[ANPPOM-L] A versao Sigismund Neukomm do Requiem de Mozart
Rubens Ricciardi
rrrr em usp.br
Dom Out 1 15:08:33 BRT 2006
caro Prof. Didier,
achei aqui em meus arquivos em Word estas anotações que eu fiz há mais de 10
anos por ocasião de pesquisas de doutorado realizadas em arquivos
brasileiros coloniais - talvez haja alguma dica de fonte que possa ser útil,
mas foram tão-somente hipóteses de trabalho que levantei àquela altura, e
quem sabe alguém agora mais bem informado não poderia acrescentar melhores
dados...
abraços do Prof. Rubens Ricciardi - USP de Ribeirão Preto
Mozart em São João d'El Rey já no início do século XIX? - e Neukomm não
soube disso?
E em relação aos outros compositores europeus citados no Inventário
de Fernandes Braziel, já que o assunto é ópera, trataremos em especial de
Wolfgang Amadeus Mozart. Há notícia da apresentação de seu Don Giovanni no
Rio de Janeiro, no dia 20 de setembro de 1821 (segundo Ayres de Andrade,
1967 Vol.I p.116-117). Talvez cópias manuscritas [de partes] daquela ópera
também tivessem sido utilizadas em outras vilas brasileiras.
Das listas de João Leocadio do Nascimento constava apenas a
informação sobre um "Auto de D. João - velho", sem qualquer indicação de
preço ou autoria. Dados os problemas técnicos envolvidos na questão, é pouco
provável que se tratasse da partitura integral para uma encenação completa
da ópera de Mozart. Mas talvez houvesse pelo menos alguns números, anexados
em costumeiros pastichos. O fato de o material ser "velho" pode bem
significar que a dita ópera - ou trechos dela - tenha sido encenada em São
João d'El Rey antes mesmo daquela anunciada apresentação no Rio de Janeiro.
No entanto, não se pode descartar a hipótese de que o "velho"
material remonte talvez a João V e que a ópera, ou peça teatral com música,
tratasse de alguma trivial adulação, típica daquela sociedade colonial, como
no caso do "Juramento dos Numes" (uma homenagem a João VI). Assim, teria
sido então algum título - talvez até im Auto de D. João - desconhecido,
encenado desde a época daquele outro músico, o dito Inácio Coelho, sobre
quem não localizei qualquer informação.
Já em relação ao Requiem de Mozart, se por acaso remonta a este rol
de obras a antiga parte de tenor, talvez até mesmo do século XVIII,
arquivada ainda hoje na Lira Sanjoanense, pode tratar-se de uma
possibilidade de que talvez tenha sido o próprio Lourenço José Fernandes
Braziel, em São João d'El Rey, o responsável pela estréia brasileira da
famosa obra e não o padre José Maurício Nunes Garcia, no Rio de Janeiro, em
dezembro de 1819, como faz crer o artigo de Sigismund Neukomm (Salzburgo,
1778 - Paris, 1858), publicado na Allgemeine Musikalische Zeitung (20 de
julho de 1820 - nº29) de Viena (ver Mattos, 1997 p.142-44 - traduzido para o
português; p.254 - o original alemão).
E este acontecimento é por demais interessante para que não seja
mencionado aqui. Antes da execução carioca do Requiem, com "numerosa
orquestra", José Maurício Nunes Garcia regeu também alguns Noturnos e Ofício
de Defuntos de David Perez - já citado, cujas partes encontram-se copiadas
no verso de partes da Sinfonia Fúnebre.
Neukomm, em seu histórico artigo, elogia a personalidade do padre
José Maurício e seu brilhante desempenho como regente do Requiem de Mozart,
mas aponta defeitos não só na execução - os andamentos estariam rápidos
demais - como na concepção estilística da obra de Perez - comparando-a, com
toda ironia, aos efeitos mais triviais da chamada dos trompetes para o
banho, em Karlsbad. E não há desprezo maior, para a mentalidade de um
europeu, que comparar qualquer evento artístico no estrangeiro com aquilo
que eles têm de mais banal ou trivial perto de casa. Cleofe Person de
Mattos, por sua vez, só comenta os elogios ao músico carioca, mas não
desenvolve análises sobre a crítica em relação a Perez, apesar de
reproduzi-la na íntegra. No entanto, esta crítica não deixa de ser
instigante:
Antes do Requiem foram cantados os "Noturnos" do "Officio Defunctorum",
postos em música por David Perez. Esta obra consiste em várias Árias,
Duetos, Corais etc. A maior parte destes números é escrita de acordo com a
função litúrgica. Mas o andamento tomado em diversos corais foi rápido
demais, tal qual eu já havia percebido aqui [no Rio de Janeiro] na execução
de muitas obras deste mestre. Parece que a tradição destas obras se perdeu.
Em especial me pareceu desagradável um Coral em Ré maior, cujas triviais
passagens dos trompetes e trompas me fizeram lembrar, pelo andamento rápido,
daquelas pecinhas de trompete tocadas no alto da torre, com as quais são
recepcionados os banhistas visitantes em Karlsbad (Sigismund Neukomm,
Allgemeine Musikalische Zeitung - "Jornal Musical Geral" - 20/7/1820 - In:
Mattos, 1997 p.254).
Após tal crítica à execução da obra de David Perez, torna-se talvez
contraditório o elogio de Neukomm à execução do Réquiem de Mozart. Não há
muita lógica no fato de que numa mesma apresentação musical uma obra de
Perez tenha sido mal executada e a de Mozart, ao contrário, bem executada,
pois se tratava de um mesmo regente e uma mesma orquestra e coro. Neukomm
talvez pretendesse criticar indiretamente os valores artísticos de Perez?
Neukomm utiliza-se já daquele conceito da "tradição perdida", isto em 1820,
e, é claro, bem antes de Gustav Mahler ("Tradition ist Schlamperei").
No período daqueles últimos anos de João VI no Brasil, o compositor
napolitano certamente ainda era mais conhecido e executado no Brasil que
Haydn ou Mozart, o que de certa forma poderia mexer com os brios do músico e
cronista austríaco. E neste aspecto, não podemos deixar de dar razão a
Neukomm, pois não há o que se discutir em relação à qualidade muito superior
dos clássicos vienenses.
E cabe aqui ainda outro detalhe de interesse: Neukomm não cita a
Sinfonia Fúnebre. Não teria sido apresentada aquela abertura pré-romântica
naquele dia? - seus méritos artísticos não foram notados pelo aluno tão
querido de Haydn? - ou há probabilidade maior da execução naquela outra
oportunidade, por ocasião das exéquias de Maria I, evento já citado
anteriormente.
Quanto à exatidão das informações sobre a suposta estréia
brasileira do Requiem, devemos entender que Neukomm era um estrangeiro,
sobre quem há registros de ter ido possivelmente até à longínqua Capitania
de Rio Grande de São Pedro do Sul (ver Ayres de Andrade, 1967 Vol.II p.206),
mas não à vizinha Capitania de Minas Gerais.
Não há como provar se Neukomm trouxe ou não os manuscritos do
Requiem de Mozart para o Brasil, mas é possível que, se assim fosse, ele
talvez teria relatado seus méritos em tal episódio. Por outro lado, é
possível também que ele nem sequer tenha participado da organização daquele
serviço musical da Irmandade de Santa Cecília no Rio de Janeiro.
Sabe-se que o Requiem de Mozart é uma obra incompleta. Muito embora
o complemento de Franz Xaver Süssmayr (Schwanenstadt-Áustria, 1766 - Viena,
1803) seja mais conhecido, Neukomm também compôs uma versão própria, com a
realização dos números que faltavam.
Neukomm afirma que aquela teria sido a estréia não só do Requiem no
Brasil, como "a primeira tentativa em recepcionar dignamente o genial
estrangeiro Mozart no novo mundo". Mas pelo trecho brasileiro de sua
autobiografia (transcrita por Ayres de Andrade, 1967 Vol.II p.204-205), não
há como deixar de reconhecer que o visitante não estava tão interessado
assim em questões da cultura musical brasileira - mesmo apesar de ter
escrito uma obra como "O Amor Brasileiro - caprice pour le Pianoforte sur un
Londû brésilien [composta em 3/5/1819, arquivada hoje na Biblioteca do
Conservatório de Paris], em que, num caso bastante raro àquela altura, um
compositor erudito utiliza um tema popular brasileiro (Araújo, 1963 p.9). Ou
teria sido antes um reflexo do gosto dos europeus pelo exótico.
Segundo relato próprio, Neukomm utilizou o tempo de sua estada no
Rio de Janeiro - de 1816 a 1821 - não só para acrescentar 45 peças ao seu
catálogo de obras, como para também muito se ocupar, "nesse país feérico,
onde tudo é maravilhosamente belo e grandioso, de entomologia e
horticultura" (Ayres de Andrade, 1967 Vol.II p.205).
Por certo, Neukomm ignorou fatos sobre as práticas musicais no
Brasil. Do mesmo modo, não deve ter tomado conhecimento das primeiras
recepções de Mozart no Brasil, as quais remontam, com certeza, pelo menos a
1809. Houve, por exemplo, um concerto lírico no Rio de Janeiro no dia 14 de
outubro de 1809, no qual a famosa cantora, Senhora Lapinha, teria se
apresentado ao lado de outra cantora, Charlotte D'aunay, incluindo-se ainda,
no repertório daquele sábado, obras instrumentais para violino,
interpretados pelos italianos "Lansaldi" (muito provavelmente trata-se de
Francisco Inácio Ansaldi) e "Lami" (sobre o qual nada pude localizar). O
concerto finalizava com algumas aberturas de Mozart com grande orquestra,
algo extraordinário para a época, pois não há, antes disso, notícias de
obras do compositor de Salzburgo executadas no Brasil, fora, é claro, o
mistério em torno da antiga parte de tenor do Requiem, arquivada em São João
d'El Rey (Lira Sanjoanense). A interessante notícia, no entanto,
encontrava-se na seção "Avisos" da Gazeta do Rio de Janeiro, uma espécie de
anúncios classificados da época - portanto, uma forma de propaganda para
divulgar o evento:
Madama D'aunay, cómica cantora novamente chegada de Londres, em cujos
Theatros, assim como nos de Paris sempre representou, informa
respeitosamente aos cidadãos desta Côrte, que ella pertende dar hum Concerto
de Muzica vocal, e instrumental na Casa Nr. 28 na Praia de D. Manoel, no dia
14 corrente. Nelle cantarão ella, e a Senhora Joaquina Lapinha a mais bem
escolhida Muzica dos melhores authores, e tocarão os senhores Lansaldi, e
Lami Concertos de Rebeca, e executar-se-hão em grande Orquestra as melhores
Ouvertures de Mozart. - Vendem-se bilhetes em sua casa Nr. 8 rua de S. José
a preço 4$000 reis (GdoRJ, 11/10/1809).
Também não se pode duvidar que estas aberturas foram levadas para Minas logo
em seguida. Na Missa a oito vozes e grande orquestra [em Ré Maior], de João
de Deus de Castro Lobo, por exemplo, há todo um trecho de caminhos
harmônicos no solo de tenor - miserere nobis, do Gloria - extraído quase que
literalmente de uma passagem da abertura da ópera Zauberflöte. Em sua
Abertura [em Ré maior], percebe-se também influências de Mozart e Haydn.
Portanto, do mesmo modo, pouco provável teria sido qualquer idéia
de Neukomm sobre o paradeiro, em Minas, de outras partes manuscritas, seja
do Requiem ou mesmo, quem sabe, do Don Giovanni...
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----- Original Message -----
From: "Didier Guigue" <dguigue em cchla.ufpb.br>
To: "Stela Brandao" <sbrandao em nyc.rr.com>
Cc: <cla-ppgm em unirio.br>; "Jorge Antunes" <antunes em jorgeantunes.com.br>;
<anppom-l em iar.unicamp.br>; "'a.c.meyer'" <a.c.meyer em uol.com.br>; "Rosa Maria
Brandao" <rosa.br em swing.be>
Sent: Sunday, October 01, 2006 8:02 AM
Subject: [ANPPOM-L] A versao Sigismund Neukomm do Requiem de Mozart
> Pegando a deixa deste comunicado sobre o catálogo de obras de Neukomm,
> gostaria de saber se alguém teria alguma referência a me dar (artigo...)
> sobre a versão que Neukomm teria realizada do Requiem de Mozart,
> acrescentando inclusive um final, inteiramente da sua autoria.
>
> Esta versao se encontra gravada em CD num selo europeu, se nao me engano
> por ume formação barroca francesa. Vi este CD na Livraria Cultura, e o
> verso da Capa dizia que o manuscrito do Neukomm (eles davam o ano) foi
> encontrado recentemente no Rio de Janeiro.
>
> Agradeço qqer tipo de informação a respeito que pudesse me confirmar (ou
> ao contrario infirmar) essas informações (que a principio me soam
> suspeitas).
>
> Didier
>
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