[ANPPOM-Lista] novo artigo sobre a vaia contra Andre mehmari - entrando também na questão do que faz (e deve fazer) a musicologia

Jorge Antunes antunes em unb.br
Sáb Jun 1 09:26:39 BRT 2013


RELATO:

Minha amiga, a professora Marli Guastavini, convidou-me para falar sobre
música a seus alunos. São jovens de escola pública, de 10-12 anos, aqui
perto de Brasília. Pedi a alguns músicos da Orquestra para irem comigo.
Antes apresentou-se uma ótima banda. Junto com a banda se apresentou um
grupo de palhaços muito engraçados e criativos. As crianças adoraram. Na
segunda parte, a pedido da produção, entrei no palco, feliz da vida para
falar de Stockhausen, Pierre Schaeffer, Flo Menezes e da música
eletroacústica em geral. O silêncio era sepulcral. Fiquei impressionado com
a disciplina das crianças. Nem um sussurro, nem um cochicho. Não havia
sistema de som e, assim, não tinha como tocar as gravações que levei para
ilustrar a palestra. A solução foi pedir aos músicos que me acompanhavam,
para tocarem alguma coisa. Sussurrei no ouvido da violinista, pedindo que
ele tocasse qualquer coisa, imitando um som eletrônico. Nossa! Logo me
arrependi: ela começou a fazer uns glissandos ridículos, intermináveis. Ela
tocava com os olhos fechados e, assim, não via meus gestos desesperados
pedindo que parasse. Para minha surpresa, a plateia de crianças irrompeu em
palmas frenéticas. Algumas crianças gritavam: –Bravo! –Bravo! Eu queria
falar pra eles dessa coisa bonita de a Música de não ter fronteiras.
Sussurrei no ouvido do oboista, pedindo que ele tocasse, bem forte, para
encobrir os glissandos do violino. Eu lhe disse: -Toca o solo de oboé do 3º
movimento da 3ª Sinfonia de Beethoven. Ele nunca tinha tocado a obra, mas
conhecia de ouvido o trecho. Foi um desastre. Em vez de lá bequadro ele
tocava lá bemol, deformando totalmente a frase. Mas as crianças adoraram.
Gritos de “bravo”, novamente: muitas palmas. A violinista, ao ouvir aquele
som esquisito, se empolgou e tocou mais forte ainda os glissandos. Fiz
sinal para o oboista, com a mão, pedindo para ele parar. Felizmente ele
tocava de olhos abertos. Repetia continuamente o solo bemolthoviano. Mas
ele entendeu mal meu gesto, e passou a tocar fortíssimo. Abaixei a cabeça e
levei mecanicamente a apresentação até o final. O trompetista, meu amigo,
se ofereceu para salvar a situação. Perguntou-me se poderia tocar um trecho
do concerto de Haydn. Concordei. Uma trompetada forte poderia encobrir a
vergonha sonora que acontecia. Ele começou. O salto fá-sib-fá saiu
afinadíssimo. Mas, antes de ir ao sol, o desgraçado tocava lá bequado, em
vez de lá bemol. Horrível! A plateia explodiu em palmas. As professoras que
assistiam incentivavam os alunos a aplaudirem. Um menino sapeca, de uns 10
anos, fez menção de se levantar para sair. Um tia correu até ele, pegou na
ponta de sua orelha, deu puxãozinho e, vermelha, falou, de modo ríspido,
alguma coisa ao menino. Imediatamente ele voltou a seu lugar, quietinho.
Sei bem que educação é sempre desafio, e que o Brasil encontra-se muito
longe de ter estrutura e pessoal adequado. Meu apelo aqui fica para os
educadores e pais. Não coloquem filhos no mundo se não estão aptos e
dispostos a dar uma formação cuidadosa e crítica a esses novos seres. Estou
farto desse discurso e essa educação que reprime a criança. Refiro-me a
essa educação que enfia nas jovens cabecinhas a ideia de que protestos,
reclamações, posicionamentos críticos, são coisas feias. Tudo, e até mesmo
a merda, deve ser aplaudido. Olho esses jovens como nossos semelhantes que
em poucos anos estarão votando e ocupando importantes cargos e funções, e
fico apavorado. Fico imaginando que a educação de cabresto a que aquelas
crianças se submetem, vai resultar em cidadãos que nunca criticarão coisa
alguma. Domesticados, aplaudirão qualquer mentira, qualquer demagogo,
qualquer lixo cultural imposto pelas grandes gravadoras e pelos meios de
comunicação de massa. De qualquer maneira agradeço a oportunidade de me
apresentar para esses jovens, mesmo tendo sofrido com a passividade deles,
com a tolerância deles, com a falta de senso crítico deles.
-------------- Próxima Parte ----------
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