[Dicasdeiluminacao-l] Lighting design e arte abstrata

Valmir Perez valmirperez em gmail.com
Qui Jan 17 15:56:37 BRST 2008


Prezado(a) assinante, boa tarde,

Envio abaixo texto originalmente publicado na Revista Lume
Arquitetura<http://www.lumearquitetura.com.br/>no. 29 - Ano V - pags.
68 a 74
Esse texto faz parte de uma série de artigos que serão publicados nessa
revista, onde me proponho discutir arte pictórica e iluminação.
Espero que eu possa dessa forma chamar a atenção dos profissionais e
estudantes de iluminação sobre tema para mim tão fascinante, e que envolve
profundamente o dia a dia dos lighting designers brasileiros.
Um abraço,


*Lighting design e arte abstrata*

* *

*Um paralelo entre as idéias do mestre Kandinski e a iluminação*


            Tenho notado ultimamente algo nos projetos de iluminação que me
parece bastante sério. Perturbador mesmo. Parece que, de repente, surgiu uma
espécie de onda no País, que tem feito com que muitos projetos pareçam
iguais. Cheguei a pensar que eu poderia estar exigindo demais dos designers.
Imaginei que as tecnologias que estavam chegando com força no Brasil e, de
alguma forma, influenciando as escolhas dos profissionais iria passar
rapidamente, como passam as ondas.               Mas o fato é que o tempo
foi passando, e eu não consegui perceber tantas mudanças. Os projetos,
tirando algumas exceções, apresentam ainda "receitas" prontas, iguais
àquelas de bolo, que a gente faz, e nunca mais esquece. Pior ainda, a gente
não esquece porque deu certo uma vez e, certamente, dará certo sempre.



            Torçam os narizes os mais cépticos, mas esta "coisa" não
funciona quando tratamos nossos projetos como o que eles realmente são:
obras de arte. E estas fórmulas não funcionam justamente por isso: porque
iluminação é arte, e na arte não existem receitas. Não existem "regras" que
possam ser cumpridas sempre que necessitamos, de alguma forma, nos
expressar.



            Podemos (e devemos!) aprender os meios de fazer a arte, tais
como: as técnicas, os materiais,  as tecnologias e teorias que regem o mundo
das formas, dos sons, das cores, da harmonia etc. No entanto, não podemos
usar esses conhecimentos como um receituário. O lighting design deve ser
mais complexo, mais instigante, pois nele há um lado invisível, espiritual,
intuitivo...



            Quando andamos nas ruas, nos confrontamos, muitas vezes, com
essas receitas de iluminação, replicadas por todos os lados, nos shoppings,
nos condomínios etc. Mas será que nos perguntamos a razão dessas imagens
criadas pela luz, das cores, das sombras? Será que sabemos o valor de um fio
de luz que invade uma parede, como uma fenda aberta? Será que nos
perguntamos qual a finalidade dessas cores jogadas sobre esses jardins? Ou
podemos perceber o valor estético, resultado de todas essas combinações num
mesmo ambiente?



            Claro que a maioria das pessoas nunca questionará esses valores
com profundidade, mas não estou falando da maioria das pessoas, estou
falando daqueles que querem não apenas reproduzir o que está na moda, mas
fazer com que seus trabalhos sejam capazes de chegar à alma das pessoas.



            Bem, até aqui falei apenas de projetos de iluminação que compõem
o mundo da arquitetura, do design de interiores e exteriores. E o que dizer
dessas luzes que são "jogadas" sobre os palcos, onde qualquer movimento, por
mais ínfimo que seja, vem carregado de simbolismo? Onde se torna necessário
o conhecimento da luz, das formas, das cores, dos movimentos, do conteúdo
dessas complexas composições.



            No que diz respeito à iluminação cênica, as tecnologias também
chegaram ao País atropelando nossos profissionais. Lá fora, onde foram
criadas, foram pesquisadas e produzidas para atender demandas estéticas.
Quando aqui chegaram, em meados dos anos oitenta, produziram uma verdadeira
revolução.



            O que mete medo é saber que nossos jovens profissionais estão
muito mais preocupados com as tecnologias do que em como transformá-las em
ferramentas de expressão. Fazendo uma relação com a pintura, seria como se
os pintores e estudantes da arte pictórica se interessarem muito mais pelos
pincéis e pelas tintas do que pela própria expressão artística. Um absurdo
que provavelmente nos traria conseqüências catastróficas: uma geração
inteira perdida e abismada com os seus pincéis e tintas.



            A mim, parece-me que isso está atualmente acontecendo aqui no
Brasil com a iluminação cênica e, algumas vezes, com a arquitetural. Mas não
é o pessimismo que nos fará quebrar essas algemas, e sim o aprofundamento
dos conhecimentos mais sutis que envolvem a criação artística. É o
reconhecimento de que a arte, assim como a ciência, é um campo imenso de
pesquisas, de busca de entendimento e soluções.



            Nosso mestre Kandinski e muitos outros que vieram antes e depois
dele, também em suas épocas e culturas, tiveram que romper algemas. As
algemas eram outras, mas a força que exerciam sobre espíritos empreendedores
era tão forte como as que enfrentamos hoje.



            E por isso, acredito que a análise da vida e a obra desses
homens e mulheres pode, de alguma forma, nos ajudar a alçar vôos. E, quem
sabe, nos impulsionar a jogar as receitas pela janela e buscar a compreensão
do que ainda é novo em suas características técnicas, e utilizar
simplesmente como ferramentas de criação.


Em busca de uma teoria da arte



            Em 4 de dezembro de 1866 nascia em Moscou, na Rússia Czarista,
Vassili Wassilievich Kandinski. Dotado de uma incrível sensibilidade
artística, principalmente no que diz respeito à cor, e de uma inteligência
notável, viria a se tornar uma das mais fortes e expoentes vozes da arte
moderna ocidental.



            Suas idéias consolidaram as vertentes modernistas do começo do
século XX que, por sua vez, derrubaram a hegemonia dos rígidos conceitos do
classicismo nas artes plásticas, literatura, arquitetura, escultura, música
e até mesmo na filosofia e ciência. Sua obra é considerada por muitos
estudiosos uma ruptura dentro da ruptura, pois para Kandinski a
questão da forma
se torna secundária. Para ele, a arte abstracionista abole a forma como
princípio e parâmetro básico de expressão e abre caminho para as liberdades
do espírito.



            Mas o abstracionismo de Kandinski conquista respeito no meio
artístico de sua época não apenas por sua inovadora "formalização" da livre
expressão do espírito, mas, sobretudo, por sua acurada base teórica, fruto
de muitos anos de pesquisa sobre as possibilidades da cor, da forma e da
composição.



            Segundo o seu pensamento, "t*erminada a fase da cultura
realista, o novo homem dirige seu interesse ao descobrimento de uma dimensão
paralela à realidade e, portanto, não física, mas na qual se encontram
várias formas expressivas do ser humano, uma dimensão que o olho não vê, mas
que a mente pode compreender" *(Kandinski 1998) [1]*.*



            Na sua característica — única, de conseguir unir o trabalho
minucioso do artista sobre a paleta e um poderoso discurso teórico, baseado
em experimentos complexos e persistentes,  Kandinsky  transformou-se no
porta-voz de uma "nova arte". Seus manuscritos e publicações de pesquisa,
posteriormente transformados nos livros "Ponto e Linha Sobre o Plano" e "Do
Espiritual na Arte", revelam-nos isso.



            Para o pintor, as cores e as formas [2] já possuem expressão,
vida espiritual próprias e, com elas, o espírito humano pode se expressar
muito mais e melhor do que se utilizasse os elementos prontos da natureza.


Arte abstrata ou figurativa?

* *

            Um texto de Alexandre Kojève, sobrinho do artista, fruto das
discussões entre ele e o mestre, redigido em 1936, e publicado em 1966, no
número 27 da revista XX° siècle, com a aprovação de Kandinski, define o que
seria arte abstrata e arte figurativa.



            O texto surpreende pela sua perspicácia e pela intensa "verdade"
escondida até então pela visão clássica da arte, quando afirma que: *"é a
pintura tradicional que é abstrata, já que extrai (portanto abstrai) o Belo
encarnado de maneira visível na natureza. A pintura não-figurativa, esta
sim, é concreta e não-abstrata, visto que cria um objeto e, por conseguinte,
o Belo não é, nela, abstraído da natureza, mas produzido diretamente por
meios que lhe são próprios. A pintura não-figurativa é tão concreta e tão
objetiva, quanto o Belo encarnado na natureza" *(Kandinski 1998) [3].



            Portanto, a arte que utiliza seus elementos fundamentais e
não-figurativos para a criação de suas obras, provém do espírito do artista
e vai ao encontro, diretamente, do espírito do observador, através da
essência de seus elementos. Quando olhamos para um quadro abstrato estamos
"vendo" a expressão do artista, sem interferência. Não abstraímos através de
nenhum elemento formal existente na natureza para chegarmos ao que foi
expresso.


O espírito, as formas e as cores...



            Na visão de Kandinski, para a arte pictórica atingir seu
objetivo, ou seja, realizar a composição pura [4], ela conta com dois
principais meios: a cor e a forma. Para ele *"só a forma, enquanto
representação do objeto (real ou não), enquanto delimitação puramente
abstrata de um espaço, de uma superfície, pode existir por si mesma".*

* *

*            *E ainda:* "não se concebe a cor estendida sem limites. Só a
imaginação* *ou uma visão do espírito é que nos permite representar um
vermelho ilimitado"* (Kandinski 1998) [5]. Nesse sentido, suas idéias
concluem que as formas exercem suas influências sobre a cor e vice-versa,
portanto, uma determinada forma modifica-se "interiormente" por carregar uma
determinada cor, e uma cor também é modificada quando vinculada a uma forma.




            Se as formas e as cores possuem vida e espírito próprios, seria
possível determinar suas variantes e, conseqüentemente, suas harmonias (num
sentido mais profundo, mais espiritual do termo). "*É fácil perceber que o
valor de tal cor é sublinhado por tal forma e atenuado por outra. Cores
'agudas'  têm suas qualidades ressoando melhor numa forma pontiaguda (o
amarelo, por exemplo, num triângulo). As cores que podemos qualificar de
profundas vêm-se reforçadas, sua ação intensificada, por formas redondas (o
azul, por exemplo, no círculo). É claro, por outro lado, que o fato de não
combinar a forma com uma cor não deve ser considerado uma 'desarmonia'.
Cumpre ver aí, pelo contrário, uma nova possibilidade, portanto, uma causa
de harmonia*". (Kandinski 1998) [6].



            As idéias do mestre não se restringem apenas ao campo da
estética, mas também ao campo da ética, principalmente à ética do artista e
da arte. Vivendo em plena virada do século XIX para o século XX, Kandinski
manteve contato com os movimentos ditos de "ciência religiosa" (teosofia,
espiritismo etc.), ao mesmo tempo que sentia o declínio espiritual dos
artistas que buscavam, na maioria das vezes, apenas o sucesso.



            Para ele, os artistas estavam por demais vinculados aos
entendimentos, conceitos e condutas materialistas, típicas da visão
mecanicista, fruto também da ascensão de uma classe burguesa da era
industrial. O sucesso, segundo ele, poderia ser o atestado de que esse
artista produzia uma obra morta, sem expressividade espiritual, pois, em sua
concepção da arte, a expressão do artista tinha que vir diretamente do
espírito e não de seu ego.



            Era preciso se libertar do jugo de uma criação voltada
simplesmente ao entretenimento e diversão dessa burguesia e assumir, de uma
vez por todas, um papel de alavanca revolucionária do mundo. O Kandinski
visionário também enxergava, num futuro mais ou menos distante, o nascimento
de uma nova arte – a arte puramente espiritual, sem intermeios, puramente
"abstrata", como abstratos são os movimentos interiores do espírito humano.


Do espiritual na arte da iluminação

* *

            Formas, cores, brilhos, intensidades, movimentos, composições,
enfim, todos os elementos utilizados pelos artistas visuais de todas as
épocas são também os elementos dos artistas da luz. Além de conhecer os
conceitos e linguagens da iluminação existentes, os lighting designers podem
encontrar suas referências nos mestres da pintura.



            Ora, se os antigos e modernos pintores sempre buscaram, e ainda
buscam, a luz ideal para as suas obras, por que não reverter o processo e
buscar nas artes visuais a luz ideal? Seria como reverter o processo da
pesquisa e criação de uma linguagem à outra e vice-versa.



            Mas, é preciso lembrar que a arte da iluminação possui
características próprias. Diferentemente da pintura, que através da cor e da
forma constrói a composição sobre um determinado suporte [7], portanto a
temática, e nela se encerra, a luz busca reforçar poéticas que foram criadas
por outros artistas.



            Seu papel é "iluminar" o que já "é" e foi criado através de
outros mecanismos de linguagem, o que não significa que a luz não poderia
ser ela mesma o "material" expressivo, mas estamos falando aqui da
iluminação como elemento de uma obra e não como a própria obra. Mesmo assim,
a iluminação se torna, então, co-criadora dessas linguagens, já que dá forma
e cor, agindo e modelando, fazendo brilhar, apagando, mostrando, ocultando,
insinuando, deformando, posicionando, refletindo e tudo o mais que é
possível nas leis da física e nas leis das relações complexas.



            Se a forma, a cor (portanto os tons), o brilho, etc., são
fundamentais para que Kandinski busque conhecer profundamente esse universo
vivo para expressão da alma, o que dizer então sobre  o significado destes
elementos para os artistas da luz?



            Trabalhamos intensamente com todos esses elementos, numa relação
muito mais abrangente, num universo de criação tridimensional,
demasiadamente complexa, intrigante e excessivamente rica de materiais, de
ferramentas e de situações.



            Uma luz recortada em forma triangular não resultará exatamente
num triângulo projetado, mas se alterará, de acordo com outros fatores, tais
como: ângulo de incidência, direção, propriedades dos elementos refletores,
formas dos objetos nos quais ela incide, posicionamento do observador etc.



            E seu movimento? E o movimento das cenas nos teatros, na dança,
nos musicais? E na arquitetura? E de que maneira poderíamos utilizar essas
estruturas móveis ou imóveis a fim de interferirmos positivamente na obra? E
os climas psicológicos que poderão advir dessas mudanças? Percebam a
quantidade de informações e, ao mesmo tempo, a quantidade de possibilidades
que estão à nossa disposição!



            Claro que nenhum de nós tem ou terá, algum dia, condições de
conhecer, racionalmente, todas essas possibilidades. Isso não é trabalho
para uma vida, nem sequer para várias vidas humanas, porém, a obra do grande
mestre Kandinski nos incita a buscar sempre o entendimento do espírito. O
espírito criativo que busca o "invisível" para torná-lo visível.



            Busca árdua, ele é quem o diga, naquela época, e ainda hoje, sua
obra é rejeitada por muitos que acreditam que ele cumpria um certo
"charlatanismo" pictórico, quando através apenas das formas e das cores
buscava uma linguagem que estava, e ainda está, além do nosso tempo. Suas
imagens não são representações do mundo real exterior, mas representações
das pulsações espirituais interiores, que são muito mais ricas do que a
nossa vagarosa mente e os nossos mais potentes computadores possam supor.



            Para comprovação, basta tentarmos analisar o que sentimos,
pensamos e vivenciamos durante apenas um dia de nossas vidas. É desse mundo
sensorial que surgem as imagens das telas de Kandinski. Nelas estão
impregnadas uma poesia própria, íntima e contundente.



            No mundo das sensações do espírito, das imagens que existem
dentro de cada um, no autor do texto, no compositor da música, nas obras do
arquiteto e do cenógrafo, moram os segredos que só se revelam na arte. Esses
mundos ocultos, quando descobertos, levam-nos a partilhar um pedaço do pão
do banquete que um dia virá a se constituir na Arte Monumental [8]. Assim,
para estabelecer uma estética própria nos projetos de iluminação é preciso
que o artista da luz busque suas respostas (que são só suas!) em viagens
interiores.



            À arte, cumpre satisfazer o espírito, elevando-o e o levando a
"enxergar" novos horizontes, que estão acima da nossa capacidade comum de
percepção. A luz, por si mesma, carregada de significação - até mesmo a
mística de sua palavra - deve também cumprir o seu papel em meio às artes,
as quais expõe e complementa.



*Referências*



[1] PECCATORI, Stefano;ZUFFI, Stefano (Coord.). Kandinski. Biblioteca
Editrice, 1998. p. 18.



[2] Pesquisadas por ele principalmente em suas bases geométricas
fundamentais: círculo, triângulo, quadrado, etc...

[3] KANDINSKI, Wassili. Do Espiritual na Arte. São Paulo: Martins Fontes,
1996. p. 277.

[4] Composição pura no sentido de se tornar uma arte abstrata pura, onde,
como a música, atingiria diretamente o espírito do apreciador, sem a
intermediação, por exemplo, dos sons encontrados na natureza.

[5] Op. Cit. Pág. 21.

[6] Op. Cit. Pág. 21.

[7] A luz colorida que incide sobre uma superfície branca se comporta como a
tinta do pintor sobre a imprimidura da tela, porém, quando incide sobre
superfícies coloridas, comporta-se como o que na pintura chamamos veladura,
ou velatura, ou seja, cria através dessas misturas terceiros cromatismos.

[8] Richard Wagner chamava de "Arte Monumental", uma arte, onde todas as
artes reunidas deveriam buscar a harmonia de seus complexos com o propósito
de atingir diretamente o espírito humano.

* *


-- 
Valmir Perez
Lighting Designer
Laboratório de Iluminação
Unicamp
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