[ANPPOM-L] RE: Qual a música que queremos em nossas Universidades?

Alexandre Bräutigam alexandrebrautigam em hotmail.com
Seg Out 15 18:58:57 BRST 2007



Caros professores e colegas,

Nosso prezado professor Antunes afirmou em email recente: "Para escrever meu mais recente livro, intitulado Sons Novos para a Voz, passei dois anos, de setembro de 2005 a agosto de 2007, estudando todas as manifestações musicais do mundo, produzidas com o aparelho fonador.
Estudei todos os trabalhos de Hugo Zemp, Trân Quang Hai, Jean-Michel Beaudet, Jacques Bouët, Gilles Léothaud e Bernard Lortat-Jacob, sobre as práticas vocais contrapontísticas de Taiwan, Georgia, Albania, Itália, Ilhas Solomon, República da África Central (Pigmeus e Banda Linda), Etiópia e Indonésia."

Bem, fico tentado a comprar o livro, afinal foram estudadas TODAS as manifestações musicais do mundo produzidas com o aparelho fonador - em dois anos! Imagino que se foram estudadas todas elas, nosso caro amigo se esqueceu de citar, além dos teóricos provavelmente europeus em questão, também os teóricos etíopes, indonésios, africanos, italianos, albaneses que possivelmente se debruçaram sobre sua própria cultura para estudá-la. E talvez nem todos os resultados tenham sido traduzidos (do albanês ou de outras línguas menos conhecidas) ou sequer impressos, tendo permanecido no domínio oral da língua/dialeto original. Realmente deve ter dado trabalho. 

Aproveito para realçar o quão Novos devem ser esses sons, com certeza - para a cultura européia ou brasileira. 

Me lembro de certa aula no mestrado de música na UFRJ quando um colega apresentava com entusiasmo a partitura escrita por um "exclarecido europeu" a séculos atrás de um canto indígena do Brasil. Será que o índio, ao compor suas melodias, também já havia substituido o 'ut' pelo 'do' e pulava com rigor melódico ímpar de um mi para um fá?
 
E viva os universalismos....

abraço a todos,

Alexandre Bräutigam.

 Date: Mon, 15 Oct 2007 12:23:50 -0200
From: antunes em unb.br
To: carlos.sandroni em gmail.com
CC: anppom-l em iar.unicamp.br; hugoleo75 em gmail.com
Subject: Re: [ANPPOM-L]	Qual a música que  queremos em nossas	Universidades?



Prezado Carlos Sandroni:
Bingo! Você acertou em cheio.

Acordei hoje pensando em lhe escrever justamente sobre este problema:
o significado da palavra "compreender".

Você se adiantou. Parabéns.

Creio que estamos totalmente de acordo.

Merleau-Ponty disse, sabiamente, que "a fenomenologia se deixa praticar
(...), e ela existe como movimento, antes de ser alcançada com uma
inteira consciência filosófica".

Sempre que falei "compreender" eu estive me referindo ao domínio
do estudo descritivo do fenômeno musical.

Escutar, ouvir, entender, analisar, compreender, são verbos
que precisariam de claras definições, para que afinássemos
nosso debate.

No segundo movimento de minha Sinfonia em Cinco Movimentos eu usei
um Rum, um Rumpi e um Lé, com toques específicos de Nanã.
Antes, freqüentei sessões de candoblé, para anotar ritmos,
observar e, enfim, "compreender" a polirritmia e as técnicas de
percussão (mão, dedos, palma, etc). Os Ogãs, evidentemente,
sempre serão melhores executores dos atabques do que os percussionistas
da orquestra.

Mas consegui instruir a estes de modo a nos aproximarmos bastante do
original.

Quando eu "compreendo" a música de uma determinada cultura,
não estou necessariamente me colocando na pele e na mente do praticante
daquela cultura. Eu adoro e compreendo os toques de candomblé, mas,
garanto, nunca Orixás chegarão a mim em minha escuta e prática.
Nunca entrarei em transe ao escrever as partes dos atabaques ou ao ouví-las.

Uma coisa é o significante, outra coisa é o significado.
Significantes idênticos terão significados diferentes em diferentes
contextos e culturas.

As três notinhas que formam a célula geradora da quinta
de Beethoven, que eu "compreendo" muito bem, pode, dependendo do grupo
de audição, ter diferentes significados: motivo gerador,
destino que bate à porta, anúncio de lâmina de barbear,
momento de expectativa, tensão de espera, etc, etc.

Nunca entrarei em transe ao ouvir um Toque de Nanã. Eu até
me atreveria a arriscar as seguintes afirmações:

- Eu "comprendo" o toque de Nanã e o executante de atabaque
não o "compreende".

- Eu apenas "compreendo" o toque de Nanã e o executante de atabaque
o "entende".

Abraço,

Jorge Antunes

 

 

 
Carlos Sandroni wrote:
Prezado Antunes,
Obrigado pelo tom cordial e pela disposição a debater
revelados em sua mensagem. Tentarei seguir o seu exemplo, embora infelizmente
não possa me alongar muito.

Talvez uma parte da discordância tenha a ver com o uso da palavra
"compreender". O que seria "compreender" as polifonias vocais do Pacífico?
Mensagens prévias de Sílvio e Eduardo Luedy já apontaram
na direção que considero apropriada.

Você, com sua formação contrapontística
e musical, certamente "compreende" de alguma maneira aquelas polifonias.
A maneira como você as compreende pode tê-lo ajudado a escrever
o seu livro mencionado, e pode ajudá-lo em outras coisas eventualmente.

Mas você próprio reconhece que a compreensão que
tem, se deve em parte também à leitura de livros de etnomusicólogos
sobre aquelas culturas musicais. Ora, estes livros não são
livros de contraponto, são livros sobre culturas, sobre sistemas
simbólicos. Sistemas dentro dos quais, exclusivamente, a música,
inclusive no que se refere às estruturas sonoras, pode ser "compreendida",
pelo menos da maneira que os etnomusicólogos entendem o verbo "compreender".
A referência mais imediata é Blacking, já mencionado
aqui duas ou três vezes. Mas a gente pode pensar no Clifford Geertz
também - "A arte como sistema simbólico", em \O Saber Local
- novos ensaios de Antropologia Interpretativa\.

Sim, Zemp usa a palavra contraponto, mas eu seria capaz de jurar que
ele não domina contraponto florido a oito vozes, que eu saiba ele
era jazzista antes de ser etnomusicólogo, como tampouco o Lortat-Jacob,
ou o Beaudet, que foi o meu orientador.

Você é um compositor que estuda a diversidade musical
do mundo com objetivos diferentes daqueles que estão dedicados a
compreender o que significam estas diversas músicas para as pessoas
que as fazem. Estes, incluindo os etnomusicólogos que você
cita - integrantes da tal "torcida do Flamengo" a que me referi - não
subscreveriam aquelas duas frases suas que citei no meu primeiro email.
O tipo de "compreensão" que eles proporcionam serve a objetivos
diferentes, mas é também na minha opinião mais rica,
mais nuançada, mais - vá lá - compreensiva (também 
no sentido do inglês "comprehensive").

Não excluo que você possa ter feito um excelente uso das
polifonias vocais do mundo no seu livro, ao contrário. Minha discordância
se relaciona à idéia de que proficiência em música
de tradição ocidental capacite a "compreender  
outras tradições musicais" (num sentido diferente de "usá-las
para fins indiferentes a seus significados contextuais"), no mesmo gesto
considerando-as "menos complexas".

Espero ter ajudado a deixar mais claro meu ponto de vista. Em todo
caso, acho que não vou poder dar muito mais que estes dez centavos
nos próximos dias.

Abraços,

Carlos

 

 On 10/14/07, Jorge Antunes <antunes em unb.br>
wrote:
 Prezado
Carlos Sandroni:
Você afirma que o domínio do contraponto europeu não
capacita a compreender as polifonias vocais do Pacífico.

Essa afirmação é interessante, porque bombástica
para mim.

Não me considero dono da verdade e, assim, gostaria de me fazer
todo ouvidos, para que você me convença acerca dessa sua convicção.

Talvez isso seja possível, se você me der exemplos concretos.
Você poderia citar nomes de pessoas que dominam o contraponto "europeu"
e que, apesar de possuirem esse domínio, não estão
capacitadas para compreender as polifonias vocais do Pacífico.
Eu, de minha parte, tenho exemplos que demostram justamente o contrário.

Para escrever meu mais recente livro, intitulado Sons Novos para a
Voz, passei dois anos, de setembro de 2005 a agosto de 2007, estudando
todas as manifestações musicais do mundo, produzidas com
o aparelho fonador.

Estudei todos os trabalhos de Hugo Zemp, Trân Quang Hai, Jean-Michel
Beaudet, Jacques Bouët, Gilles Léothaud e Bernard Lortat-Jacob,
sobre as práticas vocais contrapontísticas de Taiwan, Georgia,
Albania, Itália, Ilhas Solomon, República da África
Central (Pigmeus e Banda Linda), Etiópia e Indonésia.

O estudo abordou as construções mais complexas, desde
os cantos a duas vozes de Malita (Ilhas Solomon), passando pela polifonia
a três vozes de Tai-Tung, no Taiwan, até as polifonias a doze
vozes dos portuários de Gênova, na Itália (o canto
trallallero) e as canções himarioçe, no estilo Himara,
cantadas em Vlorë no sul da Albânia, que também são
a 12 vozes.

Para compreender essas polifonias, entendo eu que o que me capacitou
foi o domínio que tenho do contraponto que você chama de europeu.
O que eu chamo de domínio do contraponto, não é aquela
capacidade desenvolvida ao se praticar contraponto modal a apenas duas
vozes. Estou me referindo ao domínio do contraponto florido a oito
vozes, nas linguagens tonal e atonal. São a essas práticas
que chegam meus alunos em final de curso: tonalismo clássico bachiano
a 8 vozes e atonalismo integral de Julien Falk a 8 vozes.

A maioria dos etnomusicólogos que mencionei acima, também
dominam o contraponto florido a dois coros, porque foram alunos do Conservatório
de Paris.

Talvez eu esteja enganado, e é possível que minha compreensão
das polifonias vocais dos diversos povos do mundo não se deva ao
domínio que tenho da técnica contrapontística. Talvez
o que me capacitou para tanto foi algum outro fator de que não tenho
consciência. Deixo então a você a incumbência
de me passar exemplos que demonstrem a sua convicção de que
o contraponto "europeu" não capacita a compreender as polifonias
vocais do Pacífico.

Abraço,

Jorge Antunes


--

Carlos Sandroni

Departamento de Música, UFPE

Programa de Pós-Graduação em Música, UFPB

Setembro 2007/Fevereiro 2008:

Pesquisador Associado ao Centre de Recherches en Ethnomusicologie

CNRS - LESC UMR 7186 - Paris

Endereço pessoal na França:

Chez Duflo-Moreau

199, rue de Vaugirard

75015 - Paris

Telefone profissional no Brasil

(81) 2126 8596 (telefone e fax)

(Recados com Anita)

Endereço pessoal no Brasil:

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Graças - 52011-010

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