[Dicasdeiluminacao-l] A Fagulha da Criatividade Humana

Valmir Perez valmirperez em gmail.com
Ter Jan 29 08:34:41 BRST 2008


Prezado(a) assinante, bom dia,

Segue abaixo excelente texto de Ana Maria Baiana, enviado pelo nosso
amigo iluminador Eduardo Salino.

Aproveitem!

A Fagulha da Criatividade Humana

Ana Maria Bahiana

No começo, a bem da verdade, não havia muita coisa. Talvez uma
fogueira em torno da qual nos reuníamos, assim que o sol se punha,
para ouvir os mitos e sagas da tribo na voz de xamans e curandeiras.
Vagalumes, quiçá. Tochas.
O efeito final era inegável. Nada como a luz para dar a uma narrativa
uma nova camada de poder – um fato que nunca escapou a sacerdotes e
profetas de todas as religiões. Manipular a luz é manipular nossos
circuitos cerebrais mais profundos. Ficamos em transe, eufóricos,
recolhidos, mansos ou irados em grande parte por causa da luz, do modo
como a retina a recebe e absorve, as contrações da pupila pautando
nosso córtex.
Os gregos provavelmente tentaram mover o Sol, mas na ausência de
colaboração da parte dele, aprenderam a mover seus palcos – os teatros
clássicos eram construídos de modo a melhor aproveitar a incidência da
luz solar sobre os atores, e diferentes textos eram encenados em
diferentes horas do dia para tirar partido deste "efeito especial"
espontâneo. Como escreve o designer de iluminação da Broadway Bill
Williams, "este foi, provavelmente, o primeiro projeto de um desenho
de luz ligado "as artes dramáticas".
A Renascença trouxe a luz de volta de diversos modos, um deles
bastante literal: em 1580, na Itália, encenaram-se os primeiros
diverttimenti dramaticamente iluminados por velas, tanto num teatro
acadêmico, o Olimpico, quanto num teatro de corte, o Farnese. A moda
pegou rapidamente, e foi à luz de velas – primeiro dispostas em cena,
depois suspensas em enormes candelabros – que Shakespeare e Moliere
viram seus trabalhos encenados. O custo era baixo, mas imaginem o
risco – de incêndio, como era extremamente comum (o próprio Globe,
residência da companhia de Shakespeare – os King's Men – foi destruído
pelo fogo em 1613, durante uma encenação de Henrique VII). Ou no
mínimo de cálidas gotas de espermacete em pele, pelos e perucas, em
cena aberta. A vida de artista, embora excitante, nunca foi fácil.
Na verdade, o principal problema na trajetória da iluminação dramática
sempre foi, literalmente, impedir que o próprio palco pegasse fogo.
O século 18 trouxe a lâmpada de óleo redesenhada pelo suíço Aime
Argand, e rapidamente disposta em cena – na boca do palco, em
candelabros e em plataformas suspensas nas coxias – em substituição às
velas. Em 1816 a alta sociedade da Filadélfia foi brindada com uma
novidade espetacular, cortesia do tradicional Chestnut Street Theater:
a primeira iluminação de cena inteiramente a gás, controlada por um
painel e nutrida por uma "fornalha especial" anexa à casa. Mais uma
vez o progresso trouxe na garupa sua própria maldição: quatro anos
depois o Chestnut Street Theater foi inteiramente destruído por um
incêndio, provavelmente criminoso, e incitado pela explosão da
fornalha de gás.
Apesar disso, a moda do gás pegou com toda a força, e já em 1817 dois
dos principais teatros de Londres – Covent Garden e Drury Lane – eram
iluminados com a nova tecnologia. Na metade do século 19, o gás era o
padrão da iluminação cênica, controlado por "mesas de luz"
extremamente complexas que permitiam a um técnico, sob a orientação do
diretor, alterar a intensidade das muitas vezes centenas de bicos de
gás em cena (o recorde pertence ao Teatro Real de Estocolmo, na
Suécia, que, em 1850, tinha 562 bicos de gás compondo sua iluminação
de cena).
Tudo isso muda em 1879, quando nossa história, para todos os
propósitos, começa: Thomas Alva Edison , qual Prometeu moderno,
aprisiona o Sol num globo de vidro. A lâmpada elétrica é inventada.
Homero ficaria feliz.
Felizes também ficaram os dramaturgos, atores e donos de teatros, que
ganhavam ao mesmo tempo um novo recurso narrativo e plástico e um
seguro de vida.
Segura, prática, potente, a lâmpada elétrica não precisa mais que uma
década para garantir seu lugar em cena e a ela se adaptar. Na década
de 1880 a lâmpada de cálcio (ou "limelight", palavra que em inglês é
sinônimo para "ribalta". Você não se lembra daquele filme de Chaplin?)
é desenvolvida especialmente para a iluminação dramática – muito mais
forte que a lâmpada comum, ela permite o uso de menor número de
unidades, e abre a porta para novos posicionamentos, usos de cor e
contraplanos. Nos anos 1890 ela é substituída pela "arclight", mais
potente e mais dramática (em 1849 um protótipo já havia sido testado
em cena para recriar o nascer do sol numa produção da Ópera de Paris).
Quando o século 20 se inicia, a iluminação de cena é um elemento
dramático tão natural diante da platéia quanto os atores. Na década de
20, os esforços de dois imigrantes alemães, Anton e John Kliegl,
lançam, nos palcos de Nova York, a matriarca de todas as nossas atuais
luzes de cena: a lâmpada klieg. Batizada com uma abreviatura do
sobrenome dos irmãos, a klieg, em sua pureza, potência, clareza e
resistência, é capaz de tornar, nas palavras de um entusiasmado
cronista da época, "a mais negra noite no mais claro dos dias".
Para o criador – de teatro, música e também desta arte ainda
adolescente, o cinema – a klieg e suas descendentes são uma palheta
que se torna progressivamente mais especializada e mais eclética à
medida em que o século evolui, enlouquece, desbunda e finalmente
deságua nos 2000, cobertos de recursos praticamente infinitos.
Gostaria de poder dizer que o momento definidor de uma nova era no uso
da luz em cena é o rock'n roll: é o bias da minha geração.
Infelizmente, esta teoria está furada: rock'n roll é essencialmente a
criatura de lugares toscamente iluminados, seja pelo excesso (Elvis
numa Feira da Agricultura do sertão americano; Paul McCartney vendo
John Lennon na traseira de um caminhão numa quermesse de igreja em
Liverpool) seja pela falta (os porões de Cavern Club, Marquee, CBGB's
e companhia – e as garagens do mundo todo). Algumas das minhas
epifanias rock'n roll mais memoráveis foram acompanhadas por luzes não
muito mais incandescentes que as dos abajures aqui de casa: Novos
Baianos no Ginásio da PUC do Rio, 1973; U2 no Roxy Club de Nova York,
1981; REM no ginásio da Universidade da Califórnia em Irvine, 1988.
Concluo que, como tudo nesta arte vira-lata, a contaminação é que
acabou produzindo os padrões que temos hoje, onde artistas não pisam
os palcos sem que antes se saiba quem assina a luz e quantos
canhões/kilowatts estão envolvidos na empreitada.
Das artes plásticas e das drogas psicodélicas vieram os padrões
abstratos criados por Joshua White para os históricos palcos do
empresário Bill Graham, os Fillmore West (em São Francisco) e East (em
Nova York) no final dos anos 60. Intensamente viajantes, as "pinturas
luminosas" do Joshua Light Show são parte integrante da memória
gráfica e visual do período. Mais que isso: são a base, o fundamento
sobre o qual repousa tudo o que se vê hoje nas arenas do mundo, da
abertura dos jogos olímpicos às turnês do U2 ao Cirque du Soleil.
(Joshua White continua produzindo instalações de luz, colaborando com
os artistas plásticos Michael Smith e Gary Panter).
Do Joshua Light Show veio a "bolha", espécie de batik de luz que no
Brasil marcou a transição da Tropicália para o Rock Brasil – e que,
que eu saiba, foi primeiro praticada, com destreza profissional, por
Bimbão, o legendário iluminador-über roadie do supergrupo carioca A
Bolha (coincidência cósmica?). Como seu antepassado profissional,
Bimbão continua emprestando sua arte (e sua "bolha") aos palcos
brasileiros, tendo assinado a luz de shows recentes de Gal Costa e
Erasmo Carlos.
Do teatro dramático e dos shows da Broadway vieram os elementos over
que marcam a estética pop dos anos 70 , 80 e – com uma breve
interrupcão para rosnidos punk/grunge em condizentes trevas – dos 90.
Você sabe do que estou falando: laser e porcos voadores para o Pink
Floyd, uma torre hidráulica radiante de verde-neon para o U2,
explosões e jatos de cor e fumaça para Ozzy Osbourne e qualquer banda
metal que se preze.
No meio destas aventuras (cujos extremos estão tão deliciosamente
flagrados no pseudodocumentário This is Spinal Tap, de Rob Reiner) é
bom notar o espetacular bom gosto de David Bowie, reinventando o light
show com sua persona Ziggy Stardust, trazendo tudo para a gama dos
tons pastel em sua turnê Serious Moonlight de 1981-82 ("eu queria me
aproximar da estética das revues negras, de soul music e rhythm n
blues", Bowie disse, na época) e, ultimamente, trabalhando com os
recursos expressionistas do artista da iluminação Willie Williams, o
mesmo da companhia de dança LaLaLa Dance Steps.
Pelo simples poder financeiro da vastidão de seus recursos devem ser
notados estes verdadeiros patronos das artes pop, os Rolling Stones e
Paul McCartney, cujas turnês recentes abrigaram luzes suficientes para
acender um pequeno país – com a expertise de Patrick Woodroffe, que
também faz light shows para famílias reais, óperas e o Vaticano.
Aqui vem a parte interessante desta jornada – como o caldo da mistura
é infinito, e das margens experimentais caminha-se novamente para o
centro da estrada, e os delírios visuais de algumas décadas atrás
informam o grande espetáculo: seria o Rei Leão possível sem o Joshua
Light Show ou o teatro de sombras da Indonésia?
No Brasil, há um belo caminho de invenção pela frente. Este é um
desses ambíguos dons: da restrição tiramos a criação, do obstáculo,
improviso, da crise, oportunidade. Marga Ferreira, designer de luz
(Adriana Calcanhoto, Engenheiros do Hawaii) e sócia da empresa
ClaraLuz, de Porto Alegre, já iluminou espetáculos usando espelhos e
abajures, e é fã de um velho quebra galho conhecido como "gelatina
vazada", que permite lançar luz colorida e branca, simultâneamente.
No outro extremo do país, os espetáculos da banda Cordel do Fogo
Encantado aliam o que há de mais ponta de linha em recursos
tecnológicos com o mais básico, humano e rudimentar. O designer de luz
pernambucano Jathyles Miranda prende pontos de luz de ultra-brilho
vermelhos alimentados por bateria de calculadora nas mãos do vocalista
do Cordel, e transforma uma armação de arame vazado num boi-bumbá
futurista, graças a 120 lâmpadas de 12v.
Assim pintamos com luz – usando os talentos múltiplos de artistas como
Marga e Jathyles e também o pioneiro Peter Gasper, Juarez Farina,
Maneco Quinderé, este incrível polivalente, Ney Matogrosso e tantos
outros.
Da fogueira até aqui, e adiante – a luz mais bela e duradoura continua
sendo a fagulha da criatividade humana.



-- 
Valmir Perez
Lighting Designer
Laboratório de Iluminação
Unicamp
www.iar.unicamp.br/lab/luz
http://valmirperez.blogspot.com/
http://imprensanaprensa.blogspot.com/
Skype: lablux
Fones:
(19) 35212444
(19) 92229355



Mais detalhes sobre a lista de discussão Dicasdeiluminacao-l