[Dicasdeiluminacao-l] Segurança no trabalho

Valmir Perez valmirperez em gmail.com
Sex Out 3 09:49:10 BRT 2008


Prezado(a) assinante, bom dia,

Essa manhâ recebi pela plenária da Abric - Associação Brasileira de
Iluminação Cênica http://www.abric.org.br/SkyPortal_v1/default.asp um
maravilhoso texto do amigo Sávio Araújo que gostaria de partilhar com vocês.

O sávio é Doutor (2001-2005) e Mestre (1995-1997) em Educação pelo
PPGEd/UFRN. Graduado em Educação Artística - Habilitação Artes Cênicas pela
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (1995). Atualmente é professor
do quadro efetivo - Adjunto II do Departamento de Artes da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte. Tem experiência na área de Educação e Artes,
com ênfase em Teatro, atuando principalmente nos seguintes temas: ensino de
teatro, cenografia, tecnologia cênica, iluminação cênica, encenação teatral
e pedagogia. Membro permanente dos seguintes espaços e grupos de pesquisa da
UFRN: Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas - PPGArC/UFRN CENOTEC -
Laboratório de Estudos Cenográficos e Tecnologias da Cena. GEPEM - Grupos de
Estudos de Práticas Educativas em Movimento.

O texto, que aborda a segurança do trabalho na área de iluminação,
provoca-nos à reflexões que vão além do simplismo encontrado na maioria dos
dircursos que pretendem resolver os problemas sociais e de origem cultural.
Embora o texto tenha sido dirigido à comunidade da Abric, na minha opinião,
ele serve para todos nós que gostaríamos que a vida humana fosse tratada com
o respeito e a dignidade que merece.

Quero deixar aqui o agradecimento ao amigo Sávio por esse texto tão lúcido e
que chega num momento tão grave da história dos povos. Momento que nos pede
a reflexão sobre quais os valores que estão sendo difundidos pela sociedade
globalizada, competitiva e hipermaterialista.

Um ótimo final de semana a todo(a)s,

Segue abaixo o texto na íntegra:

Caros e caras colegas da ABRIC,

Tenho acompanhado, ainda que à distância, as contribuições da Rose no campo
da segurança do trabalho e me confesso profundo admirador de seu empenho e
dedicação a uma área tão negligenciada e culturalmente desprestigiada como é
a da segurança dos que trabalham na montagem e execução de espetáculos.

Colocando-me ao lado dos que se dispõem a enfrentar esse problema, que
extrapola as fronteiras do nosso cotidiano profissional, afirmo que estou
absolutamente convencido de que apenas garantir o acesso a informação não
resolve o problema dos maus hábitos.

Todos acompanhamos estarrecidos o crescimento da epidemia de AIDS no mundo.
Todo o investimento que tem sido feito em publicidade e educação nessa área,
apesar de imprescindível, não tem sido suficiente para conter o aumento dos
índices da doença, principalmente entre os adolescentes, onde também se
agrava o problema da gravidez precoce.
A grande maioria das pessoas sabe da existência dos métodos contraceptivos e
preventivos das doenças sexualmente transmissíveis.
Apenas não usam.

O fato de estar vivendo temporariamente no Canadá, um lugar onde a questão
da segurança parece tão arraigada à cultura das pessoas que para nós
estrangeiros chega a parecer obsessiva, tem me feito perguntar
cotidianamente:  que sistemas de valores são esses que colocam a questão da
segurança em um patamar tão destacado em alguns países e tão negligenciado
em outros?

Ou ainda: empresas de países de primeiro mundo, atuando regularmente no
Brasil, conseguem manter os padrões de segurança, como os que são praticados
no Canadá, ou acabam adaptando seus procedimentos a padrões mais flexíveis?

De que forma os dispositivos legais, aliados à propaganda e a educação,
podem influenciar a cultura que opera sobre o rigor no exercício de hábitos
de segurança no trabalho e na vida em geral?

Como podemos, ainda que a longo prazo, mudar nossos hábitos negativos
relacionados à segurança profissionais de  espetáculos?

A questão é complexa e possui muitas entradas.
Vamos evitar a comparação de culturas, pois o relativismo antropológico nos
prova a ineficácia desse método de análise.
Trata-se apenas de tentar entender porque, enquanto sociedade, nos tornamos
tão indiferentes a certos aspectos fundamentais para a qualidade e
manutenção da vida humana e como, enquanto sujeitos históricos, podemos
operar os meios necessários para atingir os mesmos patamares de valor da
vida humana que testemunhamos em outros países.

As razões de nossa inesgotável tolerância para o convívio com a desigualdade
social e, conseqüentemente, com as distorções praticadas no mundo do
trabalho, estariam no pitoresco mito da cordialidade do homem brasileiro,
apontado por Sérgio Buarque de Holanda, em sua obra "Raízes do Brasil"?
Ou estariam numa renitente vocação para o modelo "Casa Grande & Senzala",
explicado por Gilberto Freyre?

Talvez nossas explicações necessitem ainda dos esforços homéricos de Darcy
Ribeiro e João Ubaldo Ribeiro no sentido colocar algumas luzes sobre a
complexa formação do chamado "Povo Brasileiro" e seus sistemas de valores,
bem como das contribuições de tantos outros intelectuais brasileiros que já
empreenderam tempo e energia para que nós pudéssemos compreender melhor
nossas contradições e afirmações culturais.

Penso que nossas propostas de ação diante da questão dos hábitos segurança
no trabalho devam considerar uma reflexão mais aprofundada acerca de nosso
sistema de valores como base cultural, visando assim, possíveis
transformações neste estado de coisas.

Precisamos de alternativas aos modelos mecanicistas, que empregam muito de
sua energia criativa na tentativa de explicar conflitos, como a relação
patrão/empregado, sem considerar os múltiplos aspectos que permeiam essas
relações e sem tentar compreender o sistema de valores que lhes dão
sustentação.

A tentativa de entender esse problema por outras vias, precisa
necessariamente superar o positivismo mecanicista da equação:

                                                AT = PI / ES X OF
Onde,
AT = Acidente de trabalho,
PI = Patrão Inescrupuloso
ES = Empregado submisso,
OF = Outros fatores (desinformação, atraso tecnológico, falta de
fiscalização, ausência de dispositivos legais, entre outros.)

Pensadores como Karl Max, Michael Foucault, Pierre Bourdieu, Max Weber e
tantos outros, também nos legaram uma vasta obra que nos ajuda a entender o
quão complexas são essas relações sociais e como o mundo do trabalho cria
dispositivos para absorver as tensões geradas por essas relações e seus
conflitos.

Se deslocarmos um pouco o nosso olhar da produção das ciências humanas e nos
dirigirmos às estantes das ciências biológicas, poderemos desfrutar da boa
companhia de Darwin, Stephen Jay Gould, Humberto Maturana e Francisco
Varela, entre tantos outros, que muito nos ensinam acerca dos aspectos
biológicos e culturais que influenciam a formação de conceitos acerca da
vida e, assim, tentarmos entender melhor como a representação desses
conceitos contribui na formação dos sistemas de valores numa cultura.

Nesse sentido, uma das grandes chaves para entender como um sistema de
valores nos possibilita o estabelecimento de uma ética da vida, consiste em
perguntar como nós, em nossas complexas redes sociais, biológicas e
culturais, atribuímos valor à vida? Em particular, à vida humana?
Espiritualmente? Materialmente? Afetivamente? Biologicamente? Tudo isso e
mais alguma coisa?

Ao nos depararmos com essas questões e nos sentirmos impotentes frente à
constatação de que nossos sistemas de valores praticam uma perversa ética
discriminatória acerca de qual vida vale mais, qual vida deve ser preservada
e qual deve ser sacrificada, é compreensível, porém arriscado, que queríamos
rapidamente encontrar um bode expiatório para esse estado de coisas.

Já vai longe o tempo em que podíamos apenas culpar o capital, a igreja e
alienação operária por todas as nossas mazelas sociais.
Se aceitamos que vivemos em um Estado que tem o capitalismo como modo de
produção e, conseqüentemente, nos tornamos conscientes de que, neste modo de
produção, a questão da exploração da força de trabalho está embutida nos
contratos sociais, então o dilema ético que advém desta condição é:
Quão selvagem pode se tornar essa exploração e quão conivente uma sociedade
pode se tornar diante dela?

Uma rápida olhada na história das relações sociais no Brasil é suficiente
para nos convencer de que nossa tolerância diante da exploração da força de
trabalho parece bastante arraigada nos nossos hábitos cotidianos e,
portanto, na nossa cultura.

Tem uma pergunta básica que sempre me faço quando tento entender as
contradições sociais brasileiras:
Em nome de uma sociedade mais justa, a classe média brasileira conseguiria
viver sem explorar a força de trabalho de uma empregada doméstica?

Em geral, uma empregada doméstica brasileira trabalha numa casa oito, dez
horas por dia, seis dias por semana, por um salário mínimo de 415,00 reais,
pouco mais de 215,00 dólares por mês. Isso nos dá aproximadamente 9,00
dólares por dia, o que resulta uma absurda quantia de pouco mais de 1,00
dólar por hora. Se somarmos a essa condição as questões de gênero
relacionadas ao fato de que, enquanto mulher, esta criatura ainda irá
enfrentar uma outra jornada de trabalho exercendo papéis de mãe e esposa no
seu ambiente familiar, aí o quadro de exploração fica ainda mais grave.
Ainda que possamos tentar amenizar essa exploração alegando que nesse
contrato social estão garantidos os direitos do trabalhador a uma carteira
assinada, bem como obrigações patronais como auxílio transporte, previdência
social, e outros encargos, seríamos no mínimo negligentes se não
considerássemos que a relação custo/benefício entre a qualidade dos serviços
que essa empregada tem acesso por via desses benefícios sociais e sua
qualidade de vida resulta numa condição social extremamente frágil se
comparada a dos seus empregadores, ficando num patamar tão básico que
somente a nossa cegueira ética nos impede de visualizar concretamente o
terrível muro da desigualdade que existe entre viver e sobreviver.

Que modelo de capitalismo é esse que considera aceitável que milhões de
pessoas vendam sua força de trabalho por um dólar a hora?.

Bertolt Brecht foi um mestre em nos mostrar, em várias peças de seu Teatro
Épico, como "Um Homem é um Homem", "Santa Joana dos Matadouros" e tantas
outras, que as contradições geradas na relação entre a exploração do
trabalho humano e a necessidade, também humana, de poder, conforto e
comodidade, quando confrontadas com questões éticas e morais, propiciam uma
reflexão muito rica acerca de quão realmente são humanitários os valores de
uma sociedade.

É claro que sempre podemos apelar para um sistema religioso, capaz de
produzir cosmologias eficientes na diluição das tensões geradas por essas
contradições. Mas vamos deixar a religião fora disso (por enquanto!)

 Assim sendo, voltando para a questão do sistema de valores como origem das
nossas distorções e negligências no âmbito da segurança no trabalho, o
empresário brasileiro, filho legítimo de nossa classe média (isso que dizer
que mesmo que ele tenha vindo da pobreza, era nessa classe que ele se
espelhava), que nasce, cresce, reproduz e morre, achando a coisa mais
natural do mundo pagar pouco mais de 1,00 dólar por hora para uma pessoa
lavar, passar, cozinhar, arrumar a casa e até, muitas vezes, tomar conta das
crianças, vai precisar bem mais que informação para superar sua visão
utilitarista da mão de obra humana.

Como esperar que esse sujeito mude seu comportamento em relação à mão de
obra empregada na produção de espetáculos?

Se ele nasce, cresce, reproduz e morre, cercado de contradições sociais
muito maiores que a exploração da empregada doméstica, como é o caso
abandono dos menores de rua, do descaso com a segurança, saúde e a educação
públicas e a banalização da violência, cuja espetacularização da barbárie é
transmitida 24h, muitas vezes em tempo real, pelos veículos de imprensa.

Diante desse quadro, me parece que é preciso muito mais que apenas
informação.
É preciso tecer e mobilizar uma rede de conscientização social eficiente e
contundente em torno da questão da segurança no trabalho.

Essa rede só pode ser tecida pela própria sociedade num processo de revisão
de seus sistemas de valores.
Empresários, trabalhadores, entidades de classe, agências governamentais e
consumidores em geral que produzem, consomem e necessitam das artes
espetaculares para a sua sobrevivência cultural.

É nessa hora que se faz necessário que a ABRIC desempenhe o papel histórico.
Não como sindicato, coisa que ela não é, embora haja quem aspire
legitimamente para ela essa condição, mas sim como uma voz firme, coesa e
consistente contra a manutenção desse atual estado de coisas.

Esse é um desafio do tamanho do sonho da ABRIC.

O desafio de sinalizar de modo claro e firme para a sociedade em geral que
os profissionais que trabalham na indústria de espetáculos estão
comprometidos em mobilizar todos os meios legais e culturais possíveis para
banir do nosso cotidiano ou, senão, punir com rigor, as absurdas situações
de descaso com a vida humana que presenciamos cotidianamente.

A ABRIC precisa agir e dizer, em alto e bom som, que não tolerará mais ver:

- Trabalhadores e pessoas em geral torrados em redes de alta tensão, somente
porque alguém não cumpriu as exigências de segurança para verificar a altura
do trio-elétrico em relação à altura da rede no trajeto do carro.
- Pessoas despencando de palanques sustentados por pilares calçados com
restos de material de construção.
- Estruturas de som e luz despencando na cabeça das pessoas que queriam
apenas se divertir ou que estão defendendo o seu pão de cada dia.
- Trabalhadores de Teatros e outras casas de espetáculos tendo que arriscar
a vida para cumprir uma agenda de trabalho irresponsável, criada por pessoas
que não computaram a questão do tempo de montagem e condições técnicas de
segurança na hora de fazer o planejamento de um evento espetacular.
- Técnicos exibindo uns para os outros, absurdas histórias de risco como se
fossem troféus.
- Projetos Político Pedagógicos de cursos de Engenharia, Arquitetura e Artes
Cênicas que negligenciam conhecimentos básicos na formação de seus alunos
quanto ao projeto, construção e utilização de uma casa de espetáculos em
todos os detalhes que contribuem para segurança dos que nela trabalham.
 - Leis e autoridades condescendentes com quem põe a vida humana em risco,
em troca de duas horas de show e um cachê.
- Gente despreparada exercendo profissão de risco.
- Gente preparada ganhando pouco para exercer profissão de risco.

A ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ILUMINAÇÃO CÊNICA - ABRIC, fundada em 06/09/2005,
em São Caetano do Sul, SP e cuja mesa diretora dos trabalhos de fundação,
tive a honra de presidir, precisa afirmar com braço forte neste instante:

GENTE É PRÁ BRILHAR, NÃO PRÁ MORRER DE CHOQUE.

Um abraço fraterno

Sávio Araújo
Vancouver, CA




-- 
Valmir Perez
Lighting Designer
Laboratório de Iluminação
Unicamp
www.iar.unicamp.br/lab/luz
http://valmirperez.blogspot.com/
http://imprensanaprensa.blogspot.com/
Skype: lablux
Fones:
(19) 35212444
(19) 92229355
-------------- Próxima Parte ----------
Um anexo em HTML foi limpo...
URL: <http://www.listas.unicamp.br/pipermail/dicasdeiluminacao-l/attachments/20081003/a8f83bcf/attachment.html>


Mais detalhes sobre a lista de discussão Dicasdeiluminacao-l