombini cpalombini em gmail.com
Ter Fev 23 15:01:19 BRT 2016


​Em agradecimento àqueles que prestaram informações aqui ou de modo privado
sobre o *Choros 8* de Heitor Villa-Lobos, reproduzo minha resenha da
execução dessa obra na abertura da temporada da Orquestra Filarmônica de
Minas Gerais, na Sala Minas Gerais. Omito notas de rodapé e figuras, que
podem ser achadas no endereço https://www.academia.edu/22351155.

Um Villa-Lobos perturbador abre a temporada da OFMG

No dia primeiro de janeiro de 1928 uma das personalidades então mais
influentes da música francesa, o compositor Florent Schmitt, aos 57 anos de
idade, publicou na Revue de France uma resenha de quatro páginas sobre dois
concertos realizados em 24 de outubro e 5 de dezembro de 1927 na Sala
Gaveau. Dezessete anos mais jovem, mas desde 1921 considerado pela imprensa
francesa “o maior músico moderno brasileiro”, Heitor Villa-Lobos
apresentara ali uma seleção de obras recentes. Integravam a primeira récita
três *Choros* de câmara, o Quarto (1926–1927), o Segundo (1924–1925) e o
Sétimo (1924–1925); cinco das dez Serestas para voz e orquestra
(1925–1926), com a soprano Elsie Houston; o Rudepoema (1921–1926), com
Arthur Rubinstein; e aquela que, décadas mais tarde, o musicólogo finlandês
Eero Tarasti consideraria “a composição mais fauvista e ‘moderna’” do
período modernista de Heitor Villa-Lobos: *Choros 8*, para orquestra e dois
pianos. Schmitt dedicou-lhe todo um parágrafo:

E porque é necessário que o interesse siga sempre em *crescendo*, chegamos
> ao gigantesco *Choros VIII*, ponto culminante dessa noite memorável de 24
> de outubro. Aqui, paralelamente à orquestra, de volta ao normal, suas
> oitenta engrenagens enfim agrupadas e prontas para entrar em luta, vemos
> desencadearem-se, já sem nenhuma hipocrisia, os piores instintos deste
> sobrevivente da idade da pedra. A fantasia acotovela-se com o sadismo, mas
> um sadismo estilizado de homem bom, de alma elevada, que não está ao
> alcance de um festeiro ou desocupado qualquer e mantém-se ciosamente no
> interior do círculo da beleza. A orquestra uiva e delira numa crise de *jazzium
> tremens*, e quando se acreditaria ter atingido os limites de um dinamismo
> quase sobre-humano, eis que, de golpe, desabam quatro braços de titãs, os
> de Aline van Barentzen e Tomás Teran, vinte dedos de aço, que na espécie
> valem por cem, a brandir dois formidáveis tanques Gaveau de quinze oitavas,
> os quais, sobre esse fundo tumultuoso, explodem com o estrondo de um abalo
> sísmico no inferno. É o golpe de misericórdia. A coisa torna-se demoníaca
> ou divina, conforme o entendimento. Pois adoramos ou execramos, mas não
> permanecemos indiferentes. Inevitavelmente, sentiremos que o verdadeiro
> grande espírito bafejou.
>

Oitenta e oito anos depois, o maestro Fabio Mechetti, diretor artístico e
regente titular da Orquestra Filarmônica de Minas Gerais, escolheu essa
obra, cognominada “*Choros* da Dança”, “*A sagração da primavera* do
Amazonas” e “O Oitavo Louco”, para abrir a temporada da Sala Minas Gerais,
residência da OFMG, nos dias 18 e 19 de fevereiro de 2016. Celina Szrvinsk
e Miguel Rosselini desincumbiram-se dos pianos.

A “batalha de ritmos” que o compositor desencadeia no *Choros 8* confronta
os intérpretes com um catálogo de dificuldades: binários, ternários e
quaternários simples alternam-se com compassos incomuns — 5/4, 6/4, 7/8,
9/8, 11/8, 11/16 — repletos de quiálteras de três, quatro, cinco, seis,
sete, nove, dez, onze e doze notas; há sucessões contínuas de figuras
acéfalas sincopadas e sincronização entre células realizadas por
instrumentos distantes no espaço, sujeitos a defasagens entre emissão e
recepção. Fabio Mechetti incorporou a personalidade naval de seu antigo
mestre, Eleazar de Carvalho, para atingir o equilíbrio necessário entre
disciplina de Forças Armadas e elasticidade afrodescendente com o qual
colocou em relevo sopros e percussões. Com uma carreira conjunta que
ultrapassa três decênios, o duo Celina Szrvinsk e Miguel Rosselini, estudou
a escrita pianística de Villa-Lobos meses a fio de modo a valorizá-la no
duplo papel de interlocutora e apoiadora de percussões e metais.

Por todas as dificuldades, *Choros 8* é uma das criações menos executadas
de Heitor Villa-Lobos. Depois de estrear em Paris, na Sala Gaveau, com a
Orquestra Colonne sob a regência do compositor, em 24 de outubro de 1927,
ela foi ouvida novamente ali em 7 de maio de 1930; em Nova York, na Sala de
Concertos da Feira Mundial, com a Filarmônica de Nova York sob a regência
de Burle Marx, em 4 de maio de 1939; de novo em Nova York, no Carnegie Hall
com a Filarmônica de Nova York sob a regência do compositor, em 8 e 9 de
fevereiro de 1945; no mesmo local, com a Orquestra dos Compositores
Americanos sob a regência de Dennis Russell Davies, em 14 de abril de 1996;
em Londres, no Barbican Hall com a Orquestra Sinfônica da BBC sob a
regência de Sakari Oramo, em 8 de março de 2014.

Do mesmo modo que *Ionisation* (1929–1931), de Edgard Varèse, *Choros 8*
depende de efeitos resultantes da distribuição espacial das fontes sonoras.
Esse fato impõe outros tantos desafios à fonografia, razão pela qual as
gravações são ainda mais raras. Conhecemos a de 1985, com Kenneth
Schermerhorn à frente da Filarmônica de Hong Kong; a de 1988, com Eleazar
de Carvalho à frente da Sinfônica da Paraíba; e a de 2005 com John
Neschling à frente da Sinfônica do Estado de São Paulo.

Os ingressos esgotaram-se rapidamente e tive de contentar-me com um lugar
atrás da orquestra, à esquerda — para uma partitura frequentemente
recriminada por encobrir as partes do piano, a pior localização possível.
Eu estaria exatamente atrás da tampa do segundo piano, junto à parte pesada
das percussões. Seja porque a acústica da Sala Minas Gerais é tão boa
quanto viva, e faz variar de modo imprevisível as perspectivas de escuta
conforme a localização, seja porque o trabalho do duo Szrvinsk-Rosselini
surtiu efeito, minhas expectativas contrariaram-se. Os pianos ganharam
justo relevo e a proximidade das percussões clarificou sensivelmente a
complexidade rítmica. A peça emergiu em dançante fulgor, na delicadeza dos
jogos entre as sonoridades da harpa, da celesta e do piano.

Eero Tarasti compara o tratamento que Darius Milhaud dá ao maxixe com a
maneira expressionista pela qual o “Turuna” de Ernesto Nazareth se
manifesta no *Choros 8*. Se, para Mário de Andrade, o *Choros 8* é o “Choro
do maxixe”, trata-se de um maxixe transfigurado. O diálogo entre
civilização e barbárie que se faz ouvir ali torna o *Choros 8* a mais atual
das obras de Villa-Lobos, aquela que mais diretamente fala ao século XXI no
que este possui de orgiástico e brutal. Resta esperar que a Sala Minas
Gerais assista à gravação definitiva desse Villa-Lobos tão perturbador quão
deslembrado, com Fabio Mechetti à frente da OFMG e o duo Celina Szrvinsk e
Miguel Rosselini aos pianos.

Carlos Palombini​, 23 fev. 2018
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