[ANPPOM-Lista] Sobre o email do Daniel que me tirou do sério

Flavio Barbeitas flateb em gmail.com
Seg Jun 3 08:13:39 BRT 2013


Prezados colegas,

São mesmo raríssimas as ocasiões em que intervenho nessa lista. O texto do Carlos Sandroni, no entanto, praticamente me obriga a agradecer-lhe o brilhantismo de uma síntese que limpa o terreno de mal-entendidos. E nos salva também da instrumentalização meio barulhenta que, infelizmente, é tão comum nessas discussões: tanto por parte de alguns retrógrados que querem os cursos superiores de música eternamente reféns do conservatório, quanto de um ou outro "boi", desavisado, que eventualmente desanda a reproduzir slogans da moda sem ter exata noção do que diz.
Obrigado, Sandroni, por recolocar a discussão definitivamente em outro patamar.

Flavio Barbeitas.



Em 01/06/2013, às 20:14, Carlos Sandroni <carlos.sandroni em gmail.com> escreveu:

> Prezado Daniel, prezados colegas,
> 
> [Esta mensagem ficou enorme, queiram desculpar. Tem até prefácio!]
> 
> PREFÁCIO
> 
> Debate por internet é uma coisa meio complicada. Quem é que relê, corrige ou reescreve seus próprios emails? (Confesso, fiz isso um pouquinho no que se segue... Mas não muito). Acaba saindo uma coisa meio irrefletida, meio rasa. Quando os temas são importantes mesmo, a gente devia é escrever artigos sobre eles, talvez até para postar na internet. Por outro lado, isto de ser "irrefletido" contribui para fazer aparecer temas e idéias que estão meio latentes, pensamentos sérios e importantes, tão importantes que quando pensamos duas vezes acabamos não falando sobre eles. Então nos emails eles aparecem... Aí vão os meus. (Não são tão sérios, mas acho que são suficientemente irrefletidos).
> 
> Daniel, não conheço você nem seu trabalho, portanto o que se segue é exclusivamente baseado no email que você postou, talvez num mau momento, em uma lista pública de uma associação científica.
> 
> MENSAGEM
> 
> Bom, ontem acabou o VI Encontro Nacional da Associação Brasileira de Etnomusicologia, e hoje consigo arrumar um tempinho para pensar um pouco sobre a mensagem do colega Daniel Lemos que me tirou do sério. Pra quem não leu, ela está copiada abaixo, junto com a minha resposta e a tréplica dele. Mas trago aqui o trecho crítico:
> 
> <E já vi muitos professores de Universidade afirmando que a "cultura europeia" deve ser negada e excluída da nossa vivência, com base nas "Teorias Sociais" de dominação das colônias e do imperialismo... a primeira coisa que estes caras deveriam fazer é pedir exoneração (afinal, a Universidade é uma instituição europeia) e ir morar no mato. Só assim pra abandonar a cultura europeia de fato.>
> 
> Perguntei, na minha resposta, quem seriam esses "professores de universidade". Mas não é porque eu quisesse dar "nome aos bois". Era uma "pergunta retórica", como se diz. É evidente que estes bois não existem. O que existe, felizmente, é um questionamento por muitos professores universitários de música sobre o papel do cânone europeu do século XIX (e suas derivações) no ensino formal de música (e por tabela, nos projetos sociais financiados com dinheiro público, como no caso do vídeo com J. Carlos Martins postado aqui por Álvaro Henrique). 
> 
> Este questionamento não precisa, para ser feito, de teorias sociais, nem de teorias sobre colonização e descolonização. Mas muitos escritos de teóricos que falam sobre estes temas podem ajudar, e ajudam, a pensar criticamente sobre assuntos ligados à música e seu ensino. (Por exemplo, as teorias dos sociólogos Antoine Hennion e Tia DeNora sobre socialização musical de crianças ajudariam a entender o imbroglio das vaias ao André Mehmari. Mas isso é assunto pra outro email... um dia). 
> 
> Na sua mensagem, acredito que Daniel está tentando desqualificar, com um fraseado um tanto violento aliás ("esses caras deviam pedir exoneração"...), colegas, entre os quais me incluo, que veem na maioria dos atuais departamentos e escolas universitárias de música brasileiros uma marca ainda exagerada dos conservatórios europeus do século XIX. Tenta também desqualificar a importância de teorias sociais, que provavelmente não leu, para a formação de músicos universitários, o que partindo de um professor universitário me parece lamentável.  
> 
> Vamos a algumas constatações (me corrijam se eu estiver errado):
> 
> Nas cadeiras de história da música há um predomínio absoluto de história da música ocidental, quase nada sobre música africana, quase nada sobre música indígena, quase nada sobre músicas de outras partes do mundo; proporcionalmente pouco sobre história da música brasileira e da música popular internacional, inclusive européia. 
> 
> Nas demais cadeiras teóricas, há um predomínio exagerado de técnica musical em detrimento de reflexão sobre música do ponto de vista da acústica, da psicologia, da sociologia, dos estudos de gênero, da semiótica e de tantos outros enfoques importantes.
> 
> Nos instrumentos oferecidos, há um predomínio desproporcional dos instrumentos de orquestra, e ainda muito pouco de instrumentos eletrônicos da música popular (sintetizadores, samplers, guitarras elétricas etc), e de instrumentos acústicos populares e tradicionais (aliás na maioria europeus, como cavaquinho, sanfona, bandolim, pífanos, bateria; outros nem tão europeus, como percussão popular e tradicional brasileira, flautas indígenas etc). 
> 
> No repertório trabalhado nos cursos de bacharelado em instrumento, e nos respectivos concertos de formatura, até onde percebo há um predomínio quase absoluto de compositores europeus de 1750 a 1900. 
> 
> Estarei exagerando? Tomara que sim. 
> 
> Em todo caso, é claro que quando aponto criticamente para o que me parecem ser fatos evidentes, não é para "banir do nosso convívio" pianos, violinos, contrapontos, nem Bach nem Beethoven nem Brahms. Eu também gosto disso tudo, e da mesma forma gostam todos os etnomusicólogos e sociólogos da música que conheço, no Brasil e fora do Brasil. (Só pra dar alguns exemplos: Arom, Lortat-Jacob e o citado Hennion, que foram meus professores na França, deram muitas provas disso em aula. Nettl deixa isso claro nos seus livros. Nosso Manuel Veiga é pianista clássico de formação, assim como nossa colega portuguesa Salwa Castelo-Branco. Samuel Araújo foi aluno de Guerra-Peixe. Os citados não são neste ponto exceções, mas a regra.)
> 
> Podemos e devemos discutir qual o papel do cânone conservatorial europeu do século XIX no ensino de música no Brasil do século XXI. Minha posição, assim como a de muitos colegas, é a de que este papel está atualmente superdimensionado. Seu redimensionamento está em curso, felizmente. Eu gostaria que andasse mais rápido; mas não é só uma questão de "vontade política", como se diz. Muitos fatores complicados contribuem para esta demora. 
> 
> E não há o menor risco, também felizmente, de que este cânone seja excluído do nosso convívio acadêmico. Continuaremos em qualquer futuro imaginável a ensinar violino e piano, a tocar Beethoven e Mozart. Mas faremos um pouco mais de outras coisas também. (É claro que as proporções exatas sempre serão motivo de controvérsia, mas a vida é assim.) Sobretudo (são meus votos) faremos esta tão sólida tradição clássica européia dialogar um pouco mais com outras musicalidades. Suspeito que isso faria bem a todos os envolvidos.
> 
> O email do Daniel, ou está inventando fantasmas, ou está querendo atacar, através da caricatura, qualquer questionamento sobre o lugar exagerado, nas universidades brasileiras, do referido cânone. É pena, mas aposto na segunda alternativa. 
> 
> O email me lembrou o estudante que falou após uma mesa da qual participei na ANPPOM de João Pessoa ano passado, e que também me tirou do sério. Ele disse algo como: "A ANPPOM é o lugar da música erudita na academia", ou algo parecido. Fiquei chocado, mas após alguns segundos de pasmo consegui responder: "Você está errado. A ANPPOM é muito mais do que isso. Ela é de todas as músicas".
> 
> E se ainda não for, vamos fazê-la assim?
> 
> Saudações,
> Sandroni
> 
> 
> 
> 2013/5/30 Daniel Lemos <dal_lemos em yahoo.com.br>
>> 
>> 
>> Prezado professor Carlos Sandroni,
>> 
>> Não direi o nome dos bois, mas uma coisa posso afirmar: vi isso em eventos da ABEM. Eu definitivamente não concordo com este ponto de vista, mas alerto todos os colegas da ANPPOM para manter seus olhares críticos atentos a isso. Estas pessoas estão ganhando coro, ainda mais em um contexto onde políticas afirmativas estão em alta.
>> 
>> Saudações,
>> 
>> 
>> Daniel Lemos Cerqueira 
>> 
>> http://musica.ufma.br
>> 
>> 
>> 
>> --- Em qui, 30/5/13, Carlos Sandroni <carlos.sandroni em gmail.com> escreveu:
>> 
>> De: Carlos Sandroni <carlos.sandroni em gmail.com>
>> Assunto: Re: [ANPPOM-Lista] novo artigo sobre a vaia contra Andre mehmari
>> Para: "Daniel Lemos" <dal_lemos em yahoo.com.br>
>> Cc: "'anppom-l'" <anppom-l em iar.unicamp.br>
>> Data: Quinta-feira, 30 de Maio de 2013, 1:08
>> 
>> 
>> Prezado Daniel,
>> 
>> Quem são estes colegas que dizem que "a cultura européia deve ser negada da nossa vivência"? E que "Teorias Sociais" são essas, que fundamentariam tão esdrúxula proposição?
>> Como é que numa lista universitária, de uma associação de pesquisa e pós-graduação, se pode fazer atribuições tão levianas?
>> Carlos Sandroni
>> 
>> 
>> 2013/5/29 Daniel Lemos <dal_lemos em yahoo.com.br>
>> 
>> Cara, isso é absurdo... passei por isso também quando morava em Macaé e participei de um concerto beneficente para crianças carentes... isso lá pra 1996... vou fazer meu "coro" também a esse artigo.
>> 
>> É mais um motivo pra acreditar hoje em dia que a Música de Concerto deve ser considerada um tipo de minoria. E já vi muitos professores de Universidade afirmando que a "cultura europeia" deve ser negada e excluída da nossa vivência, com base nas "Teorias Sociais" de dominação das colônias e do imperialismo... a primeira coisa que estes caras deveriam fazer é pedir exoneração (afinal, a Universidade é uma instituição europeia) e ir morar no mato. Só assim pra abandonar a cultura europeia de fato.
>> 
>> Abraço,
>> 
>> Daniel Lemos Cerqueira 
>> 
>> http://musica.ufma.br
>> 
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