[ANPPOM-Lista] fidelidade à partitura

Catarina Domenici catarina em catarinadomenici.com
Qua Out 26 21:24:29 BRST 2011


Oi Fausto,

Obrigada pela mensagem e pela sugestão. Vou fazer isso sim!
Abraço,
Catarina


On Oct 26, 2011, at 4:29 AM, Fausto Borem wrote:

> Oi Catarina,
>  
> Ótima argumentação. Bela escrita. Quem sabe transforma suas reflexões em um artigo. É um assunto revelante pra nossa área. Abç. Fausto.
> 
> 
> Em 25 de outubro de 2011 10:41, Catarina Domenici <catarina em catarinadomenici.com> escreveu:
> 
> Prezada Zélia,
> 
> Agradeço a tua mensagem, pois você tocou num ponto muito importante que merece ser discutido nesta lista: a fidelidade à partitura. Apenas com o intuito de dar início a uma discussão (que espero renda bons frutos), lanço o exemplo da peça de confronto do quarto turno do concurso em discussão no momento: o primeiro movimento da Sonatina III de MIgnone. Em primeiro lugar, temos que lidar com a imprecisão do próprio texto, o qual, por um erro de edição/impressão, contém alturas incorretas, como a falta de sustenidos na mão direita no comp. 38, por exemplo (caso semelhante ao sol bemol na mão esquerda no comp. 6 do segundo movimento da Suite n. 3 de Ronaldo Miranda). Em segundo lugar, mas não menos importante, há a questão da compreensão do texto. Explico: na peça em questão, Mignone escreve indicações de metrônomo para cada seção da peça, as quais às vezes consistem de apenas uns poucos compassos! Se o intérprete não compreende o grande arco formal da peça, construído por uma curva de aceleração em direção ao andamento "Vivo" seguida de outra curva de desaceleração em direção ao "Tempo Primo", corre o grande risco de ter uma interpretação fortemente secionada que prejudica a compreensão da forma como um todo. Baseio a minha visão da peça nas próprias indicações de MIgnone, tais como a indicação de "un poco animato" na pag.2, seguida pelo "Animando" e pelo "animando e accellerando" na pag. 3. Temos o mesmo procedimento de desaceleração gradual após o "Vivo": "poco meno" na pag. 4, seguido de "piu calmo", "poco meno" e "ancora meno" na pag. 5. Note-se que Mignone forneceu uma indicação de metrônomo para a maioria dessas pequenas seções (exceções são o "un poco animato" e o "piú calmo") e que mesmo fornecendo uma indicação de metrônomo para o "Animando" na pag. 3, acho relevante que tenha colocado o verbo no gerúndio e que tenha se precavido em acrescentar uma indicação de "animando e accellerando e crescendo" nos compassos 38-39 no mesmo trecho. Portanto, se o intérprete escolhe seguir à risca as indicações de metrônomo sem considerar como essas seções se articulam na grande forma, irá provavelmente ter vários problemas de ordem musical a serem resolvidos, tal como o tamanho do gesto de "allargando" no compasso 55, o qual, por conduzir ao climax da peça no compasso 56 e "anunciar" ele mesmo o início da curva de desaceleração, tem tanto uma função expressiva quanto de articulação formal. Seguindo essa linha de raciocínio, não podemos deixar de questionar qual a atitude que se espera do intérprete diante da partitura. Se, considerando o caso acima exposto, esperamos obediência fiel aos aspectos fixos da música (tudo que está objetivamente notado na partitura), teremos muito provavelmente uma interpretação incorreta, tanto do ponto de vista das alturas, quanto do ponto de vista formal (tal qual uma versão produzida pelo finale, com alturas "erradas" e mudanças abruptas de andamento).
> 
> Deixando o exemplo de Mignone de lado, me lembro de Bach. Com o advento das edições "Urtext" e da ideologia da fidelidade inquestionável ao texto impresso, em meados do século XX desenvolveu-se toda uma escola de interpretação de suas obras ao piano que preconizava que Bach não poderia ser tocado com dinamicas, pedal, legato (ou outra articulação que não o non-legato) etc. Mesmo hoje, com o entendimento que temos (e ainda estamos desenvolvendo) sobre a obra de Bach, tocar Bach em concurso é sempre espinhoso, posto que o discurso sobre os aspectos objetivos e de fidelidade à partitura não se aplicam confortávelmente à interpretação desse repertório, especialmente depois de termos sido devidamente "informados" sobre as práticas de performance pelos estudiosos do movimento HIP(historically informed performance). Ou seja, quanto mais nos afastamos historicamente de determinado repertório, mais nos vemos numa situação na qual não podemos ignorar a "tradição(ou tradições) oral (ou aural)" na construção de interpretações desse repertório.
> 
> E já que esse assunto foi motivado por um concurso, eu não poderia deixar de mencionar um caso que parece ter colocado em xeque o discurso da fidelidade à partitura fora do meio acadêmico (o qual já vem se debruçando sobre o assunto com bastante intensidade nas últimas décadas): a vitória do pianista japonês Nobuyuki Tsujii no concurso Van Cliburn em 2009. Pianista cego de nascença, Nobuyuki declarou em diversas entrevistas que prefere aprender o seu repertório de ouvido, ao invés de lê-lo em braile. Quem se interessar em saber um pouco mais sobre ele pode acessar o link: http://www.caller.com/news/2010/oct/07/japans-piano-superstar-will-play-with-corpus/. Nessa reportagem, o presidente do juri do concurso, o Maestro John Giordano, declarou: "He is amazing.We closed our eyes and it's so phenomenal that it's hard to withhold your tears. ... Nobu played the most difficult hourlong Beethoven piece [a sonata Hammerklavier - nota minha] flawlessly. For anyone, it's extraordinary. But for someone blind who learns by ear, it's mind-boggling." ("Ele é fantástico. Nós fechamos nossos olhos e é tão fenomenal que é difícil segurar as lágrimas. ... Nobu tocou a peça mais difícil de Beethoven impecávelmente. Para qualquer um, é extraordinário. Mas para um cego que aprende [música] de ouvido, é formidável. Tradução minha).
> É curioso que Nobuyuki tenha dividio o primeiro prêmio com outro pianista, o chinês Haochen Zhang, que é, em inúmeros aspectos, muito diferente de Nobu, apontando para a pluralidade de critérios na própria banca do concurso.
> 
> Que o debate prossiga!
> 
> Cordialmente,
> 
> Catarina Leite Domenici
> 
> On Oct 24, 2011, at 7:47 AM, Zélia Chueke wrote:
> 
> > Assino em baixo.
> >
> > Em concurso, os critérios devem ser muito claros e os aspectos objetivos
> > tem que estar em primeiro lugar. Notas certas, ritmo certo...as vezes
> > perdemos os "artistas" mais inspirados, mas como se trata de competição,o
> > subjetivo quase  nao é levado em conta, pois nao pode ser explicado. Conta
> > a fidelidade à partitura em primeiro lugar.
> >
> > O Julius Levine, "o contrabaxista" de Tanglewood, com quem tive coaching
> > na Mannes, referindo-se à concursos para orquestra, dizia que as vezes
> > perdemos os melhores candidatos na eliminatoria, mas com 150 candidatos
> > para ouvir, o critério tem que ser o mais objetivo possivel!
> >
> > Nao quer dizer que sao os concursos que determinam os grandes artistas;
> > exemplos nao faltam, mas como disse a Cristina, uma vez que se faz a
> > inscrição, é como assinar um contrato, aceitando as regras e a autoridade
> > do juri.
> >
> > Zélia Chueke
> >
> >
> >> Concordo com o Carlos. Ou seja, a inscrição para um concurso pressupõe
> >> que o candidato está disposto a aceitar o resultado. Aliás. uma vez
> >> que o candidato tocou, o resultado passa a ser inteiramente uma
> >> consideração do juri e deixa imediatamente de ser um assunto do
> >> candidato. Neste  tipo de situação, uns tocam  e outros decidem, os
> >> papéis são muito claros e não se misturam. Quem não entende esta
> >> premissa e não concorda que não entre em concurso porque estes são os
> >> termos.
> >> Cristina Capparelli Gerling
> >>
> >>
> >> Citando Carlos Palombini <cpalombini em gmail.com>:
> >>
> >>> Como disse Abbie Hoffman: "My critique of democracy begins and ends with
> >>> this point. Kids must be educated to disrespect authority or else
> >>> democracy
> >>> is a farce." Ou, numa tradução livre: "Minha crítica à democracia começa
> >>> e
> >>> termina aqui. Neguim deve ser educado para desrespeitar a autoridade, se
> >>> não, a democracia é uma farsa."
> >>>
> >>> cp
> >>>
> >>> --
> >>> carlos palombini
> >>> www.researcherid.com/rid/F-7345-2011
> >>>
> >>
> >>
> >>
> >> ________________________________________________
> >> Lista de discussões ANPPOM
> >> http://iar.unicamp.br/mailman/listinfo/anppom-l
> >> ________________________________________________
> >>
> >
> >
> > Zélia Chueke, DMA
> > Pianist - researcher
> > Professor of Music- DeArtes, UFPR
> > Permanent Researcher - Observatoire Musical Français/Sorbonne,Paris 4
> > www.zeliachueke.com
> >
> > ________________________________________________
> > Lista de discussões ANPPOM
> > http://iar.unicamp.br/mailman/listinfo/anppom-l
> > ________________________________________________
> 
> ________________________________________________
> Lista de discussões ANPPOM
> http://iar.unicamp.br/mailman/listinfo/anppom-l
> ________________________________________________
> 
> 
> 
> -- 
> Fausto Borém
> Editor de PER MUSI
> 
> UFMG - Escola de Música
> Av. Antônio Carlos, 6627 - Pampulha
> 31.270-010 Belo Horizonte - MG

-------------- Próxima Parte ----------
Um anexo em HTML foi limpo...
URL: <http://www.listas.unicamp.br/pipermail/anppom-l/attachments/20111026/527caf74/attachment.html>


Mais detalhes sobre a lista de discussão Anppom-L