[ANPPOM-L] Vianna sobre Gil e creative commons na FdSP
carlos palombini
palombini em terra.com.br
Sáb Out 6 12:42:29 BRT 2007
Com site licenciado em Creative Commons, ministro enxerga práticas
comuns e reafirma seu direito de decidir o que pode ser feito com suas
próprias obras
HERMANO VIANA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Nesta Ilustrada, Marcos Augusto Gonçalves escreveu sobre a turnê "Banda
Larga": "É engraçado um compositor bem-sucedido como Gil tirar chinfra
de "liberou geral" na questão dos direitos autorais. Mas, na verdade,
ele está abrindo mão de quê? Pelo que entendi, de nada: apenas de não ir
à Justiça contra pessoas que fazem gravações dos shows e as colocam na
internet -o que já ocorreria mesmo."
Em "O Globo", Roberto Corrêa de Mello e Walter Franco, dirigentes da
Abramus, perguntaram: "Na verdade estamos com muita ansiedade e surpresa
sobre um tema que pouco, muito pouco, tem de novo. Por quê? A Carta
Constitucional de 1988 já consagrou tal direito [...], explicitando de
forma assertiva que só compete ao autor o direito de usar, fruir, dispor
e gozar de sua criação da maneira que quiser. [...] Creative Commons é
assim tão visceral? Criativo como, se a Carta Magna já consagra o
direito de autor?"
São perguntas pertinentes. Mas Marcos Augusto Gonçalves se engana: Gil
não tira chinfra de "liberou geral". Como dizem os dirigentes da
Abramus, a Constituição determina que "só compete ao autor o direito de
usar, fruir, dispor e gozar de sua criação da maneira que quiser." Em
"Banda Larga", Gil apenas reafirma seu direito de decidir o que pode ser
feito com suas obras. É o contrário do "liberou geral". Liberar geral
seria fazer vista grossa para "o que já ocorreria mesmo". Gil traz "o
que ocorre" para a legalidade. Isso não é pouca coisa.
Os termos de uso do site Banda Larga, licenciado em Creative Commons,
não deixam dúvidas: "Os presentes termos de uso, além de regularem
contratualmente a relação entre as partes, devem ser entendidos também
como licença de uso do site, que é regido pelo direito autoral." As
licenças Creative Commons brasileiras são totalmente regidas pelo
direito autoral do Brasil. No Banda Larga, a novidade é que tudo ali
pode ser copiado, distribuído, executado e servir de fonte para obras
derivadas se forem observadas as seguintes condições: a finalidade tem
que ser não-comercial; o autor da obra original tem que ser creditado; a
obra derivada tem que ser distribuída com a mesma licença Creative
Commons. Portanto: nada mais distante de um "vale tudo". Só vale o que o
autor determinou que vale.
Fortalecimento do direito
Então: o que é criativo no Creative Commons? Não é uma mudança legal. A
lei de direito autoral continua a mesma. As licenças Creative Commons
permitem o que já era permitido pela lei. A utilidade do Creative
Commons é trazer práticas comuns na cultura digital para o âmbito legal,
codificando-as em textos claros, facilitando a vida de criadores que
querem sinalizar ao mundo que incentivam certos usos de suas obras,
vedando outros, mas mantendo integralmente seus direitos. A aceitação
das licenças -hoje já licenciam mais de 150 milhões de obras- mostra que
muitos criadores, sempre voluntariamente, consideram essa codificação
vantajosa (mesmo comercialmente), prática, aliando controle de suas
obras com fácil circulação on/ off-line. Mais uma vez: é o contrário do
"liberou geral" -é o fortalecimento do direito de autor exercido pelo
próprio autor (e não por intermediários), com opções mais diversas do
que as apresentadas pelas licenças tradicionais.
As licenças tradicionais se tornaram inadequadas para lidar com a crise
do modelo pré-internet da indústria fonográfica. Mesmo "grandes"
gravadoras (cada vez menores -hoje, no Brasil, contratam só 92 artistas)
têm que se adaptar: a Universal e a EMI agora vendem música na internet
sem o DRM, pois essa proteção demonstrou ser péssima comercialmente. E
para quem não tem gravadora -a maioria da gente que faz música- é
inegável que a situação atual, embora ainda confusa, é boa oportunidade:
todo dia surgem formas mais baratas de gravação, reprodução,
distribuição, divulgação etc. É um cenário francamente positivo do ponto
de vista da inclusão democrática, da diversidade e da eficiência
competitiva no mercado.
No ano passado, fazendo o "Central da Periferia", pude conversar com
vários dos músicos mais populares no Brasil, quase todos sem gravadoras.
Eles mesmos produzem seus CDs e aí sim liberam geral, torcendo pelo
sucesso na pirataria. Ou seja, ficam desprotegidos. É preciso trazer
essa maioria para a legalidade, mas uma legalidade realista, sem fingir
que vivemos no mundo de antes dos gravadores de DVD, sem querer numerar
CDs quando CDs vão logo desaparecer, sem propor marcas d'água digitais
caras e que não funcionam. É essa procura de novos modelos de negócios,
para que um maior número de artistas possa viver legalmente de suas
criações, que Gilberto Gil estimula. Óbvio: muita coisa vai mudar (os
monges copiadores de manuscritos da Idade Média partiram para outros
trabalhos depois da invenção da imprensa...). Como disse Antônio Cícero,
numa de suas belas composições: "Quem vai colar/ os tais caquinhos/ do
velho mundo".
Os caquinhos se espalham pela internet, em bilhões de samples que são o
motor principal (muitas vezes ilegal) da criatividade contemporânea.
Ferramentas ultrapassadas (como o DRM) são suicídio comercial. Não há
soluções fáceis. É preciso experimentar -e o MinC pode criar um ambiente
fértil para experimentações. Do sucesso de algumas delas depende a saúde
da indústria criativa brasileira no futuro.
Presença internacional
Na semana passada, Gil foi um dos palestrantes principais do seminário
"Tecnologia Emergente", do Massachusetts Institute of Technology.
Repercussão imediata: até o CNet, site de tecnologia que pouco fala do
Brasil, publicou matéria elogiosa sobre a reflexão proposta por Gil.
Também neste ano ele participou do colóquio "Criatividade e Inovação na
Cultura Digital", em Sevilha, ao lado de Manuel Castells, de Antônio
Damásio e de Peter Hall.
Esses convites -entre vários outros recentes da mesma importância-
mostram que o Brasil conquistou notável presença internacional num
debate de ponta. Tenho mania de pensar grande: não somos um país
medíocre: quero o Brasil indicando bons caminhos para o mundo, e não
entrando num beco sem saída por apego ao passado. Vamos encarar o
desafio proposto pela internet? Cantando, então (será que violo algum
direito autoral?): "Chegou a hora dessa gente bronzeada [e
digitalizada!] mostrar seu valor..."
HERMANO VIANNA é antropólogo, autor de "O Mundo Funk Carioca" e "O
Mistério do Samba" (ed. Jorge Zahar). A versão integral deste texto pode
ser lida em www.overmundo.com.br/overblog/o-contrario-do-liberou-geral.
--
carlos palombini (dr p)
professor adjunto de musicologia
universidade federal de minas gerais
<cpalombini em gmail.com>
"Listen to the fool's repproach! it is a kingly title!" (William Blake, "The Porverbs of Hell")
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