[ANPPOM-Lista] "pontos de ruptura no tecido civilizatório"

Carlos Palombini cpalombini em gmail.com
Dom Maio 26 17:32:43 BRT 2013


*José Miguel Wisnik*

*O colunista* escreve aos sábados
 Não ouvir O pianista André Mehmari é um dos maiores fenômenos da música
instrumental surgida no Brasil nos últimos tempos

O pianista André Mehmari é um dos maiores fenômenos da música instrumental
surgida no Brasil nos últimos tempos. Quem acompanha o gênero conhece
certamente a sua técnica espantosa, sua fluência única e sua capacidade de
transitar com sobra entre os estilos da música popular e da música de
concerto. Seu recital recente na Sala São Paulo remetia, sem medo do
paralelo, a uma versão brasileira do paradigma Keith Jarrett, o pianista
que tem o instrumento como uma extensão total do corpo e que improvisa numa
zona sem fronteiras entre as formas que o piano acumulou. Mehmari relata no
Facebook uma experiência recentíssima e a seu modo chocante, que desafia a
nossa capacidade de ler o estado atual das coisas.

Antes de passar a ela, uma observação a mais sobre a comparação entre
Jarrett e Mehmari, marcando agora não a semelhança mas uma diferença
estética, para não deixar a comparação de passagem num plano muito
simplista. Jarrett é angustiado, problematiza o silêncio que o ronda,
envereda pelo fragmento e pelo choque, entre o jazz, a música clássica e os
impasses da arte moderna. Mehmari é de uma musicalidade sem dramas, de
fundo romântico, que jorra nos moldes daquela que a lenda consagrou como
sendo a de Villa-Lobos, que não conhece nem coloca limites à sua
inesgotável capacidade de expressão.

Vamos aos fatos. André foi participar de um espetáculo para 600 crianças de
escolas públicas, com idades entre 10 e 12 anos, num dos teatros municipais
de Campinas, no bairro da Vila Industrial. Acho que o programa se chama
“Ouvir para crescer”, e se iniciava com uma parte em que atores
apresentavam de maneira divertida, caracterizados como palhaços, as
características da linguagem musical. Até aí o roteiro pedagógico-cultural
transcorria sem sustos. Em seguida entrava André, que apresentaria músicas
de Ernesto Nazareth, fazendo as pontes, que ele é mestre em fazer, com
outros repertórios. Ao começar uma explicação sobre a sua participação, e
mesmo antes de tocar, começou a receber vaias e xingamentos pesados,
intensivos, que se multiplicaram e continuaram ao longo de toda a
apresentação.

Mehmari é uma pessoa sem pose, suas apresentações são informais e guiadas
pela vontade sincera de contribuir. A rejeição não se aplicava a eventuais
pompas ou a alguma ostentação de atitude. Imagino que ela se dá, primeiro,
na passagem do tom divertido da primeira parte ao tom mais sério e
concentrado que ele imprimia. Junto com este vêm certamente, misturados na
reação cega da massa de xingamentos, o peso oficial da escola
desacreditada, confundido com o estranhamento de classe social, que o
pianista deve ter encarnado involuntariamente naquela situação ao mesmo
tempo específica e sintomática.

Antes de qualquer outra consideração, é preciso dizer que a reação cega e
coletiva ao outro, informe, não elaborada, dada de antemão e deixando sem
ação os monitores do programa ironicamente intitulado “Ouvir para crescer”,
com o agravante de que vinha de pré-púberes, é um sinal, entre outros, de
pontos de ruptura no tecido civilizatório que passa pela escola. Notícias
recentes, vindas de muitas partes, de violências no espaço escolar, dentro
ou fora da sala de aula, indicam essa espécie de liberação do ataque físico
ou verbal, a colegas ou a professores, como uma prática disseminada da qual
a plateia referida pode ser vista como um corpo de aprendizes já em plena
atividade.

Mais que isso, eles estão imitando procedimentos que estão se dando de
muitas formas e em muitos lugares, não só nas chamadas classes C e D, como
era o caso, mas nas A e B, na escola, nos debates, nas instituições, na
rua. Gozar mais a derrota do time adversário do que a vitória do próprio
time é um dos sintomas dessa síndrome. Quem quiser entender isso precisa
escapar da lamentação moral de classe média sobre a falta de educação nas
famílias. Não que ela não exista, e não seja um dos focos da questão, mas é
que ela faz parte de uma rede de identidades que se constituem
precariamente sobre a relação rivalitária de indivíduos e grupos cuja
afirmação de existência depende da negação frontal do outro. É uma queda do
laço simbólico que supõe a troca e a aceitação da própria fragilidade, das
próprias insuficiências e das próprias contradições.

A cultura alta levada para jovens plateias pobres (no caso, Nazareth!),
pode fazer o papel de ingênua, nesse contexto em que os muros e os fossos
reais e imaginários prevalecem. Mas a questão, para mim, continua sendo a
de ultrapassar os muros e os fossos, nas duas direções.
http://oglobo.globo.com/cultura/nao-ouvir-8492551#ixzz2UQsym1xJ

-- 
carlos palombini
pesquisador visitante, centro de letras e artes, unirio
ufmg.academia.edu/CarlosPalombini
proibidao.org
-------------- Próxima Parte ----------
Um anexo em HTML foi limpo...
URL: <http://www.listas.unicamp.br/pipermail/anppom-l/attachments/20130526/b2696cb7/attachment.html>


Mais detalhes sobre a lista de discussão Anppom-L