[ANPPOM-L] armas, ações e armações

Jorge Antunes antunes em unb.br
Sáb Out 15 00:49:06 BRT 2005


Armas, ações e armações

Jorge Antunes
Professor titular da Universidade de Brasília, compositor, maestro

Era bem cedo. Passava um pouco das 9 da manhã. Não era uma sexta-feira 13: era a sexta-feira 14 de outubro de 2005. Um estudante de jornalismo da PUC deu uma facada em seu colega e amigo. Não era uma dessas facadas que estudantes costumam dar em colegas, através de trote, ou venda de rifa, ou venda de passe ou livro velho, ou pedido de empréstimo. Era uma facada de verdade, com faca. Dessas facadas que provocam horrível sangramento.
Rafael Azevedo Fortes Alves, 21 anos, foi esfaqueado na redação da Rádio USP, no edifício da Antiga Reitoria. Foi levado ao Hospital Universitário, onde morreu. O autor da facada, Fábio Le Senechal Nanni, 20 anos, foi detido pela Guarda Universitária antes de sair do prédio, deixando a faca no local do crime, e levado ao 93º Distrito Policial, no Jaguaré.
Os dois estudantes conversavam na redação de Jornalismo da Rádio USP, quando Fábio sacou uma faca e golpeou o peito de Rafael. Este, sangrando muito, foi socorrido pelos colegas da redação e colocado numa maca para ser levado ao Hospital Universitário. Rafael e Fábio cursavam o segundo ano de jornalismo na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP e moravam juntos numa república de estudantes no bairro do Butantã.
 Em recente discussão na Internet sobre o referendo do próximo dia 23, eu rebati as elucubrações intelectuais de colegas que filosofavam acerca da violência urbana. Os discursos se inflamavam. Doutores e doutorandos trocavam idéias e farpas acerca da possibilidade de proibição do comércio de armas de fogo e munições. Todos discutiam sobre as razões e as conseqüências da violência urbana. O reiterado uso da expressão "violência urbana" me incomodava tanto, que acabei colocando uma pausa na diatriba: lembrei que a violência urbana não é o problema e que a questão a ser tratada deveria ser a violência humana.
 As elites políticas resolveram engambelar o povo brasileiro com essa farsa plebiscitária. Com a intenção de anestesiar as atenções das massas, mais de 700 milhões de reais são destinados a essa brincadeirinha de cidadania em que os pobres oprimidos devemos escolher entre sim e não. O teatro está montado para apagar, dos noticiários e das discussões, as pressões populares que se voltavam à punição de corruptos e corruptores.
 Tudo indica que os desesperados gananciosos do lucro, no capitalismo em crise, vislumbram futuros sombrios que, para não lhe ameaçarem, só lhe serão propícios com uma população desarmada.
 Bom seria se referendos e plebiscitos fossem promovidos para sabermos da vontade popular acerca de dezenas de outros assuntos: a fabricação de armas, o apoio à cultura e sua democratização, a dívida externa, a formação de professores, o financiamento da Universidade, a adesão do Brasil à TeleSur, a participação do Brasil na ONU, a ocupação brasileira no Haiti, as reformas aprovadas com votos comprados, a Alca, o sigilo bancário, a privatização da Amazônia, etc.
 Bom seria se os 700 milhões de reais gastos com a farsa do próximo dia 23 fossem destinados à Universidade pública e que outros tantos milhões fossem aplicados na educação básica. A violência urbana, a violência no campo, a violência doméstica, a violência no trânsito e todas as outras violências são oriundas de um aspecto: o monstro que habita cada ser humano. Esse velho e conhecido monstro deveria ficar eternamente adormecido. A canção de ninar, para ele, tem um único nome: educação de qualidade.
 Enquanto essa educação ideal não for universal, monstros despertarão munindo-se de pau, pedra, foice, faca, enxada ou qualquer outro sólido de comercialização não proibida.
 O estudante Fábio, da USP, com apenas 20 anos de idade, teve seu monstro despertado. Este não saiu correndo rumo a uma loja de armas de fogo. Perto havia uma faca. Se esta não estivesse à mão, o monstro trataria de apelar para um microfone. O estúdio da Rádio USP e todos os outros ambientes são ricos em apetrechos capazes de se transformar em tacapes.
O Estado quer o monopólio da violência e por isso promove o referendo. Os ricos querem ser os únicos armados. Os homens de bens querem dominar os homens de bem.
 Nas inserções televisivas da Justiça Eleitoral a mocinha do anúncio ensina direitinho como votar, apertando a tecla verde ou a tecla vermelha. Eu, de minha parte, com meu tradicional olhar arguto de soslaio, já reparei que no cantinho da cena, à esquerda da urna eletrônica, existe um botão branco: deve servir para o voto em branco. Os donos do Estado, homens de bens, não ensinam isso.
-------------- Próxima Parte ----------
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