[ANPPOM-Lista] a fábrica de papers

Carlos Palombini cpalombini em gmail.com
Dom Set 1 14:27:41 BRT 2013


A fábrica de papersPablo Ortellado

A organização do trabalho na universidade está passando por uma profunda
modificação: ela não é mais voltada para a realização de pesquisas
exemplares que disputem o reconhecimento dos pares, mas para a conquista de
metas de produtividade que gerem reconhecimento credencial das instituições
de avaliação. A universidade se parece cada vez menos com um colegiado
aristocrático de cientistas desinteressados e cada vez mais com uma fábrica
de papers: uma fábrica povoada de operários obedientes. O resultado desta
mudança de perfil organizacional não é apenas burocratização e aceleração
do trabalho – ela também gera uma profunda corrupção do sistema de
comunicação científica.

*Um mercado concorrencial de papers*

A pesquisa universitária se constituiu modernamente segundo o modelo do
colegiado aristocrático de cientistas desinteressados – pesquisadores que,
emancipados da lógica econômica, podiam ociosamente investigar o mundo.
Para isso foram criados os sistemas de estabilidade (as cátedras e os *
tenures*) e independência acadêmicas (autonomia de pesquisa) que simulavam
as condições sociais da pesquisa aristocrática do século XVIII. Embora
houvesse algo de anacrônico neste modelo, ele parece ter se ajustado bem às
estruturas capitalistas modernas até o fim do boom científico posterior à
segunda guerra mundial. No entanto, junto com a crise do estado de
bem-estar, a “excepcionalidade” organizacional da ciência foi posta em
xeque. Não há ainda consenso sobre o que causou essa mudança. Dardot e
Laval, num artigo célebre, atribuem essa mudança ao neoliberalismo – que
não consistiria na simples desregulamentação econômica, mas na ampliação da
lógica da competição de mercado para todas as esferas da vida. Uma outra
explicação para o fenômeno seria a emergência da economia do conhecimento
que teria aproximado as formas de organização da empresa capitalista e da
universidade num processo que Steven Vallas e Daniel Kleinman chamaram de
“convergência assimétrica”.

Seja qual for a explicação, o princípio orientador da mudança em curso faz
a universidade operar como se fosse uma fábrica produzindo para um mercado
concorrencial. Apesar de não ser uma organização econômica e não vender
papers, a universidade passa a ser pensada no modelo *input* (trabalho
humano)/ *output* (papers e patentes) e se orientar por metas objetivas e
crescentes de produtividade. Quando os propositores do modelo são chamados
a se explicar, geralmente expressam dois tipos de preocupação: por um lado,
diminuir a ociosidade e aumentar a “intensidade” da atividade científica
(chamada, sem meias palavras, de “produtividade”) e, por outro, aperfeiçoar
os processos de avaliação administrativa fornecendo parâmetros objetivos de
mensuração do sucesso.

O objetivo da revolução gerencial na universidade parece ser o de laborizar
a atividade científica, submetendo-a a padrões de gestão empresarial. Mas
por que o modelo econômico-gerencial deveria ser adequado para gerir a
ciência? Em outras palavras, precisamos, os cientistas, ser menos “ociosos”
e ter padrões “quantitativos” de administração e controle?

*O quantitativo e o qualitativo*

Ao introduzir indicadores quantitativos para controlar o trabalho
científico, o modelo econômico-gerencial enfrenta uma dificuldade: os
resultados da pesquisa científica não têm uma dimensão quantitativa
inerente cuja relevância seja suficiente para a avaliação. O único critério
quantitativo imediato é o número de artigos produzidos. No entanto, esse
indicador isolado é muito impreciso, já que os papers variam em qualidade.
O que faz então é incorporar e quantificar a avaliação qualitativa do
sistema de publicação por pares das revistas científicas: presumindo que a
avaliação da qualidade foi feita pelas revistas científicas, passa-se a
quantificar o número de artigos publicados em revistas com revisão por
pares. Mas esse novo indicador ainda é impreciso já que os periódicos
diferem em rigor de avaliação. Por isso, são utilizados critérios
adicionais como os de fator de impacto (a quantidade média de vezes que um
artigo de uma determinada revista é citado) para ponderar o valor da
publicação em cada revista. Ainda para evitar imprecisões, o sistema
restringe a comparação da avaliação apenas para um mesmo campo científico.
O resultado é um sistema de pontos onde cada artigo é ponderado por um
fator relativo à importância da revista. Gera-se assim uma pontuação que
permite hierarquizar todos os cientistas de um campo científico de acordo
com a sua “produtividade”: quanto mais artigos se publica em revistas
importantes, mais produtivo se é. Essa pontuação fornece parâmetros
objetivos para todas as necessidades de seleção do sistema de administração
da ciência: a contratação, a promoção na carreira e a distribuição das
verbas de pesquisa.

Embora evidentemente facilite a administração científica, ao baseá-la em
indicadores, o sistema de avaliação científica econômico-gerencial tem
pressupostos de duvidosa razoabilidade. Poucos cientistas considerariam
razoável comparar e hierarquizar quantitativamente dois artigos sérios de
pares de duas sub-áreas distintas – por exemplo, um artigo de sociologia da
religião e um artigo de sociologia do trabalho. Que tipo de critério não
arbitrário permitiria definir qual artigo é “melhor” e ainda por cima
quantificar esse grau de superioridade qualitativa? Ao hierarquizar as
revistas e conceder a elas pontos distintos, a avaliação faz justamente
isso: diz que um artigo publicado na revista A é “1,7 vezes melhor” que um
artigo publicado na revista B, independente do seu conteúdo. Diz também que
uma pesquisa que gera quatro artigos é “duas vezes melhor” que uma pesquisa
que gera apenas dois.

Uma vez explicitados os fundamentos lógicos do sistema de avaliação, eles
parecem simplesmente absurdos.

*Corrupção da comunicação científica*

Ao publicizar as regras, o sistema de avaliação estimula os cientistas a
competirem entre si para maximizar as chances de publicação nas melhores
revistas, criando um mercado concorrencial. Em tese, esta competição
levaria os melhores cientistas a terem seus papers mais frequentemente
aceitos pelas melhores publicações. No entanto, o resultado é uma disputa
por produção de indicadores e não pela qualidade dos artigos. Se forem
atores racionais orientados para maximizar os seus interesses de serem
contratados, subirem na carreira e aumentarem suas verbas de pesquisa, os
cientistas não priorizarão fazer pesquisas de qualidade, mas gerar o maior
número de papers com potencial de serem aceitos em revistas bem avaliadas.

É justamente o desacordo entre os dois objetivos que leva à corrupção do
sistema de comunicação científica. Quando a ciência se orientava para a
disputa por reputação, os cientistas se empenhavam em realizar pesquisas
exemplares que impressionassem o julgamento qualitativo dos pares. Com o
sistema de avaliação econômico-gerencial esse objetivo é subordinado ao de
atender os indicadores de produtividade de pesquisa. Isso não apenas faz
com um tempo excessivo seja dedicado às estratégias de publicação, como
estimula e legitima práticas de comunicação corrompidas: publicar o mesmo
argumento em artigos diferentes; apresentar uma mesma ideia em partes,
publicadas em diferentes artigos; publicar ideias imaturas; co-assinar
artigos nos quais a colaboração foi apenas pontual; etc.

Num sistema concorrencial com avaliação puramente quantitativa e regras
publicizadas, o purismo de se abster destas práticas corrompidas é apenas
moralismo antieconômico. Do ponto de vista sistêmico, o recurso às práticas
corrompidas está disponível a todos – bons e maus cientistas – e cabe
apenas aos bons se aproveitar mais das oportunidades do que os maus.

Mas esse ainda não é o problema principal. O conjunto do sistema de
comunicação científica se desarticula com a disseminação destas práticas.
Como o sistema premia o número de artigos publicados, o resultado é um
inchaço do número de artigos que faz multiplicar a irrelevância, a
repetição e a fragmentação. Torna-se assim cada vez mais difícil encontrar
o artigo importante no meio do oceano de papers irrelevantes, redundantes e
parciais que nunca deveriam ter sido publicados. Em muitas áreas
consolidadas, a quantidade de artigos é tamanha que já não é mais possível
fazer uma revisão bibliográfica completa. A situação chegou a um ponto tão
crítico que um recente estudo encomendado por gestores de importantes
universidades americanas comparou o processo a uma “corrida armamentista” e
recomendou com urgência a adoção de políticas de “publicação responsável”.

*Além da crítica negativa*

A avaliação econômico-gerencial não consegue de maneira apropriada separar
a boa da má pesquisa, é incapaz de hierarquizar os cientistas de um mesmo
campo e submete os pesquisadores a um regime de produção acelerado e
orientado para a publicação de artigos supérfluos. Ela coloca os cientistas
na condição de operários e os gestores na condição de patrões impiedosos.

A comunidade científica, no entanto, tem muitas vezes resistido a essas
investidas contra os seus valores e práticas tradicionais de uma maneira
negativa. Isso permite que os gestores assumam a cômoda posição de dizer
que o modelo econômico-gerencial é o único modelo de avaliação disponível e
que os opositores a ele não dispõem de um paradigma que seja operacional.
Com o crescimento do sistema universitário e o aumento da pressão social
pelo controle dos gastos com a ciência há uma urgente necessidade de um
modelo de avaliação que permita a supervisão pública e critérios de
distribuição dos recursos.

Por isso, precisamos desenvolver um sistema de avaliação que esteja de
acordo com os nossos valores: que seja democraticamente construído e
acordado; que seja fundamentalmente qualitativo e realizado por pares; que
avalie os ciclos de pesquisa, respeitando a sazonalidade da divulgação dos
resultados; que compreenda o valor das diferentes modalidades de publicação
(relatórios técnicos, livros, apresentações em congressos etc.); que tenha
parâmetros internos às diferentes áreas; que compreenda as particularidades
das novas áreas (que não têm departamentos e programas, nem revistas e
congressos) e das áreas interdisciplinares (cujos resultados são
apresentados e publicados em campos de pesquisa diferentes).

Reunir essas preocupações num sistema de avaliação viável não parece um
objetivo inexequível. Se queremos sair da posição de operários obedientes
precisamos abandonar a fábrica e construir uma alternativa a ela. Não é
suficente reclamar do patrão ao final da jornada.

*Referências: *

Dardot, P.; Laval, C. Néolibéralisme et subjectivation capitaliste. *Cités*.
v. 1, n. 41, 2010. p. 35-50.

Kleinman, D. L.; Vallas, S. P. Science, capitalism, and the rise of the
‘knowledge worker’: The changing structure of knowledge production in the
United States. *Theory and Society*. v. 30, n. 4, 2001. p. 451-492.

Kleinman, D. L.; Vallas, S. P. Contradiction, Convergence, and the
Knowledge Economy: The Co-Evolution of Academic and Commercial
Biotechnology. *Socio-Economic Review*. v. 6, n. 2, 2008. p. 283-311.

Hartley, D.; Acord, S. K. *Peer Review in Academic Promotion and
Publishing: Its Meaning, Locus, and Future*. Berkeley: Center for Studies
in Higher Education, 2011.
http://www.gpopai.org/ortellado/2012/01/a-fabrica-de-papers/

-- 
carlos palombini
professor de musicologia ufmg
proibidao.org
ufmg.academia.edu/CarlosPalombini
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