[ANPPOM-Lista] Os novos “vândalos” do Brasil

Carlos Palombini cpalombini em gmail.com
Seg Dez 23 16:32:00 BRST 2013


O rolezinho, a novidade deste Natal, mostra que, quando a juventude pobre e
negra das periferias de São Paulo ocupa os shoppings anunciando que quer
fazer parte da festa do consumo, a resposta é a de sempre: criminalização.
Mas o que estes jovens estão, de fato, “roubando” da classe média
brasileira? Eliane Brum <http://brasil.elpais.com/autor/eliane_brum/a/> 23
DEZ 2013 - 09:51 BRST <http://brasil.elpais.com/tag/fecha/20131223>

http://brasil.elpais.com/brasil/2013/12/23/opinion/1387799473_348730.html

O Natal de 2013 ficará marcado como aquele em que o Brasil tratou garotos
pobres, a maioria deles negros, como bandidos, por terem ousado se divertir
nos shoppings onde a classe média faz as compras de fim de ano. Pelas redes
sociais, centenas, às vezes milhares de jovens, combinavam o que chamam de
“rolezinho”, em shopping próximos de suas comunidades, para “zoar, dar uns
beijos, rolar umas paqueras” ou “tumultuar, pegar geral, se divertir, sem
roubos”. No sábado, 14, dezenas entraram no Shopping Internacional de
Guarulhos, cantando refrões de funk da ostentação. Não roubaram não
destruíram, não portavam drogas, mas, mesmo assim, 23 deles foram levados
até a delegacia, sem que nada justificasse a detenção. Neste domingo, 22,
no Shopping Interlagos, garotos foram revistados na chegada por um forte
esquema policial: segundo a imprensa, uma base móvel e quatro camburões
para a revista, outras quatro unidades da Polícia Militar, uma do GOE
(Grupo de Operações Especiais) e cinco carros de segurança particular para
montar guarda. Vários jovens foram “convidados” a se retirar do prédio, por
exibirem uma aparência de funkeiros, como dois irmãos que empurravam o pai,
amputado, numa cadeira de rodas. De novo, nenhum furto foi registrado. No
sábado, 21, a polícia, chamada pela administração do Shopping Campo Limpo,
não constatou nenhum “tumulto”, mas viaturas da Força Tática e motos da
Rocam (Ronda Ostensiva com Apoio de Motocicletas) permaneceram no
estacionamento para inibir o rolezinho e policiais entraram no shopping com
armas de balas de borracha e bombas de gás.

Se não há crime, por que a juventude pobre e negra das periferias da Grande
São Paulo está sendo criminalizada?

Primeiro, por causa do passo para dentro. Os shoppings foram construídos
para mantê-los do lado de fora e, de repente, eles ousaram superar a margem
e entrar. E reivindicando algo transgressor para jovens negros e pobres, no
imaginário nacional: divertir-se fora dos limites do gueto. E desejar
objetos de consumo. Não geladeiras e TVs de tela plana, símbolos da chamada
classe C ou “nova classe média”, parcela da população que ascendeu com a
ampliação de renda no governo Lula, mas marcas de luxo, as grandes grifes
internacionais, aqueles que se pretendem exclusivas para uma elite, em
geral branca.

Antes, em 7 de dezembro, cerca de 6 mil jovens haviam ocupado o
estacionamento do Shopping Metrô Itaquera, e também foram reprimidos.
Vários rolezinhos foram marcados pelas redes sociais em diferentes
shoppings da região metropolitana de São Paulo até o final de janeiro, mas,
com medo da repressão, muitos têm sido cancelados. Seus organizadores,
jovens que trabalham em serviços como o de office-boy e ajudante geral,
temem perder o emprego ao serem detidos pela polícia por estarem onde
supostamente não deveriam estar – numa lei não escrita, mas sempre cumprida
no Brasil. Seguranças dos shoppings foram orientados a monitorar qualquer
jovem “suspeito” que esteja diante de uma vitrine, mesmo que sozinho,
desejando óculos da Oakley ou tênis Mizuno, dois dos ícones dos funkeiros
da ostentação. Às vésperas do Natal, o Brasil mostra a face deformada do
seu racismo. E precisa encará-la, porque racismo, sim, é crime.

“Eita porra, que cheiro de maconha” foi o refrão cantado pelos jovens ao
entrarem no Shopping Internacional de Guarulhos. O funk é de MC Daleste,
que afirma no nome artístico a região onde nasceu e se criou, a zona leste,
a mais pobre de São Paulo, aquela que todo o verão naufraga com as chuvas,
por obras que os sucessivos governos sempre adiam, esmagando sonhos,
soterrando casas, matando adultos e crianças. Daleste morreu assassinado em
julho com um tiro no peito durante um show em Campinas – e assassinato é a
primeira causa de morte dos jovens negros e pobres no Brasil, como os que
ocuparam o Shopping Internacional de Guarulhos.

A polícia reprimiu, os lojistas fecharam as lojas, a clientela correu. Uma
das frequentadores do shopping disse a frase-símbolo à repórter Laura
Capriglione, na Folha de S. Paulo: “Tem de proibir este tipo de maloqueiro
de entrar num lugar como este”. Nos dias que se seguiram, em diferentes
sites de imprensa, leitores assim definiram os “rolezeiros” (veja
entrevista abaixo): “maloqueiros”, “bandidos”, “prostitutas” e “negros”.
Negros emerge aqui como palavra de ofensa.

O funk da ostentação, surgido na Baixada Santista e Região Metropolitana de
São Paulo nos últimos anos, evoca o consumo, o luxo, o dinheiro e o prazer
que tudo isso dá. Em seus clipes, os MCs aparecem com correntes e anéis de
ouro, vestidos com roupas de grife, em carros caros, cercado por mulheres
com muita bunda e pouca roupa. (Para conhecer o funk da ostentação, assista
ao documentário <http://www.youtube.com/watch?v=5V3ZK6jAuNI> [image:
SaveFrom.net]<http://savefrom.net/?url=http%3A%2F%2Fwww.youtube.com%2Fwatch%3Fv%3D5V3ZK6jAuNI&utm_source=firefox&utm_medium=extensions&utm_campaign=link_modifier>
*aqui*). Diferentemente do núcleo duro do hip hop paulista dos ano 80 e 90,
que negava o sistema, e também do movimento de literatura periférica e
marginal que, no início dos anos 2000, defendia que, se é para consumir,
que se compre as marcas produzidas pela periferia, para a periferia, o funk
da ostentação coloca os jovens, ainda que para a maioria só pelo
imaginário, em cenários até então reservados para a juventude branca das
classes média e alta. Esta, talvez, seja a sua transgressão. Em seus
clipes, os MCs têm vida de rico, com todos os signos dos ricos. Graças ao
sucesso de seu funk nas comunidades, muitos MCs enriqueceram de fato e
tiveram acesso ao mundo que celebravam.

Esta exaltação do luxo e do consumo, interpretada como adesão ao sistema,
tornou o funk da ostentação desconfortável para uma parcela dos
intelectuais brasileiros e mesmo para parte das lideranças culturais das
periferias de São Paulo. Agora, os rolezinhos – e a repressão que se seguiu
a eles – deram a esta vertente do funk uma marca de insurgência, celebrada
nos últimos dias por vozes da esquerda. Ao ocupar os shoppings, a juventude
pobre e negra das periferias não estava apenas se apropriando dos valores
simbólicos, como já fazia pelas letras do funk da ostentação, mas também
dos espaços físicos, o que marca uma diferença. E, para alguns setores da
sociedade, adiciona um conteúdo perigoso àquele que já foi chamado de “funk
do bem”.

A resposta violenta da administração dos shoppings, das autoridades
públicas, da clientela e de parte da mídia demonstra que esses atores
decodificaram a entrada da juventude das periferias nos shoppings como uma
violência. Mas a violência era justamente o fato de não estarem lá para
roubar, o único lugar em que se acostumaram a enxergar jovens negros e
pobres. Então, como encaixá-los, em que lugar colocá-los? Preferiram
concluir que havia a intenção de furtar e destruir, o que era mais fácil de
aceitar do que admitir que apenas queriam se divertir nos mesmos lugares da
classe média, desejando os mesmo objetos de consumo que ela. Levaram uma
parte dos rolezeiros para a delegacia. Ainda que tivessem de soltá-los logo
depois, porque nada de fato havia para mantê-los ali, o ato já
estigmatizou-os e assinalará suas vidas, como historicamente se fez com os
negros e pobres no Brasil.

Jefferson Luís, 20 anos, organizador do rolezinho do Shopping Internacional
de Guarulhos, foi detido, é alvo de inquérito policial, sua mãe chorou e
ele acabou cancelando outro rolezinho já marcado por medo de ser ainda mais
massacrado. Ajudante geral de uma empresa, economizou um mês de salário
para comprar a corrente dourada que ostenta no pescoço. Jefferson disse ao
jornal O Globo: “Não seria um protesto, seria uma resposta à opressão. Não
dá para ficar em casa trancado”.

Por esta subversão, ele não será perdoado. Os jovens negros e pobres das
periferias de São Paulo, em vez de se contentarem em trabalhar na
construção civil e em serviços subalternos das empresas de segunda a sexta,
e ficar trancados em casas sem saneamento no fim de semana, querem também
se divertir. Zoar, como dizem. A classe média até aceita que queiram pão,
que queiram geladeira, sente-se mais incomodada quando lotam os aeroportos,
mas se divertir – e nos shoppings? Mais uma frase de Jefferson Luiz: “Se eu
tivesse um quarto só pra mim hoje já seria uma ostentação”. Ele divide um
cômodo na periferia de Guarulhos com oito pessoas.

Neste Natal, os funkeiros da ostentação parecem ter virado os novos
“vândalos”, como são chamados todos os manifestantes que, nos protestos,
não se comportam dentro da etiqueta estabelecida pelas autoridades
instituídas e por parte da mídia. Nas primeiras notícias da imprensa, o
rolezinho do Shopping Internacional de Guarulhos foi tachado de “arrastão”.
Mas não havia arrastão nenhum. O antropólogo Alexandre Barbosa Pereira faz
uma provocação precisa: “Se fosse um grupo numeroso de jovens brancos de
classe média, como aconteceu várias vezes, seria interpretado como um *flash
mob*?”.

Por que os administradores dos shoppings, polícia, parte da mídia e
clientela só conseguem enquadrar um grupo de jovens negros e pobres dentro
de um shopping como “arrastão”? Há várias respostas possíveis. Pereira
propõe uma bastante aguda: “Será que a classe média entende que os jovens
estão ‘roubando’ o direito exclusivo de eles consumirem?”. Seria este o
“roubo” imperdoável, que colocou as forças de repressão na porta dos
shoppings, para impedir a entrada de garotos desarmados que queriam zoar,
dar uns beijos e cobiçar seus objetos de desejo nas vitrines?

Para nos ajudar a pensar sobre os significados do rolezinho e do funk da
ostentação, entrevisto Alexandre Barbosa Pereira nesta coluna. Professor da
Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), ele dedica-se a pesquisar as
manifestações culturais das periferias paulistas. Em seu mestrado,
percorreu o mundo da pichação. No doutorado, mergulhou nas escolas públicas
para compreender o que é “zoar”. Desde 2012, pesquisa o funk da ostentação.
Mesmo que os rolezinhos, pela força da repressão, se encerrem neste Natal,
há muito que precisamos compreender sobre o que dizem seus protagonistas –
e sobre o que a reação violenta contra eles diz da sociedade brasileira

- *O rolezinho aparece ligado ao funk da ostentação. Em que medida há, de
fato, essa ligação?*

*Alexandre Barbosa Pereira –* O funk ostentação é uma releitura paulista do
funk carioca, feita a partir da Baixada Santista e da Região Metropolitana
de São Paulo, na qual as letras passam a ter a seguinte temática: dinheiro,
grifes, carros, bebidas e mulheres. Não se fala mais diretamente de crime,
drogas ou sexo. Os funkeiros dessa vertente começaram a produzir
videoclipes inspirados na estética dos videocliples do gangsta rap
estadunidense. Mas o mais curioso desse movimento é a virada que os jovens
fazem ao mudar a pauta que, até então, era principalmente a criminalidade
para o consumo. As músicas deixam de falar de crime para falar de produtos
que eles querem consumir. Assim, ao invés de cantarem: “Rouba moto, rouba
carro, bandido não anda à pé” (Bonde Sinistro), os funkeiros da vertente
ostentação cantam: “Vida é ter um Hyundai e um hornet, dez mil para gastar,
rolex, juliet. Melhores kits, vários investimentos. Ah como é bom ser o top
do momento” (MC Danado). Deste modo, os MCs começaram a ter mais espaços
para cantar em casas noturnas e passaram a produzir videoclipes cada vez
mais elaborados, com mais de 20 milhões de acessos no YouTube, o que levou
a um sucesso às margens da mídia tradicional. Alguns MCs chegaram a
alcançar grande repercussão entre um segmento do público jovem, sem nunca
ter aparecido na televisão. Vi meninas chorando por MCs em bailes, mesmo
antes de o funk ostentação alcançar o destaque que conseguiu na grande
mídia. Surgiram empresas especializadas na produção de clipes no estilo
ostentação, como a Kondzilla e a Funk TV, claramente inspirados no gangsta
rap, em que os jovens aparecem em carrões e motos, exibindo-se com roupas,
dinheiro e mulheres. Uma reflexão interessante a se fazer é como a mídia
tradicional, que antes execrava o chamado funk proibidão, que falava de
crime, drogas e sexo abertamente, agora começa a elogiar o funk ostentação,
denominando-o até como “funk do bem” e ressaltando a trajetória econômica e
social ascendente dos MCs.

*Pergunta.* Fazendo um parêntese aqui, antes de chegar ao rolezinho, qual é
o caminho para um jovem pobre ter acesso ao consumo de luxo, segundo o
olhar do funk da ostentação? Esta virada que você mencionou...

*Resposta.* Primeiro que esse bem de luxo não é tão de luxo assim, afinal
uma garrafa de uísque a 60 ou 80 Reais não é nenhum absurdo. É sempre
possível comprar uma réplica daqueles óculos escuros que custam mais de mil
reais. Nas casas noturnas de funk que observei, este era o preço. Pensemos
num grupo de pelo menos quatro amigos dividindo o valor da compra. Não sai
tão caro brincar de ostentar. Agora, tem os carros. Estes sim estão fora do
alcance da maioria desses jovens. Mas aí há uma explicação interessante,
que Montanha, um produtor e diretor de videoclipes da Funk TV, em Cidade
Tiradentes, sabiamente me deu. Ele me disse que as novelas já vendiam uma
vida de luxo há muito tempo, só que nelas os ricos eram os que pertenciam
ao mundo de luxo. Nos videoclipes de funk ostentação, são os pobres que
aparecem como um mundo de “riqueza” ou de “luxo”, com carros, mansões,
roupas de marcas mais caras. Os jovens agora poderiam, segundo afirmou
Montanha, ver-se como parte de um mundo de prestígio, daí a grande
identificação. O crime pode ser um caminho para acessar esse mundo de luxo
ou o que esses jovens entendem por um mundo de luxo, mas não é único. Esta
é a lição que muitos MCs de funk têm tentando passar em suas falas na
grande mídia. Eles de certa forma mostram um outro caminho, que, aliás,
sempre esteve presente para esses jovens da periferia: tornar-se famoso
pela música ou pelo futebol. Aliás, esses são caminhos que aparecem como os
mais possíveis para os jovens negros e pobres das periferias do país
imaginarem um futuro de sucesso. Num mundo em que há uma forte divisão
entre trabalho intelectual e manual, com a extrema valorização do primeiro,
o uso do corpo em formas lúdicas como meio de ganhar dinheiro mostra-se
como opção para uma transformação da vida. “Crime, futebol, música,
caralho, eu também não consegui fugir disso aí”, esse é o Negro Drama
cantado pelos Racionais MC’s. Os MCs de funk ostentação estão tentando
dizer que é possível construir uma vida de sucesso pela música. E o que era
ficção, os videoclipes com carros importados emprestados ou alugados, com
dinheiro cenográfico jogado para o ar, começa a tornar-se realidade. Muitos
deles começam a ganhar uma quantidade razoável de dinheiro com os shows.
Acho que a ideia da imaginação como uma força criativa apresenta-se
fortemente no funk ostentação.

Por outro lado, é preciso destacar que masculinidades pautadas pelo desejo
de possuir um automóvel ou uma motocicleta não foram construídas pelo funk
ostentação. Já existia há um tempo. Para os meninos da periferia, possuir
um bom carro, bonito e potente, é uma das metas principais de vida. A posse
do carro é, no imaginário desses jovens, mas também da população em geral,
um indicativo de sucesso econômico e social, garantindo, consequentemente,
sucesso com as mulheres.

Neste caldo cultural, o consumo é cada vez mais exaltado como espaço de
afirmação e de reconhecimento para os jovens. É, inclusive, bastante
complexa a forma como se dá a relação entre criminalidade e consumo no
funk. Na virada que produziram, parece que há o recado de que essas duas
ações sociais podem constituir dois lados de uma mesma moeda. Eles não
deixam de falar do crime. Acabam citando-o indiretamente, como nas músicas
do MC Rodofilho, nas quais ele celebra: “Ai meu deus, como é bom ser vida
loka!”. O importante é entender como o crime e o consumo são pautas
constantes nas relações de sociabilidade dos jovens da periferia. Os mais
pobres também querem que ipads, iphones e automóveis potentes façam parte
de seu mundo social. Ainda preciso observar e refletir mais sobre isso, mas
acho que tanto no caso do crime, como no do consumo temos que atentar mais
para o modo como se dão as relações entre pessoas e coisas. Fico pensando
que a busca de realização apenas pelo consumo envolve sentimentos e
posturas extremas de um egoísmo hedonista e de um profundo desprezo pelos
outros humanos. As mercadorias, ou as coisas almejadas, de certa forma têm
conformado as subjetividades contemporâneas. E nessas novas subjetividades,
pautadas pelo instantâneo e o instável, parece não haver muito espaço para
a solidariedade. Há uma nova tendência na discussão antropológica afirmando
que não podemos entender as coisas apenas como representação ou resultado
do social. Precisamos pensar também em como as coisas fazem as pessoas e
mesmo o social, como as coisas, ou as mercadorias mais desejadas hoje,
motivam tanto um consumismo desenfreado, irracional e egoísta, quanto o
ingresso de jovens na criminalidade. Sempre fico espantado quando vejo as
imagens, em outros países, das pessoas correndo desesperadas para comprar
um novo lançamento de smartphone, videogame ou tablet... Mas não só isso,
tais coisas também motivam e determinam formas de estar, pensar,
relacionar-se e sentir no mundo contemporâneo.

Penso muito nisso quando parte da classe média critica o consumo desses
jovens, dizendo que apenas eles – da classe média que, supostamente,
pagaria os impostos – têm direito a consumir, ou se relacionar com certos
produtos. Será que, desse modo, a classe média entende que os jovens estão
roubando o direito exclusivo de eles consumirem ou de se relacionarem com
esses objetos de prestígio? Direito que, por sua vez, vinha sendo roubado
desses jovens pobres há muito tempo?

Essa crítica pode vir inclusive de certa classe média mais intelectualizada
e mesmo com ideias políticas progressistas, mas que acha que sabe o que é
melhor para os pobres. Aí fazem a crítica, a partir dos seus ipads e
iphones, ao que entendem como um consumo irracional dos mais pobres, que
deveriam poupar ao invés de gastar com produtos que não seriam para o nível
econômico deles. Enfim, tem aí um jogo de perde e ganha e também de busca
de satisfações individuais que envolve o roubo do direito de alguns ao
consumo, que é preciso aprofundar para entendermos melhor essas dinâmicas
contemporâneas. Todos têm o direito a consumir o que quiserem hoje? E seria
viável, hoje, todos consumirem em um alto padrão? Que implicações
ambientais teríamos? E se não é sustentável ou viável que todos consumam em
tamanha intensidade, por que incentivamos tal consumismo? Com isso, o que
quero dizer é que não se pode pensar a relação entre crime e consumo apenas
entre os pobres, mas creio que precisamos também olhar para as classes
médias e altas e para os crimes que, historicamente, têm sido cometidos
contra os mais pobres e o meio ambiente para proteger o consumo dos ricos.

*P.* É neste ponto que os rolezinhos aparecem e criam uma tensão das mais
reveladoras neste Natal?

*R.* Os rolezinhos nos shoppings estão ligados diretamente a esse contexto.
Não sei dizer como surgiram efetivamente, mas me parece que despontaram por
essas novas associações que as redes sociais permitem fazer, de forma que
uma brincadeira possa virar algo sério. De repente, uma convocatória feita
na internet pode levar centenas de jovens a se encontrarem num shopping,
local onde podem ter acesso a esses bens cantados nas músicas, ainda que
apenas por acesso visual. Agora, o que é importante ressaltar é que não
foram os rolezinhos nem o funk ostentação que criaram essa relação de
fascinação com consumo. Esta já existia há muito tempo. Os Racionais, há
mais de dez anos, já cantavam sobre isso, com afirmações como: “Você disse
que era bom e a favela ouviu, lá também tem uísque, red bull, tênis nike e
fuzil” ou “Fartura alegra o sofredor”

*P.* Algumas análises relacionam os rolezinhos a uma ação afirmativa da
juventude negra e pobre, a uma denúncia da opressão e a uma reivindicação
de participação, neste caso no mundo do consumo. Como você analisaria este
fenômeno tão novo?

*R.* Não me arriscaria a dizer que há um movimento político muito claro.
Pode indiretamente constituir-se como uma ação afirmativa da juventude
negra e pobre. Talvez a tensão que se criou com a criminalização desses
jovens, durante os rolezinhos, possa levar a algum tipo de reflexão e ação
política maior, mas é difícil prever. Em um livro intitulado *Cidadania
Insurgente*, (o antropólogo americano) James Holston analisa o surgimento
das periferias urbanas no Brasil, particularmente em São Paulo, apontando a
discriminação contra certas espécies de cidadãos no Brasil. Esse autor
mostra como, historicamente, as formulações de cidadania elaboradas pelos
mais pobres se deram a partir de sua ocupação dos bairros nas periferias
das grandes cidades. Noções e práticas próprias de cidadania que se
produziram, ao mesmo tempo, por meio das experiências de tornar-se
proprietário, de participar de movimentos sociais por melhorias dos bairros
e de ingressar no mercado consumidor. Primeiro se ocupou os bairros, mesmo
sem estrutura mínima. Depois, ocorreram as reivindicações pela legalização
dos terrenos ocupados. E, enfim, vieram as lutas pela chegada da energia
elétrica, saneamento básico e asfalto. Acho sempre muito interessante, em
conversas com lideranças antigas dos bairros periféricos de São Paulo,
observar que elas indicam a chegada do asfalto como o grande marco de
transformação do bairro e a integração deste ao espaço urbano.

Encaro, portanto, ações como estas, dos rolezinhos, do ponto de vista dessa
“cidadania insurgente”, referindo-se a associações de cidadãos que
reivindicam um espaço para si e, assim, se contrapõem ao grande discurso
hegemônico ou, se não se dissociam do discurso hegemônico, ao menos
provocam ruídos nele. Trata-se de uma reivindicação por cidadania,
participação política e direitos que, historicamente, foi feita na marra,
pelos mais pobres, muitas vezes nas costuras entre o legal e o ilegal, e
que começou com a própria ocupação dos bairros na periferia da cidade de
São Paulo, como forma de habitar e sobreviver no mundo urbano. Essa
cidadania não necessariamente se apresenta como resistência, mas pode
também querer, em muitos casos, associar-se ao hegemônico, produzindo
dissonâncias.

O que são o funk ostentação e os rolezinhos se não essa reivindicação dos
jovens mais pobres por maior participação na vida social mais ampla pelo
consumo? Estas ações culturais parecem situar-se nessa lógica, que não
necessariamente se contrapõe ao hegemônico, na medida em que tenta se
afirmar pelo consumo, mas provoca um desconforto, um ruído extremamente
irritante para aqueles que se pautam por um discurso e uma prática de
segregação dos que consideram como seus “outros”.

*P.* Como definir este desconforto? O que são os “outros” neste contexto? E
que papel estes “outros” desempenham?

*R.* O desconforto em ver pobres ocupando um lugar em que não deveriam
estar, como o de consumidores de certos produtos que deveriam ser mais
exclusivos. É um tipo de espanto, que indaga: “Como eles, que não têm
dinheiro, querem consumir produtos que não são para a posição social e
econômica deles?”. Estes “outros” são os considerados “subalternos”. Podem
ser funkeiros, pobres e pardos da periferia, mas podem ser também as
empregadas domésticas, os motoboys, os pichadores, entre outros “outros”,
que muitas vezes são utilizados como bode expiatório das frustrações de uma
parcela considerável da classe média.

Os rolezinhos não são protestos contra o shopping ou o consumo, mas
afirmações de: “Queremos estar no mundo do consumo, nos templos do
consumo”. Entretanto, por serem jovens pobres de bairros periféricos,
negros e pardos em sua maioria, e que ouvem um gênero musical considerado
marginal, eles passam a ser vistos e classificados pela maioria dos
segmentos da sociedade como bandidos ou marginais. Vamos pensar que, na
própria concepção do shopping, não está prevista a presença desse público,
ainda mais em grupo e fazendo barulho. Pergunto-me se fosse em um shopping
mais nobre, com jovens brancos de classe média alta, vestidos como se
espera que um jovem deste estrato social se vista, se a repercussão seria a
mesma, se a criminalização seria a mesma. Talvez fosse considerado apenas
um *flash mob*. Há uma tendência, por parcela considerável da classe média,
da mídia e do poder público de perceber os jovens pobres a partir de três
perspectivas, quase sempre exclusivistas: a do bandido, a da vítima e a do
herói.

*P.* Como funcionam estas três perspectivas – bandido, vítima e herói?

*R. * São muito mais formas de enquadrar esses jovens por aqueles que
querem tutelá-los do que categorias assumidas pelos próprios jovens. Por
isso, são contextuais. Dependendo da situação e dos atores sociais com quem
dialogam, o jovem pode ser entendido a partir de uma dessas categorias. O
pichador, por exemplo, é um agente que pode mobilizar todas essas
classificações, dependendo do contexto e dos interlocutores: a polícia, a
secretaria de cultura, os pesquisadores acadêmicos ou a ONG que quer salvar
os jovens da periferia da violência. No caso do funk, por exemplo, já há
comentários e mesmo textos de pessoas mais politizadas vendo os rolezinhos
como uma ação afirmativa ou extremamente contestatória. Para estes, os
protagonistas dos rolezinhos são vítimas que se tornaram heróis. Outros,
como a polícia, a administração dos shoppings e a clientela, mas também
seus vizinhos, que moram lá nos bairros pobres da periferia, enxergam neles
principalmente vilões e mesmo bandidos.

Jovens como estes que estão nos rolezinhos não necessariamente aceitam se
encaixar nesses rótulos, mas, em alguns casos, podem também se encaixar em
todos eles ao mesmo tempo. Não se pode simplificar um fenômeno como este.
Porém, se pensarmos esse movimento que surge principalmente com o hip hop,
de valorizar a periferia como espaço político e de afirmação positiva, é
possível ver, sim, ainda que em menor intensidade, uma certa ação política.
De dizer: “Somos da quebrada e temos orgulho disso”. Um movimento de
reversão do estigma em marca positiva.

*P.* Mas há, de fato, uma ação consciente, organizada, com um sentido
político prévio? Ou o sentido está sendo construído a partir dos
acontecimentos, o que é igualmente legítimo?

*R.* Olha, sinceramente, é difícil dizer se há um sentido político, direto,
consciente e/ou explícito. Talvez por parte de alguns, mas pelo que vi nas
redes sociais, não da maioria. Se o movimento persistir ou tomar outras
formas, pode ser que tal sentido político fique mais forte. Por enquanto é
difícil analisar esse ponto. O antropólogo (indiano) Arjun Appadurai
analisa há algum tempo as mudanças que se processam no mundo por causa do
avanço das tecnologias de comunicação e de transporte. Segundo este autor,
as pessoas cada vez mais se deslocam no mundo atual, e não apenas
fisicamente, mas também e talvez principalmente pela imaginação, por causa
de meios de comunicação como a televisão e, mais recentemente, pela
internet. Hoje é possível imaginar-se nos mais diferentes lugares do mundo,
mas também em diferentes classes sociais. O que são os videoclipes de funk
da ostentação que não imagens/imaginações que os jovens produzem sobre o
que seria pertencer a outra classe social ou possuir melhores condições
econômicas para o consumo?

Essa imaginação, segundo esse autor, pode constituir-se como um projeto
político compartilhado, mas pode também ser apenas uma fantasia, como algo
individualista e egoísta, sem grandes potenciais políticos. Parece-me que o
funk da ostentação em São Paulo e movimentos como o dos rolezinhos nos
shoppings têm intensamente essas duas potências. Difícil saber se alguma
delas irá prevalecer ou tornar-se hegemônica.

*P.* A escolha da música do MC Daleste, assassinado num show em Campinas,
para o rolezinho promovido no Shopping Internacional de Guarulhos, pode ter
um significado a mais?

*R.* A escolha da música do MC Daleste na entrada dos jovens no shopping de
Guarulhos me pareceu bastante significativa, por vários motivos.
Principalmente, porque a morte dele no palco, cantando funk, de certa forma
construiu um marco para esse funk da ostentação. O seu assassinato acabou
por dar ainda mais visibilidade a esta vertente do funk paulista. MC
Daleste cantava proibidão antes e, assim, essa relação confusa entre crime
e consumo manifesta-se de modo bastante forte no que o MC Daleste
representa. Há no seu próprio nome artístico essa afirmação de um certo
orgulho do lugar de onde vem e de ser da periferia, que tanto o funk quanto
o hip hop expressam. Não é por acaso que ele é “Da Leste”. Lembremos que
Guarulhos também está à leste da Região Metropolitana de São Paulo.

*P.* Hoje, uma parte significativa da geração que se criou nas periferias
com movimentos contestatórios como o hip hop e a literatura periférica ou
marginal tem, pelo funk da ostentação, assumido os valores de consumo das
classes médias e alta. Como você analisa este fenômeno e o insere no
contexto histórico atual do Brasil?

*R.* O que um evento como esse parece evidenciar é, por um lado, esse
anseio por consumir e por afirmar-se pelo consumo que esses jovens vêm
demonstrando já há algum tempo, pelas letras dos funks, mas que também já é
visto no hip hop. Apesar das críticas de certos segmentos do hip hop, não
sei se o funk ostentação rompe com o hip hop mais politizado dos anos 1980
e 1990 ou se oferece uma das muitas possíveis continuidades a esse
movimento cultural. Parece-me que o funk ostentação é uma releitura
paulista, muito influenciada pelo hip hop, do funk carioca. Muitos MCs de
funk eram MCs de hip hop, muitos deles, além dos funks, cantam também raps,
e músicas dos Racionais são ouvidas nos shows. Trechos de letras de músicas
dos Racionais podem ser encontrados facilmente nas letras do funk. Agora, o
fato é que o funk não é tão marcado pela questão política como o hip hop. O
Montanha, de Cidade Tiradentes, disse-me algo interessante, certa vez, de
que, na verdade, o hip hop ofereceria um espaço de expressão política que
faltava aos jovens, já o funk é um espaço de lazer e de sociabilidade.
Parece-me uma reflexão interessante. Não que o hip hop não possa conter
lazer e sociabilidade também, nem o funk, protesto político, mas que as
duas vertentes tendem para um dos polos. O funk, aliás, ganhou esse grande
espaço junto aos jovens das periferias de São Paulo porque, nessa
articulação de um espaço de lazer, configurou-se um espaço para as mulheres
que, no hip hop, era mais difícil. As mulheres são presença fundamental nos
bailes funks. O protagonismo da dança sempre foi delas. Ainda que os
meninos também dancem e as meninas participem cada vez mais como MCs. O hip
hop sempre foi muito mais masculino, da dança ao estilo de se vestir.

*P.* Mas qual é a diferença, na sua opinião, entre a forma como, por
exemplo, os Racionais falam em consumo e os MCs da ostentação falam de
consumo?

*R.* Há aí duas perspectivas. Quando digo que os Racionais já cantavam
isso, quero dizer que eles já identificavam essa necessidade de consumir da
juventude. E de consumir o que eles achavam que era bom, nada de consumo
consciente. Por isso digo que os Racionais já faziam, há mais de dez anos,
uma leitura desse anseio por consumir dos jovens pobres. Por outro lado, há
essa dimensão de movimentos como o dos escritores da periferia, promovendo
produtos da periferia, pela periferia. O funk ostentação começa sem se
preocupar com essa questão diretamente. Ele não tem dor na consciência por
cantar o consumo em suas músicas e aderir ao sistema, por exemplo. Porém,
indiretamente, se acaba chegando a um outro ponto, na medida em que uma
parcela considerável de jovens da periferia passa a possuir algum tipo de
renda com a produção do funk. Sejam os meninos que gravam os videoclipes,
os próprios MCs, mas também empresários, produtores, técnicos e mesmo
alguns MCs tornando-se empreendedores e criando seus próprios negócios.
Como o MC Nego Blue, que observando de perto o sucesso das roupas de grife
entre os jovens, criou a Black Blue, uma loja de roupas cujo símbolo é uma
carpa colorida. Hoje, além de possuir lojas próprias, já vende suas roupas
em lojas multimarcas, ao lado de camisas da Lacoste ou de outras marcas
famosas que os meninos procuram, e por um preço muito parecido. Uma das
empresas que agencia shows de funk em Cidade Tiradentes chama-se justamente
“Nóis por nóis”.

Os rolezinhos parecem dizer: não apenas queremos consumir, mas queremos
ocupar em massa e se divertir aí nos seus shoppings, nos seus ou nos
nossos. É importante perceber também que os shoppings onde os eventos
ocorreram estão em regiões mais periféricas, provavelmente próximos ao
próprio bairro de moradia dos jovens. Por enquanto, eles não têm ido aos
templos maiores do consumo de luxo na cidade, na região dos Jardins, Faria
Lima, Marginal Pinheiros etc. Pode haver aí também um componente de um
termo que surgiu muito forte para mim na pesquisa que fiz em escolas de
ensino médio, no meu doutorado, que é a ideia do “zoar”. Eles querem zoar,
que é chamar a atenção para si e se divertir, namorar, brincar e, se for
preciso, brigar.

*P.* Por que, neste momento, o lazer se impõe como uma reivindicação desta
geração, acima de questões como saúde, educação e transporte de qualidade?

*R.* Acho que não há uma reivindicação política bem formuladinha como
acontecia com o hip hop: queremos mais saúde, educação e lazer. Eles
simplesmente querem estar nos shoppings para zoar e vão. Não há essa
reflexão mais elaborada que o hip hop produz, é mais espontâneo. Esse
talvez possa ser um ponto de distinção. E o próprio funk é, por si só,
lazer e diversão, um dispositivo poderosíssimo para dançar e motivar
paqueras. O zoar pode ser lido como um ato político, mas não me parece
intencional. Acho que cria uma tensão que é política, que é de disputa de
poder pelos espaços da cidade, mas não há um manifesto pela zoeira ou pelos
rolezinhos, como houve, por exemplo, no caso do manifesto da arte
periférica dos escritores.

*P.* Há também um movimento maior para sair dos guetos e ocupar os guetos
da classe média? Em massa e não mais individualmente, como quando um grupo
de rap aparecia numa TV, mesmo sendo a MTV, ou um escritor do movimento
literário marginal ou periférico publicava numa grande editora? Esta é uma
novidade importante?

*R.* Acho que abre, sim, para fora do gueto, do bairro onde se vive, mas
não para muito longe, pois, afinal, os shoppings para os quais eles vão
estão do lado de suas casas. Neste sentido, acho que o hip hop, apesar de
falar mais do gueto, abre-se muito mais para fora do gueto, na medida em
que conquista um espaço importante nas políticas públicas de cultura, por
exemplo.

Claro que esse espaço de lazer é problemático e conflitivo mesmo dentro dos
bairros das periferias onde moram esses jovens. Se entrevistarmos os seus
vizinhos, certamente a maioria vai se posicionar totalmente favorável à
proibição das festas de rua que eles organizam, com som alto que muitas
vezes toma a madrugada toda. Por isso, acho importante não tomar o funk nem
como um movimento libertador, nem como o grande vilão ou o grande movimento
de corrupção da juventude contemporânea, como setores mais moralistas, à
esquerda e à direita, tendem a fazer.

A questão do consumo também me parece problemática. O desejo pelo consumo
sempre existiu. Bem antes do governo Lula, o processo de urbanização induz
a esse apego maior ao consumo. Porém, não dá para se negar que houve, nos
últimos anos, também uma melhora econômica para segmentos que antes estavam
bastante afastados do mercado. Porém, acho que reduzir o sucesso do funk da
ostentação a isso é simplificar demais o movimento e esquecer que ocorreram
e ocorrem movimentos juvenis parecidos em outras partes do mundo, como o
próprio gangsta rap, nos Estados Unidos, no qual os videoclipes se inspiram.

Devemos questionar não a ação dos meninos, mas as relações sociais
fomentadas na contemporaneidade. É preciso conceder aos jovens, e não
apenas aos pobres, mas aos de classe média e alta também, outros espaços de
reconhecimento e de estabelecimento de relações sociais que não sejam
pautados pela afirmação por meio da posse e do consumo de bens. Porque,
afinal, como dizem os Racionais, mais uma vez: “Quem não quer brilhar, quem
não? Mostra quem. Ninguém quer ser coadjuvante de ninguém”. De repente,
para alguns, ter um tênis caro, um smartphone de última geração ou ir ao
shopping para zoar, pode ser uma forma encontrada para tentar brilhar.

*P.* Ao ocupar os shoppings, os adeptos do funk da ostentação estariam
promovendo sua primeira atitude de insurgência contra o sistema, no sentido
de: “Vou ocupar o espaço que me é negado ou onde não me querem”. É isso? Ou
as próprias letras das músicas, interpretadas, em geral, como adesão ao
sistema, já seriam, de fato, uma insurgência, na medida que se apropriam,
simbolicamente, dos valores da elite e da classe média e, agora, com os
rolezinhos, também de seus espaços físicos?

*R.* Sim, acho que essa é a maior irritação da classe média com esses
movimentos. Basta ver os comentários aos videoclipes no YouTube, irritados
com os meninos ostentando e exibindo-se com produtos mais caros, que não
deveriam estar com aqueles meninos, pobre e negros, em sua maioria. Esta é
a principal insurgência que eles provocam. A classe média, de uma maneira
geral, a mais pobre ou a mais rica, a mais ou menos intelectualizada,
irrita-se bastante quando os subalternos compram bens caros, mesmo antes
deles. Já ouvi comentários indignados, do tipo: “Minha empregada comprou
uma televisão de última geração, melhor do que a minha”. Isso tem
antecedentes históricos que parecem refletir até hoje. James Holston, ainda
no livro sobre cidadania insurgente, que citei anteriormente, traz como
exemplo a legislação colonial portuguesa, que proibia aos negros o uso de
joias e artigos considerados finos...

*P.* Parece que os “rolezeiros” dos shoppings estão ocupando o mesmo lugar
simbólico dos “vândalos” nas manifestações, na narrativa feita por parte da
grande mídia e pelas autoridades instituídas. Como você interpreta essa
reação?

*R.* O que me assustou de verdade nessa história toda foram as reações, de
mídia e de polícia, condenando e mandando prender, mesmo em casos em que
disseram que não houve arrastões, mas correrias. Fico questionando quem
provocou a correria: os jovens ou a ação dos seguranças e da polícia?
Eventos como estes revelam também uma faceta complicada e extremamente
preconceituosa da classe média brasileira. Dei uma entrevista curta para o
site de um grande grupo de comunicação e fiquei assustado ao ler os
comentários dos leitores, de um ódio terrível contras os meninos e meninas
que foram aos shoppings, contra os pobres, contra mim, que tive uma fala
dissonante na entrevista, ressaltando a forma preconceituosa com que tal
tema vinha sendo tratado. Ao falarem do evento, algumas palavras utilizadas
como categorias de acusação contra os jovens e as jovens foram bastante
reveladoras do preconceito, e mesmo do racismo, deste segmento social:
“favelados”, “maloqueiros”, “bandidos”, “prostitutas” e “negros”. Nesse
último caso, inclusive, fica evidente o racismo que aparece em muitos
comentários dessa notícia, mas também nas comunidades dos rolezinhos que os
jovens criaram nas redes sociais. Um dos comentários pede para que os
jovens voltem para a África. Isso é muito grave. Revela esse profundo
racismo entranhado em parcela considerável da população. Como se tal
sociedade dissesse, por meio dos representantes dos shoppings, da mídia e
da polícia, brincando um pouco com a questão das manifestações de junho:
“Vocês, pobres, podem consumir, mas ir ao shopping em grandes grupos, só
para zoar e cantar funk, aí já é vandalismo”.

*P.* A classe média é racista?

*R.* O que chamamos de classe média não é um todo homogêneo. É possível
segmentá-la em diferentes níveis e a partir de diferentes contextos, é
possível pensar em uma classe média intelectualizada ou não
intelectualizada. Contudo, parece-me que a divisão mais importante para se
pensar a classe média em São Paulo é a que se dá por critérios
socioeconômicos e espaciais. Há a classe média que está concentrada
principalmente no entorno do eixo central, que vai do Centro a Pinheiros,
passando pela Avenida Paulista e bairros próximos. Esta, em sua maioria,
vive numa bolha e tem poucos contatos com outras classes sociais, com
exceção dos trabalhadores subalternos: porteiros, empregadas domésticas
etc. Para esta, em grande medida, o Shopping Itaquera pode estar mais
distante do que Paris ou Londres.

Porém, há também certa classe média baixa que vive na periferia. Citando
novamente o Holston, ele fala de uma diferenciação que se produziu nas
periferias de São Paulo entre aqueles que compraram seus terrenos, ainda
que por meio de contratos obscuros, e aqueles que ocuparam os espaços da
cidade, formando as favelas. Essa pequena diferença não cria um grande
abismo econômico, mas produz uma profunda diferenciação, por meio do qual
um grupo estigmatiza o outro. Já vi um indivíduo desta classe média da
periferia questionando programas como o bolsa família, porque tinha visto
potes vazios de iogurte no lixo da favela. Este indivíduo afirmava que nem
ele consumia iogurte com tanta frequência, como eles se davam ao direito de
consumir tal produto, que era um luxo, raro, mas sobre o qual ele detinha
certa exclusividade?

A questão do auxílio aos mais pobres, principalmente o bolsa família, é um
forte fator de estigmatização por parte desses diferentes segmentos da
classe média, mas principalmente por parte dessa classe média da periferia.
Estive, recentemente, em uma escola pública próxima a uma grande favela de
São Paulo. Segundo os professores, um dos problemas daquela escola era o
fato de que 90% dos alunos vinham da favela vizinha. E que, hoje, esses
alunos estavam muito acomodados, pois viviam de bolsas e na favela tinham
tudo muito fácil, com a grande quantidade de projetos presentes por lá.
Inclusive, projetos de música, ressaltou um professor. É muito importante
refletir sobre isso, porque esses professores, se não moram na favela, são
vizinhos dela. Mas, ainda assim, permitem-se diferenciar-se dos jovens por
questões muito pequenas. E são estes professores os responsáveis por formar
esses jovens. Será que, com este olhar, são capazes de lutar para que a
escola se torne um espaço de convivência, afirmação e reconhecimento para
os jovens?

*P.* Como você, que tem acompanhado o cotidiano de escolas públicas, em São
Paulo, percebe a educação?

*R.* É necessário pensarmos em uma educação para as diferenças, para que
não caiamos mais na armadilha da intolerância e das análises apressadas e
preconceituosas de setores das elites e das camadas médias, ao se referirem
aos “subalternos”. Lembro-me de um documentário português, que vale a pena
ser assistido, sobre a história de um arrastão que não existiu. Chama-se:
“Era uma vez um arrastão”
(assista<http://brasil.elpais.com/brasil/2013/12/23/opinion/%20http://www.dailymotion.com/video/xe4px_era-uma-vez-um-arrastao_news>
*aqui*). Nele, conta-se do dia em que jovens caboverdianos ou descendentes
de caboverdianos resolveram frequentar a nobre praia de Carcavelos, em
Portugal. A polícia, ao ver a concentração de jovens de origem africana,
assustou-se e resolveu intervir, provocando uma grande correria, que foi
noticiada como arrastão. Mas, de fato, os jovens fugiam da repressão
policial gratuita. Isso talvez nos ensine algo sobre os arrastões que
estamos a criar todo dia, criminalizando jovens pobres cotidianamente.

Quando estive pesquisando em escolas públicas da periferia de São Paulo,
era comum ouvir dos professores que, naquela escola, os alunos eram todos
bandidos ou marginais. O discurso da criminalização é efetivo e poderoso e
condena muita gente ao fracasso escolar e mesmo ao crime. O sociólogo
polonês Zygmunt Bauman, num livro sobre educação e juventude, ressalta a
necessidade cada vez mais premente, na contemporaneidade, de desenvolvermos
a arte de conviver com os estranhos e a diferença. Em especial num mundo no
qual as migrações tendem a aumentar cada vez mais. No nosso caso, não foi
preciso a chegada de estrangeiros para a expressão das mais brutais formas
de preconceito, pois os estrangeiros éramos nós, os brasileiros. Mas
brasileiros que moram muito, muito distante, ainda que vizinhos. Moram em
Guaianazes, Capão Redondo, Grajaú, Cidade Ademar, Cidade Tiradentes, Vila
Brasilândia...

*P.* Em que medida, na sua opinião, os rolezinhos se ligam às manifestações
de junho?

*R.* Acho que não há uma ligação direta. Mas, indiretamente, é possível
perceber a reivindicação comum do uso do espaço público e de quebra das
marcas da segregação. Lembro-me que, antes das manifestações de junho, para
a imprensa conservadora era um tabu ocupar a Avenida Paulista. Os
movimentos sociais mostraram que não apenas não era um tabu, como era um
direito, o direito de ir às ruas e ocupá-las para protestar. Os rolezinhos
não parecem ter uma pauta tão clara, mas também estão, ainda que
indiretamente, dizendo: “Vocês não disseram que era bom consumir? Pois bem,
nós também queremos!”

*P.* Essa ocupação de espaços que supostamente pertenceriam a “outros”,
tanto no caso das manifestações como no caso dos rolezinhos, parece marcar
uma novidade importante. O que está acontecendo?

*R. * Acho que a novidade está aí, mas é difícil dizer o que está
acontecendo ou o que acontecerá. Pode ser apenas um surto – algo parecido
com o que foi a revolta da vacina como reação às propostas políticas
opressoras de reforma sanitária do Rio de Janeiro, por exemplo – ou pode
ser uma nova forma de pensar os espaços públicos e privados nas cidades
brasileiras. Porém, é difícil prever. Os rolezinhos podem ter acabado nesta
semana, por exemplo. E movimentos como os de junho não se repetiram com
tanta intensidade e repercussão. Contudo, o que movimentos como estes
garantem é a possibilidade de se tensionar essa ocupação dos espaços
urbanos, amplamente negada até então.

*P.* Por que este nome, rolezinho? E que significados ele contém?

*R.* Rolezinho é um termo que está diretamente ligado à ideia de lazer. De
sair para se divertir e usufruir da cidade. Os pichadores, com os quais
realizei pesquisa no mestrado, também usam a ideia de rolê, para se
referirem às suas pichações. Com isso estão dizendo que pichar é dar voltas
para conhecer e se apropriar da cidade. Parece que, por este termo,
indiretamente, podemos entender uma reivindicação pelo direito de se
divertir na cidade.

*P.* Divertir-se na cidade não seria um ato de insubordinação para jovens
pobres e negros? Talvez até o maior ato de insubordinação?

*R.* Sim, principalmente numa sociedade em que pobres e negros têm que
trabalhar – e apenas trabalhar – sem reclamar. Lembremos de que a ROTA, no
final do regime militar, atuava nas periferias abordando os moradores e
cobrando-lhes a carteira profissional como prova de que eram trabalhadores
e não vagabundos. Devotados, portanto, ao trabalho e não à diversão. Agora,
claro que esses jovens não estão pensando exatamente nisso. Querem muito
mais é se divertir.

*P.* Como entender este fenômeno, que é, ao mesmo tempo, uma insubordinação
e uma adesão ao sistema?

*R. * Acho que a melhor palavra é paradoxo. O funk da ostentação em São
Paulo é paradoxal: não dá para situá-lo num polo ou noutro, dentro do modo
tradicional de pensar a política. Conservador ou revolucionário? Nenhum dos
dois, mas com possibilidade para os dois ao mesmo tempo.




-- 
carlos palombini
professor de musicologia ufmg
proibidao.org
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