[ANPPOM-Lista] sobre a "proposta definitiva"

Carlos Palombini cpalombini em gmail.com
Sex Jul 20 20:31:24 BRT 2012


GREVE NAS FEDERAIS O jornalismo cego às armadilhas do discurso oficial

Por Sylvia Debossan Moretzsohn em 17/07/2012 na edição 703

O que dizer de um noticiário que dá de manchete exatamente o contrário da
informação correta?

Foi o que ocorreu na cobertura da coletiva convocada pelo governo, no fim
da tarde de 13 de julho, para anunciar a proposta com a qual pretende pôr
fim à greve nas universidades e institutos federais de ensino, que já dura
quase dois meses. O noticiário revelou mais uma vez a submissão dos
jornalistas às fontes oficiais e a absoluta ausência de apuração própria
resultou em matérias que induzem a erro e anunciam o oposto do que a
proposta significa. Pois, em vez do alardeado reajuste, os professores
terão perda salarial, como se verá. E não apenas isso: o plano de carreira
embute armadilhas que, se confirmadas, significarão um retrocesso aos
tempos da ditadura.

Comecemos, porém, pelos aspectos mais evidentes da cobertura.

Uma primeira comparação entre as capas de dois dos principais jornais do
país já levaria a algum arquear de sobrancelhas: enquanto *O
Globo*alardeia em manchete “Governo cede e aumenta professores em até
48%”, a
*Folha* *de S.Paulo* dá chamada de capa com um índice menor: “Governo
propõe reajuste de até 40% a docentes das federais”. A discrepância se deve
a opções diferentes entre os jornais – o maior índice se refere a
professores de institutos federais, e não de universidades – e ao cuidado
do jornal paulista em abater, do índice anunciado, o reajuste de 4% já pago
aos docentes de universidades no contracheque de maio, retroativo a março,
conforme acordo estabelecido no ano anterior.

Ainda assim, ambos os jornais associam os números exuberantes aos cargos de
“maior titulação”, sem explicar que esse reajuste máximo atinge apenas o
restrito grupo de professores titulares. Entre doutores com regime de
dedicação exclusiva, tanto adjuntos quanto associados (e essa diferença é
relevante, porque os associados ganham substancialmente mais), o índice
fica na faixa dos 30%.

*Fazendo contas*

Os jornais informam corretamente que os reajustes serão concedidos
parcialmente, ao longo dos próximos três anos. Porém, não alertam para o
essencial: que se trata de um percentual bruto, do qual, obrigatoriamente,
deveria ser descontada a previsão de inflação para o período. E é aí que
fica clara a primeira armadilha da proposta: não se trata de oferta de
reajuste, mas da imposição de uma redução salarial, na maioria dos casos.

Há muitos anos, um renomado colunista de economia, convidado a dar uma
palestra para estudantes de jornalismo, surpreendeu – e provavelmente
decepcionou – a plateia ao responder à pergunta inevitável sobre a
preparação dos jovens para a profissão: não repetiu a ladainha de sempre
sobre a necessidade de leitura dos clássicos; disse que um bom jornalista
precisa saber fazer contas.

Essa tarefa, infelizmente, continua restrita aos especialistas, como o
professor Wagner Ferreira Santos, do Departamento de Matemática da
Universidade Federal de Sergipe. Ele fez essas contas e disponibilizou o
resultado num artigo<http://professoresemlutaufal.blogspot.com.br/2012/07/governo-propoe-reducao-de.html>em
que demonstra o engodo de se comparar valores em períodos distintos sem
considerar o índice de inflação correspondente, normalmente calculado pelo
IGP-M. Com base nesse índice, ele projeta uma inflação de 20% até 2015, de
modo que, assim (re)ajustada, a remuneração da grande maioria dos
professores (mestres e doutores com dedicação exclusiva, que compõem a
esmagadora maioria nas universidades públicas) sofreria, de fato, perda de
0,4% a 11,9%, conforme a titulação e o nível de carreira. Reajuste, a
rigor, só para o professor titular (5,9%, nesse percentual corrigido) e
para o doutor adjunto nível 4 (1%), como se pode conferir nas tabelas
publicadas em seu artigo.

Para esclarecer, o professor argumenta, como se passasse uma tarefa a seus
alunos: “Como exercício de fixação, façamos cálculos análogos com o salário
mínimo, que é referência para a maioria da população brasileira. Primeiro,
mostre que os atuais R$ 622 são realmente maiores que os R$ 510 de julho de
2010. Agora, a pergunta capciosa: se o governo anunciasse hoje que o
salário mínimo sofreria aumentos consecutivos em três parcelas, chegando a
R$ 700 em julho de 2015, você aceitaria?”.

*Papagaios das fontes*

Os jornalistas presentes à coletiva não apenas não fizeram essas contas
como nem sequer indagaram por que a proposta anunciava percentuais brutos e
ignorava a inflação projetada para o período. Seria o comportamento
elementar de qualquer repórter minimamente qualificado e interessado em
trabalhar com dados corretos para divulgar informações confiáveis. Ainda
que se considere que o governo, espertamente, venha convocando suas
coletivas mais problemáticas para o fim da tarde, quando já não sobra muito
tempo para que os jornalistas analisem adequadamente os dados que precisam
divulgar “em tempo real”, nos sites e no noticiário radiofônico e
televisivo. Mesmo que não obtivessem a informação precisa, os repórteres
poderiam relativizar o que receberam, e não agir como porta-vozes
oficiosos. Entretanto, o máximo que fizeram foi ouvir “o outro lado”, o dos
dirigentes sindicais, e publicar breves declarações contrárias à proposta,
mas tampouco esclarecedoras.

À parte a questão do reajuste, que inevitavelmente ganharia destaque no
noticiário, há pelo menos outras duas armadilhas embutidas na proposta do
governo para o plano de carreira nas universidades federais, como se pode
constatar aqui<http://www.planejamento.gov.br/secretarias/upload/Arquivos/noticias/srh/2012/120713_proposta_reestruturacao.pdf>,
e que sequer foram consideradas nas reportagens, como observou o professor
Kleber Mendonça, chefe do Departamento de Estudos de Mídia da UFF. Uma
delas, que já preocupava as entidades sindicais, é a de que todos os novos
professores, independentemente de sua titulação, ingressarão no nível mais
baixo da carreira, como auxiliares, e não poderão mudar de classe enquanto
estiverem em estágio probatório (o período de três anos ao final do qual o
profissional é confirmado ou desligado do cargo). Na prática, isso
significa que aquele que já poderia estar recebendo como doutor ficará com
remuneração inferior durante esses três anos. Note-se que os concursos, há
muitos anos, vêm sendo abertos apenas para doutores, e só excepcionalmente
para mestres. Ou seja, exige-se a titulação, mas a remuneração
correspondente pode esperar.

É possível perder essa oportunidade tão clara de ironizar o discurso
oficial de “valorização da carreira”?

*Ironias da história*

Além disso, a planilha<http://www.planejamento.gov.br/secretarias/upload/Arquivos/noticias/srh/2012/120713_superior_tabela.pdf>comparativa
divulgada pelo governo mostra apenas os salários atuais (antes e depois do
reajuste de 4% já concedido no mês passado, e retroativo a março) e os
salários de 2015. O hiato de três anos até lá é apagado, mais ou menos como
em certos anúncios imobiliários em que algumas ruas são suprimidas do mapa
para dar a impressão de que o belo imóvel fica a poucas quadras da praia ou
de um maravilhoso bosque. Quem olha as planilhas fica com a sensação de que
os professores que recebem hoje, digamos, R$ 7.600 (adjunto 1, doutor com
dedicação exclusiva), passarão logo a ganhar R$ 10 mil, quando esta é a
remuneração para daqui a três anos.

A outra armadilha é que o governo propõe uma mudança no sistema de promoção
“nos termos das normas regulamentares a serem expedidas pelo Ministério da
Educação”. Portanto, propõe que os professores aceitem normas que
desconhecem.

É de fazer inveja a Maquiavel.

Mas essa armadilha representa algo ainda mais grave, como lembrou o
jornalista João Batista de Abreu, professor no Departamento de Comunicação
da UFF: significa um retorno aos tempos da ditadura militar, quando não
havia concursos públicos e a cada renovação de contrato os professores
tinham que apresentar o famigerado atestado ideológico, emitido pelo DOPS.
Quem estava respondendo a processo político não conseguia o documento.
Depois da Lei da Anistia, em 1979, essa exigência caiu, mas um chefe de
Departamento que não gostasse de determinado professor poderia simplesmente
não renovar seu contrato.

João Batista, na época em início de sua carreira docente, recorda da greve
iniciada em fins de 1980, que resultou na conquista desse aspecto
fundamental da autonomia universitária que é a definição do sistema de
ascensão funcional, através da constituição de comissões de progressão
docentes, responsáveis também pela regulamentação das atividades do
professor na instituição. “Se os critérios de progressão passarem a ser
definidos pelo MEC”, diz João Batista, “voltaremos 30 anos no tempo”.

Seria uma dessas ironias da história se isso acontecesse, tendo em vista o
passado dos atuais governantes. Mas a tentação autoritária é um fantasma
sempre à espreita.

*“Proposta definitiva”*

Apesar de todas essas considerações, houve quem, embora com vasta
experiência profissional – como a colunista de política da *Folha* Eliane
Cantanhêde –, optasse por simplesmente reverberar as informações oficiais,
afirmando tratar-se de uma “proposta definitiva”, esse absurdo lógico que
ignora que uma proposta, por definição, é passível de negociação. Do
contrário, trata-se de decisão, deliberação, imposição ou qualquer outro
substantivo que expresse uma resolução unilateral de quem tem, ou pensa que
tem, poder para agir dessa forma.

Para concluir, as reportagens não deixaram de notar o “impacto” de R$ 3,9
bilhões que essa “proposta definitiva” causará aos cofres públicos,
ignorando oportunamente o teor da Medida Provisória 559, já aprovada pelo
Congresso e dependendo apenas da sanção presidencial, segundo a qual o
governo concede às instituições particulares de ensino R$ 15 bilhões sob a
forma de renúncia fiscal.

Assim se faz o jornalismo de hoje, esse jornalismo que certa vez chamei “de
mãos limpas”, porque se contenta em ouvir um lado, ouvir outro e lavar as
mãos, deixando supostamente a conclusão para o público. Não é difícil
imaginar a que tipo de conclusão esse público poderá chegar, privado que
está das informações elementares a partir das quais poderia elaborar algum
raciocínio minimamente fundamentado. Não por acaso tantos colegas
professores receberam congratulações de parentes e amigos diante da
expectativa do magnífico reajuste. Precisaram pacientemente desfazer o
equívoco, para espanto de quem acreditou nos jornais.

***

[Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade
Federal Fluminense]
http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/_ed703_o_jornalismo_cego_as_armadilhas_do_discurso_oficial

-- 
carlos palombini
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