[ANPPOM-Lista] Iná Camargo: "Intelectuais têm pavor de revolução"

Carlos Palombini cpalombini em gmail.com
Sex Jun 1 12:19:39 BRT 2012


“Intelectuais têm pavor de revolução”

Para Iná Camargo, quando um mero intelectual diz que o projeto socialista
está fora de pauta, ele está simplesmente expressando seu mais profundo
desejo que nunca entre mesmo na pauta

*11/04/2012 Jade Percassi, de São Paulo (SP)  *
*Iná Camargo - Foto: Cia do Latão*

A professora Iná Camargo Costa, nesta entrevista exclusiva ao *Brasil de
Fato*, fala sobre arte e política em tempos de crise. Para ela, a arte
convencional, uma das melhores expressões do fetichismo da mercadoria, em
todas as suas modalidades, inclusive as chamadas vanguardas, é
politicamente comprometida com os valores dominantes. A professora, que
acompanhou de perto a luta dos grupos teatrais, principalmente de São
Paulo, por políticas públicas para a cultura, afirma que não acha que o
caminho da disputa pelos recursos públicos seja revolucionário. Para ela, o
preço que os trabalhadores da cultura pagam pela opção reformista é a
reprodução interna, tanto subjetiva quanto no plano da organização do
trabalho, do que a vida no capitalismo tem de pior. Para Iná, na prática os
artistas reproduzem todas as relações necessárias à manutenção do modo de
produção capitalista e, reivindicando parte dos recursos públicos para a
produção das suas obras e garantia da sobrevivência, demonstram estar
completamente integrados ao sistema. “Todos pagam o preço da
invisibilidade, inclusive política, a que estão condenados os que não se
colocam como estratégia o confronto revolucionário com o monopólio dos
meios de produção cultural”, afirma.

Iná Camargo – que atualmente, atua como dramaturgista da Cia Ocamorana de
teatro e que anunciou que por ocasião de seu sexagésimo aniversário faz sua
despedida de eventos públicos “de qualquer natureza” – afirma que o
problema, portanto, não é reiterar que “o projeto socialista está tão fora
de pauta”, mas discutir por que as organizações políticas, tanto partidos
quanto movimentos, não o colocam em pauta. E coloca um critério: quando um
mero intelectual diz que o projeto socialista está fora de pauta, ele está
simplesmente expressando seu mais profundo desejo que nunca entre mesmo na
pauta, pois intelectuais têm pavor de revolução.

*Brasil de Fato – Em recentes participações em debates políticos, você tem
reafirmado a presença histórica das linguagens artísticas nos processos
políticos mais amplos, revolucionários e contrarrevolucionários. Quais os
casos mais emblemáticos dessa relação entre arte e política?*

*Iná Camargo Costa –* Começando por colocar a questão em termos bem amplos,
é preciso lembrar que as chamadas linguagens artísticas estão presentes o
tempo todo em nossas vidas e sempre traduzem os valores da classe
dominante. Basta prestar atenção ao modo de ser das nossas cidades,
voltadas que são às necessidades do escoamento dos produtos da indústria
automobilística: todos os sinais de trânsito exploram linguagens
artísticas, desde as faixas de pedestres até as amplas avenidas, os
parques, as pontes estaiadas etc. O discurso político, por mais
convencional e conservador que seja, sempre tem ingredientes artísticos. A
arte convencional, uma das melhores expressões do fetichismo da mercadoria,
em todas as suas modalidades, inclusive as chamadas vanguardas, é
politicamente comprometida com os valores dominantes. Nos debates de que
participei ultimamente, a solicitação era tratar dos diferentes modos como
artistas interessados no ponto de vista dos trabalhadores podem enfrentar
esteticamente esses valores dominantes. Entendendo que o interesse era a
luta de classes tal como se manifesta na trincheira da produção artística,
achei que seria o caso de lembrar alguns episódios que a própria história
da luta de classes já produziu, tanto no plano reformista quanto no
revolucionário. Um critério político-dialético aqui é importante: até
outubro de 1917 (revolução soviética), as manifestações reformistas podiam
ser consideradas progressistas, mas depois da revolução elas adquirem um
caráter contrarrevolucionário, de obstáculo claro ao avanço das funções e
das próprias linguagens artísticas. Sem meias palavras: o mesmo critério
que vale para a política vale para as artes.

Sem perder mais tempo com a arte contrarrevolucionária que nos assedia
durante 24 horas por dia, passemos ao interesse pela revolucionária. Neste
caso é obrigatório tratar daquilo que foi feito nos anos que se seguiram à
revolução soviética. Como meu maior interesse é teatro, as intervenções que
andei fazendo acabaram se voltando para o teatro de *agitprop*, a
manifestação mais revolucionária possível em matéria de arte, de acordo com
o critério acima enunciado. Por isso vou me referir apenas às relações
entre política e *agitprop*. Os artistas que se dedicaram a ele – e entre
os mais conhecidos estão Maiakóvski, Meyerhold e Eisenstein, para ficar só
no campo do teatro – já tinham uma posição política clara: Maiakóvski e
Meyerhold eram militantes do partido bolchevique e Eisenstein integrou-se
diretamente ao exército vermelho em 1918. Para eles, a função da arte
revolucionária era participar da luta pela construção do poder soviético –
o mais democrático já inventado pela humanidade – de todas as formas
possíveis, desde fazendo a propaganda direta do ponto de vista
revolucionário sobre as questões da ordem do dia, até inventando formas
totalmente inéditas, como a do “processo de agitação” em que o público era
diretamente treinado para participar dos sovietes com desenvoltura e
conhecimento de causa. Sendo o agitprop, disparado, a minha forma preferida
de arte, nem gosto muito de perder tempo com as outras.

Simplificando bastante: as relações são antes dos artistas, do que das
artes, com a política. Os que se decidem por um caminho revolucionário são
livres para inventar as melhores maneiras de aproveitar todas as linguagens
disponíveis. No mesmo processo, acabarão inventando suas formas próprias,
ou inéditas, como foi o caso do teatro jornal, do processo de agitação, da
peça dialética e assim por diante.

*No caso brasileiro, qual foi o papel da produção artística na disputa de
hegemonia ao longo da história recente?*

Vamos combinar que eu não gosto muito de “disputa de hegemonia”, pois aqui
no Brasil essa expressão assumiu desde os anos de 1970 uma conotação
abertamente reformista, pela qual não tenho nenhuma simpatia. Isso no plano
da política, porque no plano da arte ela pode ser tranquilamente absorvida
pela expressão mais verdadeira, que é “disputa de mercado”.

Dito isto, é preciso reconhecer que desde fins do século 20 há uma forte
movimentação de jovens supérfluos (que não encontram emprego no mercado
cultural) tentando desenvolver uma produção artística fora do mercado,
tanto para criticá-lo quanto se esforçando para fazer alguma coisa que pode
ser identificada como “disputa de hegemonia”. Se não há dúvida sobre o fato
de que isto realmente é feito em termos de obras, isto é, no plano
simbólico, já não se pode dizer o mesmo quanto à estratégia, pois esses
trabalhos desenvolvidos à margem do mercado cultural não têm a mais remota
condição de disputar absolutamente nada com ele em termos de alcance. Basta
pensar no número de pessoas que um capítulo de novela atinge e o número de
pessoas que um trabalho de teatro de grupo tem a possibilidade de alcançar.
Não é por outra razão que a chamada “Cultura fora do eixo” põe em pânico
tantos militantes do teatro de grupo. Eu diria que, no âmbito do mercado
que realmente está sendo disputado, eles, pelo menos, não são hipócritas,
jogam limpo. Já disseram que é de mercado que se trata e se habilitam a
disputar o fundo público para essa finalidade, inclusive deixando claro que
estão muito bem sintonizados com estes tempos de “empreendedorismo” que
caracteriza a ação de todo mundo no campo cultural.

Os que dizem disputar hegemonia precisam esclarecer melhor seus próprios
objetivos, pois enquanto não o fazem estão perdendo de goleada para os
militantes da “economia da cultura”.

*Há exemplos na atualidade que indicam uma reativação desse fazer artístico
que assume sua vocação eminentemente política? *

Acho que os grupos teatrais, ou as brigadas, que se desenvolveram no
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), claramente reativam a
vocação eminentemente política do teatro, até porque foram criadas pela
própria direção do movimento que desde o começo considerou necessária
também a intervenção no âmbito cultural. Por haver esse processo no
interior de um movimento político, os grupos teatrais que se aproximaram do
MST – e isto no Brasil inteiro, a começar pelo Rio Grande do Sul – também
desenvolveram essa vocação. Por outro lado, veteranos de outros episódios
de politização mais ampla no país, como o União e Olho Vivo de São Paulo,
entre outros, nunca perderam esse espírito. Mas todos pagam o preço da
invisibilidade, inclusive política, a que estão condenados os que não se
colocam como estratégia o confronto revolucionário com o monopólio dos
meios de produção cultural.

Quanto aos grupos teatrais mais jovens, que apareceram nas ondas criadas
por movimentos como o “Arte contra a barbárie” e “Redemoinho”, por serem
majoritariamente integrados por filhos da classe média, é possível observar
neles o interesse por essa reativação de um fazer artístico politizado em
graus variados. Nota-se isso sobretudo nos assuntos, nos temas abordados e
na opção por formas diversas do teatro épico. Mas a condição de classe
média pesa muito, todos oscilam tipicamente entre euforia e depressão e,
sobretudo, muitos reagem mal a qualquer proposta de organização política
mais efetiva. Por isso o Movimento dos Trabalhadores da Cultura está
demorando tanto para decolar. Tem muita gente que ainda acha que artista
não é trabalhador!

*Em que medida a organização interna dessa(s) categoria(s) se fortalece
e/ou se fragiliza ao se deparar com as contradições da disputa por recursos
públicos e a contribuição para a elaboração de um política cultural junto
ao Estado?*

Essa questão tem pouco interesse para mim, pois não acho que o caminho da
disputa pelos recursos públicos seja revolucionário. O preço que os
trabalhadores da cultura pagam pela opção reformista é a reprodução
interna, tanto subjetiva quanto no plano da organização do trabalho, do que
a vida no capitalismo tem de pior: começando pelo consumo privilegiado (por
ser sempre e necessariamente para poucos) de todos os bens produzidos pela
classe trabalhadora – de alimentos a verbas públicas (a renda do Estado
provém da mais-valia arrancada dos trabalhadores agrícolas, industriais e
dos serviços, não é mesmo?) – e culminando com a reprodução entre eles
mesmos da estrutura social mais geral, na qual quem tem mais pode mais,
prevalece a hierarquia do saber, a administração das pessoas, o
paternalismo mais odioso, inclusive reclamado pelos mais jovens e assim por
diante. Isto é: na prática os artistas reproduzem todas as relações
necessárias à manutenção do modo de produção capitalista e, reivindicando
parte dos recursos públicos para a produção das suas obras e garantia da
sobrevivência, demonstram estar completamente integrados ao sistema. Não dá
para imaginar que daí saia alguma alternativa revolucionária. Por isso
venho perguntando com insistência aos artistas: vocês acham possível se dar
bem e ser feliz neste mundo, tal como ele está organizado, ou a sua
felicidade pessoal e profissional depende de uma mudança total? É claro que
“mudança total” é código para revolução...

*Do ponto de vista da disputa com a indústria cultural, há condições da
produção artística alinhada com os interesses da classe trabalhadora
confrontar o que está sendo imposto pela lógica do capitalismo? Quando um
projeto socialista parece “tão fora de pauta” para a grande massa de
trabalhadores não organizados, sem consciência de classe, etc.)*

Enquanto não aparecer um movimento ou partido que ponha essa questão na
ordem do dia, por certo que não há condições subjetivas. Quanto às
objetivas, elas estão dadas desde a própria revolução de outubro. Aliás,
este ponto já foi tratado por revolucionários como Lenin e Trotsky e, no
Brasil, foi desenvolvido artisticamente por Mário de Andrade numa ópera
chamada *Café*. Nesta obra acontece uma revolução que culmina com a tomada
revolucionária dos meios de comunicação. No caso, o rádio. O problema,
portanto, não é reiterar que “o projeto socialista está tão fora de pauta”,
mas discutir por que as organizações políticas, tanto partidos quanto
movimentos, não o colocam em pauta. Em outras palavras, desmascarar as
organizações políticas que, ao insistir no ponto, continuam empurrando com
a barriga a ação reformista que é, repito,
contrarrevolucionária.

Um critério: quando um mero intelectual diz que o projeto socialista está
fora de pauta, ele está simplesmente expressando seu mais profundo desejo
que nunca entre mesmo na pauta, pois intelectuais têm pavor de revolução.
Mas quando um dirigente partidário ou de movimento organizado diz a mesma
coisa, ele está expressando o caráter reformista de sua própria
organização, ou pelo menos da tendência que ele representa nessa
organização. Um contraexemplo é o discurso do Gilmar Mauro no último
congresso do MST.

*Como você resumiria então os desafios correntes para a ativação simbólica
da luta de classes?*

Acho que já respondi a questão, mas especifiquemos um pouco mais. Não
podemos ter a veleidade de achar que artistas sem qualquer vínculo com
organizações revolucionárias propriamente ditas sejam capazes de avançar
nessa ativação simbólica da luta de classes, para além do que já fazem em
seus trabalhos, às vezes até sem consciência. Antes de mais nada, eles
próprios precisam entender o que seja luta de classes pois, enquanto não o
fizerem, nem ao menos saberão qual o seu lugar nessa luta. E nessa
ignorância política tenderão sempre a reproduzir os valores dominantes.
Para estes casos, recomendo sempre a leitura dos escritos políticos de
Brecht, que nunca tergiversou sobre a questão. Ele diz com todas as
palavras que o proletariado espera pelo menos três serviços dos
intelectuais e, portanto, dos artistas: a) que desintegrem a ideologia
burguesa (nos dois sentidos: cair fora e denunciar, criticar até reduzir a
pó); b) que estudem, compreendam, expliquem e exponham artisticamente,
sempre de maneira crítica, as forças que movem o mundo e c) que façam a
teoria e a arte avançarem na direção dos seus interesses.
Simplificando: ultrapassar o estágio em que os artistas se encontram, de
completa ignorância política, é o principal obstáculo. Se este obstáculo
for ultrapassado, os demais serão mais facilmente superados.

*<Quem é**>*

A professora Iná Camargo Costa ministrou disciplinas e orientou dezenas de
pesquisas; foi curadora e palestrante de inúmeros debates em que trouxe à
tona posições críticas sobre a relação entre arte e sociedade, a função
social da arte e os limites e possibilidades do teatro político no Brasil.
Militante, acompanhou de perto a luta dos grupos teatrais, principalmente
de São Paulo, por políticas públicas para a cultura. Atualmente, atua como
dramaturgista da Cia Ocamorana de teatro, e por ocasião de seu sexagésimo
aniversário anuncia aos camaradas sua despedida de eventos públicos “de
qualquer natureza”. Professora aposentada do Departamento de Teoria
Literária e Literatura Comparada da Faculdade de Filosofia Letras e
Ciências Humanas (FFLCH – USP), é autora de A Hora do Teatro Épico no
Brasil (Graal), Sinta o Drama (Vozes) e Panorama do Rio Vermelho
(Nankin).

*Cronologia*

1952 Nasce Iná Camargo Costa, em Chavantes/ SP

1970 a 1973 Cursa Letras em Botucatu

1974 a 1984 Professora de Português na rede estadual Ensino Fundamental

1975 Inicia graduação em Filosofia na FFLCH USP

1975 Adere ao Centro Acadêmico de Filosofia (CAF), sob direção da Liberdade
e Luta

1977 Passa a integrar o Centro de Estudos sobre Arte Contemporânea (Ceac),
coordenado pela professora Otilia Arantes

1979 Conclui o Bacharelado em Filosofia

1980 Retira-se da Organização Socialista Internacionalista

1980 Ingressa no mestrado

1982 a 1984 Leciona na Faculdade Nossa Senhora Medianeira

1983 e 1984 Torna-se assistente do Conselho Estadual de Educação SP

1985 a 1988 Leciona Filosofia na Unesp de Marilia

1986 a 1991 Integra a Ala Maravilha Negra da Escola de Samba Camisa Verde e
Branco 1988 Mestre em Filosofia com a dissertação *Dias Gomes - um
dramaturgo nacional – popular *

1988 Ingressa no Doutorado

1989 Começa a ministrar aulas no curso de Letras, participando da criação
do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da FFLCH/USP

1993 Doutora em Filosofia com a tese *Teatro épico no Brasil: de força
produtiva a artigo de consumo *

1999 Participa da articulação do Movimento Arte Contra a Barbárie

2000 Obtém a Livre-docência na Universidade de São Paulo

2003 Aposenta-se

2004 Torna-se assessora da Coordenação de Cultura do MST

2008 Descredencia-se da pós-graduação da USP
-- 
carlos palombini
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