[ANPPOM-Lista] RES: [Sonologia-l] a fábrica de papers

jamannis em uol.com.br jamannis em uol.com.br
Dom Set 1 15:07:31 BRT 2013


Grato pela postagem deste artigo.  Saliente-se a NECESSIDADE suscitada,
expressa ao final. Se por um lado PROPOSTAS RAZOAVEIS E COERENTES são
necessárias, por outro há que se garantir ABERTURA DE ESCUTA e, de ambas as
partes, disponibilidade para discussão cooperativa.

[.../...] 

Com o crescimento do sistema universitário e o aumento da pressão social
pelo controle dos gastos com a ciência há uma urgente necessidade de um
modelo de avaliação que permita a supervisão pública e critérios de
distribuição dos recursos. 

Por isso, precisamos desenvolver um sistema de avaliação que esteja de
acordo com os nossos valores: que seja democraticamente construído e
acordado; que seja fundamentalmente qualitativo e realizado por pares; que
avalie os ciclos de pesquisa, respeitando a sazonalidade da divulgação dos
resultados; que compreenda o valor das diferentes modalidades de publicação
(relatórios técnicos, livros, apresentações em congressos etc.); que tenha
parâmetros internos às diferentes áreas; que compreenda as particularidades
das novas áreas (que não têm departamentos e programas, nem revistas e
congressos) e das áreas interdisciplinares (cujos resultados são
apresentados e publicados em campos de pesquisa diferentes). 

Reunir essas preocupações num sistema de avaliação viável não parece um
objetivo inexequível. Se queremos sair da posição de operários obedientes
precisamos abandonar a fábrica e construir uma alternativa a ela. Não é
suficiente reclamar do patrão ao final da jornada.

 

 

De: sonologia-l [mailto:sonologia-l-bounces em listas.unicamp.br] Em nome de
Carlos Palombini
Enviada em: domingo, 1 de setembro de 2013 14:28
Para: anppom-l em iar.unicamp.br; Pesquisadores em Sonologia (Música)
Assunto: [Sonologia-l] a fábrica de papers

 


A fábrica de papers


Pablo Ortellado

A organização do trabalho na universidade está passando por uma profunda
modificação: ela não é mais voltada para a realização de pesquisas
exemplares que disputem o reconhecimento dos pares, mas para a conquista de
metas de produtividade que gerem reconhecimento credencial das instituições
de avaliação. A universidade se parece cada vez menos com um colegiado
aristocrático de cientistas desinteressados e cada vez mais com uma fábrica
de papers: uma fábrica povoada de operários obedientes. O resultado desta
mudança de perfil organizacional não é apenas burocratização e aceleração do
trabalho – ela também gera uma profunda corrupção do sistema de comunicação
científica.

Um mercado concorrencial de papers

A pesquisa universitária se constituiu modernamente segundo o modelo do
colegiado aristocrático de cientistas desinteressados – pesquisadores que,
emancipados da lógica econômica, podiam ociosamente investigar o mundo. Para
isso foram criados os sistemas de estabilidade (as cátedras e os tenures) e
independência acadêmicas (autonomia de pesquisa) que simulavam as condições
sociais da pesquisa aristocrática do século XVIII. Embora houvesse algo de
anacrônico neste modelo, ele parece ter se ajustado bem às estruturas
capitalistas modernas até o fim do boom científico posterior à segunda
guerra mundial. No entanto, junto com a crise do estado de bem-estar, a
“excepcionalidade” organizacional da ciência foi posta em xeque. Não há
ainda consenso sobre o que causou essa mudança. Dardot e Laval, num artigo
célebre, atribuem essa mudança ao neoliberalismo – que não consistiria na
simples desregulamentação econômica, mas na ampliação da lógica da
competição de mercado para todas as esferas da vida. Uma outra explicação
para o fenômeno seria a emergência da economia do conhecimento que teria
aproximado as formas de organização da empresa capitalista e da universidade
num processo que Steven Vallas e Daniel Kleinman chamaram de “convergência
assimétrica”.

Seja qual for a explicação, o princípio orientador da mudança em curso faz a
universidade operar como se fosse uma fábrica produzindo para um mercado
concorrencial. Apesar de não ser uma organização econômica e não vender
papers, a universidade passa a ser pensada no modelo input (trabalho
humano)/ output (papers e patentes) e se orientar por metas objetivas e
crescentes de produtividade. Quando os propositores do modelo são chamados a
se explicar, geralmente expressam dois tipos de preocupação: por um lado,
diminuir a ociosidade e aumentar a “intensidade” da atividade científica
(chamada, sem meias palavras, de “produtividade”) e, por outro, aperfeiçoar
os processos de avaliação administrativa fornecendo parâmetros objetivos de
mensuração do sucesso. 

O objetivo da revolução gerencial na universidade parece ser o de laborizar
a atividade científica, submetendo-a a padrões de gestão empresarial. Mas
por que o modelo econômico-gerencial deveria ser adequado para gerir a
ciência? Em outras palavras, precisamos, os cientistas, ser menos “ociosos”
e ter padrões “quantitativos” de administração e controle?

O quantitativo e o qualitativo

Ao introduzir indicadores quantitativos para controlar o trabalho
científico, o modelo econômico-gerencial enfrenta uma dificuldade: os
resultados da pesquisa científica não têm uma dimensão quantitativa inerente
cuja relevância seja suficiente para a avaliação. O único critério
quantitativo imediato é o número de artigos produzidos. No entanto, esse
indicador isolado é muito impreciso, já que os papers variam em qualidade. O
que faz então é incorporar e quantificar a avaliação qualitativa do sistema
de publicação por pares das revistas científicas: presumindo que a avaliação
da qualidade foi feita pelas revistas científicas, passa-se a quantificar o
número de artigos publicados em revistas com revisão por pares. Mas esse
novo indicador ainda é impreciso já que os periódicos diferem em rigor de
avaliação. Por isso, são utilizados critérios adicionais como os de fator de
impacto (a quantidade média de vezes que um artigo de uma determinada
revista é citado) para ponderar o valor da publicação em cada revista. Ainda
para evitar imprecisões, o sistema restringe a comparação da avaliação
apenas para um mesmo campo científico. O resultado é um sistema de pontos
onde cada artigo é ponderado por um fator relativo à importância da revista.
Gera-se assim uma pontuação que permite hierarquizar todos os cientistas de
um campo científico de acordo com a sua “produtividade”: quanto mais artigos
se publica em revistas importantes, mais produtivo se é. Essa pontuação
fornece parâmetros objetivos para todas as necessidades de seleção do
sistema de administração da ciência: a contratação, a promoção na carreira e
a distribuição das verbas de pesquisa.

Embora evidentemente facilite a administração científica, ao baseá-la em
indicadores, o sistema de avaliação científica econômico-gerencial tem
pressupostos de duvidosa razoabilidade. Poucos cientistas considerariam
razoável comparar e hierarquizar quantitativamente dois artigos sérios de
pares de duas sub-áreas distintas – por exemplo, um artigo de sociologia da
religião e um artigo de sociologia do trabalho. Que tipo de critério não
arbitrário permitiria definir qual artigo é “melhor” e ainda por cima
quantificar esse grau de superioridade qualitativa? Ao hierarquizar as
revistas e conceder a elas pontos distintos, a avaliação faz justamente
isso: diz que um artigo publicado na revista A é “1,7 vezes melhor” que um
artigo publicado na revista B, independente do seu conteúdo. Diz também que
uma pesquisa que gera quatro artigos é “duas vezes melhor” que uma pesquisa
que gera apenas dois. 

Uma vez explicitados os fundamentos lógicos do sistema de avaliação, eles
parecem simplesmente absurdos.

Corrupção da comunicação científica

Ao publicizar as regras, o sistema de avaliação estimula os cientistas a
competirem entre si para maximizar as chances de publicação nas melhores
revistas, criando um mercado concorrencial. Em tese, esta competição levaria
os melhores cientistas a terem seus papers mais frequentemente aceitos pelas
melhores publicações. No entanto, o resultado é uma disputa por produção de
indicadores e não pela qualidade dos artigos. Se forem atores racionais
orientados para maximizar os seus interesses de serem contratados, subirem
na carreira e aumentarem suas verbas de pesquisa, os cientistas não
priorizarão fazer pesquisas de qualidade, mas gerar o maior número de papers
com potencial de serem aceitos em revistas bem avaliadas.

É justamente o desacordo entre os dois objetivos que leva à corrupção do
sistema de comunicação científica. Quando a ciência se orientava para a
disputa por reputação, os cientistas se empenhavam em realizar pesquisas
exemplares que impressionassem o julgamento qualitativo dos pares. Com o
sistema de avaliação econômico-gerencial esse objetivo é subordinado ao de
atender os indicadores de produtividade de pesquisa. Isso não apenas faz com
um tempo excessivo seja dedicado às estratégias de publicação, como estimula
e legitima práticas de comunicação corrompidas: publicar o mesmo argumento
em artigos diferentes; apresentar uma mesma ideia em partes, publicadas em
diferentes artigos; publicar ideias imaturas; co-assinar artigos nos quais a
colaboração foi apenas pontual; etc. 

Num sistema concorrencial com avaliação puramente quantitativa e regras
publicizadas, o purismo de se abster destas práticas corrompidas é apenas
moralismo antieconômico. Do ponto de vista sistêmico, o recurso às práticas
corrompidas está disponível a todos – bons e maus cientistas – e cabe apenas
aos bons se aproveitar mais das oportunidades do que os maus.

Mas esse ainda não é o problema principal. O conjunto do sistema de
comunicação científica se desarticula com a disseminação destas práticas.
Como o sistema premia o número de artigos publicados, o resultado é um
inchaço do número de artigos que faz multiplicar a irrelevância, a repetição
e a fragmentação. Torna-se assim cada vez mais difícil encontrar o artigo
importante no meio do oceano de papers irrelevantes, redundantes e parciais
que nunca deveriam ter sido publicados. Em muitas áreas consolidadas, a
quantidade de artigos é tamanha que já não é mais possível fazer uma revisão
bibliográfica completa. A situação chegou a um ponto tão crítico que um
recente estudo encomendado por gestores de importantes universidades
americanas comparou o processo a uma “corrida armamentista” e recomendou com
urgência a adoção de políticas de “publicação responsável”.

Além da crítica negativa

A avaliação econômico-gerencial não consegue de maneira apropriada separar a
boa da má pesquisa, é incapaz de hierarquizar os cientistas de um mesmo
campo e submete os pesquisadores a um regime de produção acelerado e
orientado para a publicação de artigos supérfluos. Ela coloca os cientistas
na condição de operários e os gestores na condição de patrões impiedosos. 

A comunidade científica, no entanto, tem muitas vezes resistido a essas
investidas contra os seus valores e práticas tradicionais de uma maneira
negativa. Isso permite que os gestores assumam a cômoda posição de dizer que
o modelo econômico-gerencial é o único modelo de avaliação disponível e que
os opositores a ele não dispõem de um paradigma que seja operacional. Com o
crescimento do sistema universitário e o aumento da pressão social pelo
controle dos gastos com a ciência há uma urgente necessidade de um modelo de
avaliação que permita a supervisão pública e critérios de distribuição dos
recursos. 

Por isso, precisamos desenvolver um sistema de avaliação que esteja de
acordo com os nossos valores: que seja democraticamente construído e
acordado; que seja fundamentalmente qualitativo e realizado por pares; que
avalie os ciclos de pesquisa, respeitando a sazonalidade da divulgação dos
resultados; que compreenda o valor das diferentes modalidades de publicação
(relatórios técnicos, livros, apresentações em congressos etc.); que tenha
parâmetros internos às diferentes áreas; que compreenda as particularidades
das novas áreas (que não têm departamentos e programas, nem revistas e
congressos) e das áreas interdisciplinares (cujos resultados são
apresentados e publicados em campos de pesquisa diferentes). 

Reunir essas preocupações num sistema de avaliação viável não parece um
objetivo inexequível. Se queremos sair da posição de operários obedientes
precisamos abandonar a fábrica e construir uma alternativa a ela. Não é
suficente reclamar do patrão ao final da jornada.

Referências: 

Dardot, P.; Laval, C. Néolibéralisme et subjectivation capitaliste. Cités.
v. 1, n. 41, 2010. p. 35-50.

Kleinman, D. L.; Vallas, S. P. Science, capitalism, and the rise of the
‘knowledge worker’: The changing structure of knowledge production in the
United States. Theory and Society. v. 30, n. 4, 2001. p. 451-492.

Kleinman, D. L.; Vallas, S. P. Contradiction, Convergence, and the Knowledge
Economy: The Co-Evolution of Academic and Commercial Biotechnology.
Socio-Economic Review. v. 6, n. 2, 2008. p. 283-311. 

Hartley, D.; Acord, S. K. Peer Review in Academic Promotion and Publishing:
Its Meaning, Locus, and Future. Berkeley: Center for Studies in Higher
Education, 2011.

http://www.gpopai.org/ortellado/2012/01/a-fabrica-de-papers/

-- 

carlos palombini
professor de musicologia ufmg
proibidao.org

ufmg.academia.edu/CarlosPalombini
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<http://scholar.google.com.br/citations?user=YLmXN7AAAAAJ> 

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