[ANPPOM-L] o DJ e o compositor (era que música queremos?) [longa]
carlos palombini
palombini em terra.com.br
Qui Out 18 16:58:50 BRST 2007
Alexandre Bräutigam escreveu:
> Estendendo a discussão sobre o compositor, seu papel, seus meios de
> produção e registro assim como a delicada discussão dos direitos
> autorais (tudo o que envolve dinheiro, no mundo dos Homens, é
> complicado), qual a opinião dos professores a respeito dos remixes e
> dos DJs como compositores? Cito um exemplo : o DJ Tiësto (holandês) e
> sua música 'Adagio for strings'.
Minha opinião --- e já que vc só quer ouvir os professores, vou ser bem
professoral --- é que... "DJ" e "compositor" são termos que refletem as
práticas, os usos e costumes de grupos bem distintos. Pode-se apresentar
o DJ como compositor ou o compositor como DJ a fim de esclarecer a
questão eterna das origens (uma obsessão minha). Meu exemplo preferido:
o processo de criação de "Étude pathétique" de Schaeffer (de modo algum
um compositor no sentido que se tem usado este termo aqui, i.e. aquele
rapaz ou aquela moça que sabe tudo o que um teórico austríaco do século
XVII escreveu em latim num livro publicado em 1725) como descrito pelo
próprio (por favor, se forem publicar o que se segue, digam que a idéia
é minha) o apresenta fazendo exatamente o que um DJ moderno faz. Ele
dispõe de 4 pratos (como se chamava no meu tempo a superfície giratória
daquilo que se denomina hoje pickup) sobre os quais vai colocando, como
ele mesmo diz, o que lhe cai nas mãos: uma barca dos canais de França,
sacerdotes de Bali, uma harmônica ou acordeon norte-americano, um disco
com a tosse de uma radialista interrompendo uma gravação de Sacha
Guitry. Depois, como ele mesmo diz, "exercício de virtuosidade nos
quatro potenciômetros e nas oito chaves de ignição". Este estudo nasce
em poucos minutos: o tempo de gravá-lo, o próprio Schaeffer afirma. As
diferenças entre o que Schaeffer e Garnier fazem seriam tão
esclarecedoras quanto as analogias, embora não seja apropriado
discuti-las aqui. Isto quer dizer que Schaeffer foi o primeiro DJ
moderno, em 1948? Não exatamente. A figura do DJ-produtor se constrói em
várias etapas. A melhor fonte a este respeito é _Last Night a DJ Saved
My Life: The History of the Disc Jockey_, de Bill Brewester e Frank
Broughton (New York: Grove Press, 2000); o que se segue é mais uma
interpretação.
A primeira destas etapas, acredito, é o surgimento de uma cena onde seus
serviços sejam requeridos. Os swing kids da alemanha nazista raramente
fizeram mais do que discotecar e dançar swing norte-americano.O funk
carioca existiu por quase duas décadas como "mundo funk carioca" (título
do livro de Vianna, que o escreveu no momento em que a cena estava para
gerar a música), alimentado por James Brown, soul da Filadélfia e Miami
Bass antes de passar a existir como música, em 1989 (i.e. um ano após a
publicação do livro de Vianna). O hip-hop existiu como cena desde a
primeira metade dos anos 70, quando o DJ jamaicano Kool Herc se mudou
para o Bronx (na Jamaica, o que chamamos de DJ chamava-se selector e o
que chamamos de MC chamava-se DJ, mas Herc era DJ no sentido nosso, ou
quase), alimentado por rock, disco e funk (submetidos a processos de
discotecagem forjados pelos DJs pioneiros da cena disco de Manhattan e,
depois, pelo scratch, inventado no próprio Bronx) antes da explosão de
"Rapper's Delight", do Sugar Hill Gang (aquela música que utilizou a
base de "Good Times" do Chic, que também foi usada por um grupo de rock
e Gabriel o Pensador no célebre "2345meia78"). A disco foi uma cena de
festas e clubes (sobretudo gays negros e latinos) de Manhattan,
alimentada de rock, soul, experimentalismo e pop desde o final dos anos
60 antes de gerar a música disco, por uma mutação do soul, no final da
primeira metade dos anos 70. É na cena disco que surge a figura do
DJ-produtor, com Walter Gibbons, Tom Moulton, François Kevorkian etc. O
veículo principal da arte do DJ-produtor é o single de 12 polegadas (ou
305mm, na versão nacionalista), descoberto por Moulton por um acaso,
quando foi prensar uma mixagem sua e descobriu que não havia material
para o single de 7 polegadas (que no meu tempo chamava-se compacto
simples). Quando Moulton recebeu o LP com uma faixazinha na borda, deu
uma gargalhada e julgou que o comprador se consideraria ludibriado. A
faixa foi espalhada pela superfície inteira do disco e descobriu-se que
o volume de um disco destes era muito mais alto. (Estes discos podiam
ser de vinil ou acetato.)
A questão da autoria não é problema na cena dançante. Os grupos que
produzem esta música não tem cara. Um autor pode ter várias caras,
simples ou múltiplas (i. é, sozinho ou em parcerias) às quais vai chamar
projetos, e estes projetos, por sua vez, podem jamais revelar, a não ser
em texturas sonoras (o próprio invólucro do single e às vezes até seu
selo não sendo mais do que uma superfície branca), a persona corpórea
do "autor". A música eletrônica dançante é, praticamente, uma música sem
cara. Por isso é tão difícil orientar-se no labirinto das tendências.
Para o "compositor" isto não seria importante, porque tudo estaria na
música. Mas quem tenha estudado um pouco as implicações estésicas das
tecnologias sabe que não é exatamente assim: "escuta reduzida",
"situação acusmática", "pseudo-instrumento", "objeto sonoro" de
Schaeffer; "perda da aura", "declínio do valor de culto", "aumento do
valor de exibição" de Benjamin; "fetichismo na música", "regressão da
audição" de Adorno; "Im-posição" de Heidegger...
Quanto ao Tiesto, dizem que é o "maior DJ do mundo". Tanto quanto posso
julgar pelo vídeo, prefiro o baile de sábado do Clube Boqueirão de
Regatas, no aterro do Flamengo (entre o MAM e o aeroporto): a acústica é
horrível, não há luzes nem ar condicionado e pode haver pancadaria (de
cunho recreativo, nada que a segurança do baile não domine), mas o
público não fica todo virado e embasbacado, levantando os braços para
"o maior DJ do mundo".
Carlos
--
carlos palombini (dr p)
professor adjunto de musicologia
universidade federal de minas gerais
<cpalombini em gmail.com>
"Ed anco pare riconosciuto generalmente che ai giovani appartenga una specie di diritto di volere il mondo occupato nei pensieri loro." (Giacomo Leopardi, Pensieri XL, 1845)
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