[ANPPOM-Lista] giron: villa-lobos tinha dias de tirano

Carlos Palombini cpalombini em gmail.com
Sex Abr 6 19:03:01 BRT 2012


via Liliane Kans (FB)

HISTÓRIA

Villa-Lobos tinha dias de tirano

Documentos inéditos mostram que o compositor tratava mal suas alunas,
brigava e regia a massa com batuta de aço

LUÍS ANTÔNIO GIRON
   HOBBY
Villa-Lobos joga bilhar na Associação Brasileira de Imprensa (1957)  Na
quinta-feira 2 de junho de 1932, as professoras do recém-instalado Curso de
Pedagogia da Música e Canto Orfeônico do Rio de Janeiro, cansadas de
receber maus-tratos do compositor Heitor Villa-Lobos, redigiram uma carta
anônima ao carrasco. No início dos anos 1930, depois de uma década na
Europa, ele esbanjava poder e surtos de estrelismo, mas isso não conteve as
ofendidas. 'Se continuas a ameaçar-nos com os poderes absolutos de que te
prezas faremos uma representação ao Diretor Geral', ameaçam as missivistas.
'Não vês que tudo é contraproducente quando o chefe não sabe ter atitudes?
Não percebes que as colegas se podem infiltrar desses teus modos estúpidos
e passar a fazer o mesmo com as criancinhas?' Encerram o ataque com a
indicação: 'As professoras revoltadas pelo teu trato'.

A folha, datilografada e sem assinatura, encontra-se na Biblioteca
Nacional, no Rio (consta do espólio do maestro Sílvio Salema, assistente de
Villa), e só agora vem à luz, com outros papéis - recortes, partituras,
cartas e fotografias - arquivados ali e no Museu Villa-Lobos. As duas
instituições cariocas abrigam documentos que esclarecem a ação e a obra do
mais celebrado e executado compositor erudito brasileiro. Com base nos
materiais que vêm sendo vasculhados, acontece uma alteração sensível da
imagem de Villa-Lobos para a posteridade. O tratado definitivo sobre o
assunto ainda está por ser escrito, mas uma horda de pesquisadores corre e
concorre para realizar a façanha. Uma silhueta diferente do músico promete
delinear-se ao final da competição. Tudo indica que o 'índio de casaca', o
simpático inspirador da música popular brasileira - e de filmes como
*Villa-Lobos,
uma Vida de Paixão* (2000), de Zelito Viana, que reduz o artista à
caricatura -, saia do palco para dar lugar ao ditador agressivo, defensor
da 'arte elevada' contra a música popular - e sobretudo paladino de seus
interesses particulares.
    *Inimigos íntimos*
*Críticos, professores e colegas tentaram derrubar o músico*      ATAQUES
O crítico Oscar Guanabarino e outros malharam o músico em vida  Villa-Lobos
sofreu ataques desde que começou a apresentar suas peças de vanguarda, no
Rio, em 1918. Foi chamado de bárbaro, louco, petulante, autodidata. Durante
a Semana de Arte Moderna de 22, em São Paulo, foi saudado pelo público com
uma saraivada de batatas. As polêmicas só escassearam no fim da década de
40, quando obteve consagração mundial com suas turnês pelos Estados Unidos
e pela Europa e conseguiu calar quase todos os opositores. O maior deles
chamava-se Oscar Guanabarino (1851-1937). Esse professor de piano e
folhetinista atuou como flagelo do modernismo e do nacionalismo. Fã do
canto lírico de Carlos Gomes, iniciou fama de mal-humorado por volta de
1890, ao atacar os primeiros músicos que usavam o folclore em suas peças.
Quando Villa-Lobos apareceu com suas suítes sincopadas e dissonantes, o
velho crítico fulminou-o com todo o seu arsenal de conceitos. Os dois
chegaram a trocar bengaladas em um concerto nos anos 20. Guanabarino
atacou-o até morrer. Na coluna Pelo Mundo das Artes, do *Jornal do Commercio
* (uma das últimas a levar a rubrica de 'folhetim'), em 1934, comentou uma
festa orfeônica organizada pelo compositor informando que 'a concorrência
foi diminutíssima - apenas 100 pessoas na platéia, se tanto, o que quer
dizer que o público rejeita o sr. Villa-Lobos e a sua música, mesmo quando
lhe é oferecida gratuitamente'. Guanabarino inspirou novos rivais, como
Gondim da Fonseca e Carlos Maul (1887-1971). Este último publicou, em 1962,
o ensaio *A Glória Escandalosa de Villa-Lobos*. Ali, acusava o compositor
de haver rapinado o folclore. Villa-Lobos achava graça das acusações. A
posteridade não as levou a sério.    #Q#  Reprodução   HUMILHADAS
Integrantes do Orfeão dos Professores redigiram em 1932 uma carta
*(acima)*ameaçando o regente Heitor Villa-Lobos

Os documentos, examinados com exclusividade por ÉPOCA, dão conta de que
Villa-Lobos possuía um gênio incontrolável e não recuava ante nenhum tipo
de obstáculo. Exemplo disso é a advertência das alunas que constituíam o
Orfeão dos Professores sobre sua falta de didática. A carta, se foi
recebida (não há evidências a esse respeito), não surtiu efeito, porque o
regente defendia como expedientes o rigor para adultos e a palmatória para
crianças. Assim aconteceu num ensaio ao ar livre, na frente do prédio de
seu Conservatório de Canto Orfeônico, na Praia Vermelha, em meados de 1936.
O músico, trajado com uma espalhafatosa casaca colorida, tentava reger um
coral de milhares de meninos. Um grupo mais barulhento não se aquietava,
nem com a intervenção de um escoteiro encarregado de organizar a multidão.
A garotada começou, então, a brigar. 'Villa saiu do pódio furioso e acabou
com a bagunça, distribuindo cascudos para todo lado', lembra o tal
escoteiro, que viria a se tornar o mais importante biógrafo de Villa-Lobos:
Vasco Mariz. 'Até eu levei um!'Aos 82 anos, o embaixador aposentado e
musicólogo carioca orgulha-se de ter travado relações anos depois com
Villa-Lobos e feito sua biografia. Publicada pela primeira vez em 1949 pelo
Itamaraty a partir de seis meses de entrevistas com o compositor, *Villa-Lobos,
Compositor Brasileiro* chegará à 12ª edição no próximo ano pela editora
Francisco Alves, com acréscimos como cartas, iconografia, os episódios em
torno das concentrações orfeônicas e atualização biográfica e discográfica,
já que a vasta obra do compositor nunca foi tão executada e estudada no
mundo. São duas centenas de gravações recentes, além de 70 livros sobre o
artista. A primeira edição da biografia de Mariz desagradou ao biografado
por causa da passagem do cascudo. 'Villa se distanciou de mim por um bom
tempo, porque achava que eu o tinha descrito como violento', revela o
biógrafo. 'Foi um caso divertido e, quando lhe contei, Villa deu
gargalhadas. Ao ler, mudou de idéia. Depois, por meio de sua mulher,
Mindinha, fizemos as pazes. Mesmo com modos grosseiros com quem dependia
dele, foi muito amado.'

PRINCIPAIS OBRAS

*Segundo o gênero*

*6* Óperas
*12* Sinfonias
*13* Peças para violão-solo
*13* Poemas sinfônicos
*17* Quartetos de corda
*27* Concertos

Estranho homem esse, capaz de maltratar os alunos, despertar o ódio da
crítica, e, ainda assim, ser admirado. Mariz caracteriza-o como um eterno
menino, pronto para cometer uma traquinagem ou um gesto ditatorial. Rebate,
no entanto, a acusação que lhe fazem os acadêmicos atuais de que era um
colaborador do fascismo de Vargas. 'Ele não tinha cor política', lembra o
estudioso. 'Queria divulgar sua música. Vaidoso, não tinha paciência com a
mediocridade. Mas, se você soubesse manobrá-lo, conseguia tudo dele.'

Para a pesquisadora Mercedes Reis Pequeno, autora da monumental *Bibliografia
Musical Brasileira* (disponível na internet no site www.abm.org.br),
simpatizar com o compositor podia ser difícil. 'Era de temperamento muito
desigual e não conquistava à primeira vista. Muito seguro de seu valor,
convencido mesmo, mas ao mesmo tempo, em certas circunstâncias, quase
ingênuo. Mas, quando confiava, era para valer. Inimigos, quem não os tem
nessa vida?'
#Q#    *Fatos da vida do autor das 'Bachianas'*
*Nascido em 5 de março de 1887 em uma família de classe média, Villa-Lobos,
ou Tuhu, seu apelido, não teve educação formal. O pai, Raul, era músico
amador e lhe ensinou as primeiras notas*     *1922 – ENFANT TERRIBLE*
Brilhou e foi vaiado na Semana de Arte Moderna de São Paulo    *1926 – EM
PARIS*
Conviveu com músicos de vanguarda como Edgard Varèse *(à esq.)*     *1932 –
NO RIO*
Fundou o Orfeão dos Professores. Seu assistente era o maestro Sílvio Salema
(foto de 1952)    *1940 – MULTIDÃO*
Um coral de 40 mil alunos cantou no estádio do Vasco, sob direção do músico
*(no alto, ao microfone)*     *1955 – CONSAGRAÇÃO*
Rege a Orquestra da Filadélfia durante ensaio em uma de suas turnês pelos
Estados Unidos    *1959 – FINALE*
Lançou a última peça, *Concerto Grosso, para Orquestra de Sopros*. Morreu
de câncer no Rio, em 17 de novembro       #Q#

O músico lancetou-os com a ponta da batuta afiada - e, às vezes, do taco de
bilhar, seu passatempo favorito. Começou por estocar os compositores
populares, ou, como preferia, folclóricos. No início da década de 40, por
exemplo, chamou o samba-exaltação 'Aquarela do Brasil', de Ari Barroso, de
oportunista. Escreveu que a música folclórica não passava da 'acepção
mínima' da música. Oque não o impediu de se aproveitar de temas dos chorões
com quem havia tocado em noitadas na juventude, como o de 'Rasga Coração',
com melodia de Anacleto de Medeiros e letra de Catulo da Paixão Cearense,
base para os 'Choros no 10' (1925), para orquestra e coro. Por conta da
apropriação, ele amargou um processo de plágio, do qual veio a ser
inocentado só depois da morte.

'Villa-Lobos não gostava de música popular, como querem muitos estudiosos',
afirma o musicólogo Flávio Silva, que há dois anos pesquisa os papéis do
compositor e se candidata a ser um dos primeiros a chegar à esperada grande
interpretação. 'O canto orfeônico formava sua plataforma e seu ponto de
honra. Distinguia a 'música elevada' da restante. É engano pensar que ele
gostava do som recreativo.'

Até hoje raramente abordado, o período em que o músico implementou projeto
do canto orfeônico - de 1930 a 1945, os dois primeiros anos em São Paulo e
o restante no Distrito Federal - é o mais rico em intrigas, manifestações e
atos públicos em torno das idéias do compositor. Aos poucos, ele ganha
perspectiva histórica. Também foi o momento em que Villa-Lobos, na chefia
da trilha sonora da ditadura Vargas, feriu o maior número de pessoas, de
normalistas a críticos profissionais. Recebeu o troco e sua produtividade
cresceu na razão direta dos contra-ataques. Ela se revelou tão intensa que
ainda hoje estão para ser descobertos discos e partituras que ele produziu
com diversos coros. Com uma bolsa da Fundação Vitae, Flávio Silva levantou
20 gravações, inclusive pelo Orfeão dos Professores. 'Algumas gravações têm
qualidade, e o grupo conseguiu bom desempenho', julga.

'Proclamo o valor de todas as manifestações populares da música como quem
cultiva uma fonte de essências originais, nunca apresentando-a como
expressão de um povo civilizado'

*HEITOR VILLA-LOBOS*,
discurso em 15 de outubro de 1939

O resultado só podia ser obtido pela mão forte do regente, que se fazia
sentir no moral das professoras e na moleira da criançada. Seu sonho, ou
'plano de ataque', como dizia, era despertar o interesse dos jovens e
formar um público para a sua música por meio do canto coletivo. Com o *Guia
Prático* - 137 peças para diversas formações -, desejava espalhar corais
pelo Brasil em manifestações cívicas em grandes estádios. A prática coral
nas escolas não visava a grandes artistas, mas a preparar o gosto
comunitário para uma 'fisionomia musical brasileira', como disse em
discurso que pronunciou no salão Assírio do Teatro Municipal do Rio em 15
de outubro de 1939, segundo original da Biblioteca Nacional: 'Sei bem que o
gosto e a opinião pública não se impõem, mas educam-se'. O projeto,
contudo, murchou aos poucos. Todos os especialistas entrevistados fazem
uníssono ao dizer que a situação da educação musical nas escolas
brasileiras é péssima, quando não inexistente, e a lição de Villa-Lobos foi
esquecida, bem como suas idéias. Ele perdeu a guerra para a música popular
por força do rádio, que consagrou o samba e jogou a arte erudita ao segundo
plano.

'Villa-Lobos escreveu e defendeu muitas bobagens', diz Flávio Silva.
'Poucas idéias dele se sustentam hoje.' Sua herança se concentra na obra,
embora a maior parte dela ainda precise ser divulgada. O público brasileiro
não conhece mais que uma dezena de melodias do compositor - não por acaso,
quase todas escritas no período em que o maestro, vulto oficial, tangia
professoras e alunos para os estádios.

Fotos e reproduções dos textos: Biblioteca Nacional/Divisão de Música e
Arquivo Sonoro
http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDR59656-6011,00.html

-- 
carlos palombini
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