[ANPPOM-Lista] vincent rosenblatt, sem censura

Carlos Palombini cpalombini em gmail.com
Sex Ago 1 01:26:58 BRT 2014


Entrevista concedida à *Gazeta Online*, do Espírito Santo, integralmente
publicada.

Fotógrafo causa polêmica na internet mostrando os bastidores de bailes funk
no Rio de Janeiro



28/07/2014 - 12h57 - Atualizado em 01/08/2014 - 00h05
Autor: Laila Magesk | lmagesk em redegazeta.com.br
 *Vincent Rosenblatt retratou, em fotos, o comportamento e a sensualidade
dos frequentadores *
 Foto: Vincent Rosenblatt
Registro de uma das exposições de Vincent

Ele conheceu o Brasil através de um intercâmbio da Escola Nacional Superior
das Belas Artes de Paris com a Fundação Armando Alvares Penteado de São
Paulo (Faap). Era para o fotógrafo Vincent Rosenblatt ficar três meses no
país, mas acabou prolongando a primeira viagem para nove meses.

Interessado pelo universo brasileiro, em especial pelas favelas do Rio de
Janeiro, ele voltou outras vezes e há 12 anos escolheu morar no Brasil. Nas
últimas semanas, as fotos de Vincent, mostrando os bastidores dos bailes
funk cariocas - como a sensualidade e o comportamento dos frequentadores -,
ganharam destaque nas redes sociais. Elogiado por parte dos internautas e
criticado por outra parcela, em entrevista ao *Gazeta Online*, ele conta
como surgiu o interesse pelo tema e a experiência de conviver tão de perto
com uma realidade pouco conhecida por grande parte da sociedade.

 Foto: Vincent Rosenblatt Baile funk carioca

 Você fez uma exposição com as suas imagens?

O acervo não para de se enriquecer com novas imagens, mês após mês,
ao longo dos anos. Fiz uma primeira exposição no Instituto Oi Futuro, no
Rio, em 2006, onde também organizei mesas-redondas e encontros sobre “Funk
e liberdade de expressão”, com a participação dos mais importantes MCs e
DJs. Em 2011, fiz uma exposição na Maison Européenne de la Photographie, um
espaço muito importante para a fotografia em Paris, minha cidade natal.
Também levei projetores em alguns bailes, para mostrar nas paredes o
conjunto do trabalho. Essas exposições improvisadas atingem o meu público
funkeiro, permitindo que eles possam se ver em grande formato no baile e
ter um *feedback*. Este intercâmbio com os protagonistas do funk carioca
acontece muito nas redes sociais, onde dançarinos, MCs, DJs e donos de
equipes de som utilizam muito as minhas imagens. Dia 5 de setembro, em São
Paulo, será aberta, no antigo Hospital Matarazzo, uma exposição coletiva,
“Made by Brazilian”, organizada pelo curador Marc Pottier, onde terei uma
instalação de projeções. Também desenvolvo o blog www.riobailefunk.net e
tento atualizar a página www.facebook.com/riobailefunk
<https://www.facebook.com/RioBaileFunk>assim como o meu site
www.vincentrosenblatt.com <http://vincentrosenblatt.photoshelter.com/index>,
com as últimas imagens.


De onde surgiu o seu interesse pelos bailes?

Surgiu progressivamente. Quando dava aula para jovens fotógrafos do Morro
Santa Marta eu já passava perto do baile. Eu morava em Santa Teresa e dava
para ouvir os graves da equipe de som no baile do Morro Santo Amaro,
abalando e fazendo tremer até os prédios, do outro lado do vale. E as
letras dos funks eram muito fortes, sejam sexuais ou guerreiras, os
“proibidões”. Esse tremor vindo do baile soava como “trombetas de Jericó”
contemporâneas, uma verdade muito crua, que abala a cidade, sua consciência
burguesa e a sua hipocrisia. Comprei um CD do Mr. Catra, chamado "O Fiel".
Isso foi por volta de 2005. Esse CD era um verdadeiro guia de sobrevivência
do trânsito entre a favela e o asfalto, os mandamentos valem até hoje. Não
resisti e caí de paraquedas na porta de um baile funk na Zona Oeste,
"O Castelo", na favela de Rio das Pedras. Peguei um táxi e fui para lá. Por
sorte, os donos do baile me autorizaram a fotografar e encontrei algo que
viria a me ocupar por muito tempo. Em seguida, “descobri” o Baile do
Boqueirão, perto do Aeroporto Santos Dumont, perto também de onde eu
morava. Na interseção estratégica do Centro com a Zona Sul, em meados dos
anos 2000, o Baile do Boqueirão era uma plataforma de comunicação entre
funkeiros do “asfalto” e das favelas das zonas Norte e Sul. Proprietário da
equipe de som “Curtisom Rio” e organizador do baile nas noites de sábado,
Reginaldo Hermínio, recebia todos os MCs, bondes de dançarinos e outras
equipes de som vindos do Rio de Janeiro inteiro para mostrar a exuberância
da cena. Quando a polícia proibia ou invadia os bailes nas favelas
próximas, o refúgio seguro e a trincheira dos funkeiros era o Boqueirão do
Passeio. Quando parou, toda uma juventude urbana ficou sem se encontrar e
sem dançar. Foi lá que conheci muitos MCs, DJs e bonde de dançarinos. Essas
pessoas que me convidaram para ir em suas respectivas favelas.

 Foto: Vincent Rosenblatt

O fotógrafo apresenta o seu trabalho para os frequentadores do baile
O que você viu que mais chamou a sua atenção?

O funk é maior que a soma dos seus componentes. O que está em jogo vai
muito além da música, de festa e do entretenimento. Num baile de
comunidade, de favela, no seu auge, cada um tem uma função, do frequentador
ao DJ, como num teatro coletivo, onde cada um interpreta o seu papel, sendo
atravessada por conflitos, alianças, rivalidades, solidariedades e também
muita opressão. É como se Shakespeare estivesse sendo reinterpretado à cada
final de semana. Amor e guerra, sexo e traições, batalhas épicas, jogos de
poderes. A quadra do baile é como a assembleia da Grécia antiga, a Ágora,
onde todos os acontecimentos estão em pauta, cantados e dançados em coro,
como no teatro dos primórdios. Começando timidamente a encher pela 1h da
manhã, um bom baile de comunidade atinge o seu auge pelas 3h, 4h, até
chegar numa catarse coletiva. Um morro ou uma favela se expressa ali na sua
diversidade através da dança, dos estilos, dos raps, e recebe “comitivas”
de outras favelas, de outros polos de poder, solidariedade e de cultura,
como frequentadores do asfalto, se o baile tiver fama suficiente. Ali se
tecem muito mais que encontros efêmeros. Os bailes de clube, de asfalto,
usam ou usavam os bailes de favela como referência e espelho inspirador,
uma música para vencer no mundo funk, tem que pegar primeiro na favela,
obter ali a sua base popular. Se os bailes de favela param, os bailes de
asfalto padecem também.

Você fotografava a noite toda ou curtia o baile e quando algo chamava a
atenção registrava?

A tendência é ficar num estado de atenção permanente, para o novo, ao que
pode me surpreender, procurar a galera que dança mais, mas também ficar
atento aos trabalhadores da equipe de som e documentar o espaço do baile e
do local. Tem horas que me deixo carregar pela catarse das batidas, outras
volto a um estado de atenção. Tem noites que uma certa “embriaguez
fotográfica” me faz acreditar que fiz boas imagens, impressão dissipada na
luz do dia. Tem bailes dos quais guardo apenas uma imagem, ou nenhuma, e
outros onde sinto que estou bem inspirado. Mas nunca me arrependo da noite
passada sem dormir, valeu a pena ter vivido mais um baile.

As pessoas não se incomodavam ao virem você as fotografando tão de perto?

Eu já fui tímido, mas a fotografia cura. Eu gosto de ir num corpo a corpo
fotográfico com os funkeiros, deslizar no meio da multidão. Em geral,
fotografo primeiro e mostro a minha foto em seguida para quem está nela,
para não perder a espontaneidade ou o *insight* do momento psicológico dos
retratados. O pior coisa que pode me acontecer é o público achar que sou o
“fotografo da balada” e fazer poses padronizadas com sorrisos forçados e
polegares erguidos. Às vezes, tenho que fazer essas fotos, para todos
esquecerem de mim e ficarem à vontade.

 Foto: Vincent Rosenblatt As fotos de Vincent também são publicados no
exterior

Como você fazia para ter trânsito livre dentro da comunidade?

Cada comunidade tem seus DJs, MCs, produtores culturais, organizadores de
bailes, que gozam de independência e da confiança até do "movimento"
(tráfico). O que esses protagonistas da cultura local fizeram foi apostar a
vida deles no fato que podiam confiar em meu genuíno interesse em mostrar
esse povo funkeiro, que luta para poder continuar a desenvolver a sua
cultura, que sobrevive entre a presença do tráfico de um lado e do outro a
repressão da polícia, e a rejeição de uma grande parte da sociedade. Afinal
é muito mais difícil obter a autorização de fotografar num shopping center
ou num condomínio de luxo do que numa favela carioca. O funk me interessa é
o que ultrapassa as fronteiras do que é legal dizer, quando acrescenta
limites do que temos direito de expressar. Ele trabalha na ponta extrema do
espectro da liberdade de expressão. Está sempre no limite, seja guerreiro,
político ou pornográfico. Acredito que isso tem também a ver com a função
da fotografia, que deve buscar ampliar o espectro do “domínio do visível”.
O que temos direito de fotografar, o que tornamos tema digno de registro e
interesse?

O baile funk é muito relacionado ao uso de drogas e à violência. Como você
vê essas questões?

Quem nunca foi num baile, não entrou na favela e só escuta as letras, pode
ressentir aquilo como um espantalho: é um espelho distorcido, um verbo
apavorante que às vezes o funk “mostra” para o “asfalto” ao entorno. Mas
tudo é bem mais complexo do que parece. A violência cantada serve de
catarses; a violência real, da opressão econômica, da falta de
oportunidades de educação e empregos, de saúde, do racismo, e dos abusos
policiais e da carência de cidadania, todo esse contexto vivido na pele é
muito mais violento do que qualquer letra cantada no baile. A violência dos
traficantes se espelha também nas letras que refletem uma realidade, mas
não são a causa desta. Os proibidões mais marcantes são talvez a mais
autêntica literatura bruta e cruel do que se fez nos pais. É também de
notoriedade mundial que o tráfico e a presença de armas acontece com a
conivência de setores da polícia e do Estado. Não há trafico de drogas e
armas sem que uma parte da renda obtida seja revertida para além da favela.
As drogas e as armas não são produzidas nas favelas. Elas também estão
presentes dias e noites, independente de ter baile funk ou não. Assim foram
tratados os bairros de baixa renda, pela conveniência de interesses dos
mais poderosos. Mas quem tem o poder prefere “atirar no mensageiro” que
tentar resolver o problema. E a liberdade de expressão?

[image: Baile funk carioca]

Já passou por alguma situação embaraçosa?

Eu pude viver, como "turista", o que os moradores das favelas e os
funkeiros vivem na pele desde criança: invasões da polícia para reprimir os
bailes, destruir as equipes de som, bater em inocente. Isso acontece todo
final de semana em algum baile. Aconteceu ontem (a noite do 27 de julho),
no Baile da Galinha na Zona Norte. Eu presenciei duas vezes, em 2009, no
Morro do Chapadão e no Baile da Chatuba, a entrada do caveirão (carro da
polícia) por motivos torpes (como propina que não foi paga ou simples
desejo de destruição e castigo). Lembro do grito dos traficantes: “Vamos
meter o pé, ninguém vai trocar tiro com polícia, aqui está cheio de
crianças”. Assim o público do baile ficou refém das humilhações, rajadas de
balas vindo da PM estalando a poucos metros, de nós, bombas de gás, choro e
terror vividos pelos jovens, e o barulho terrível do blindado se jogando
contra a equipe de som para derrubar e quebrá-la. Roubaram também a mesa do
DJ. Quer dizer, quem quer curtir um baile de favela, arrisca a vida, e isso
demonstra a importância visceral do funk para a identidade da juventude das
favelas, da periferia. Importante ressaltar que esses abusos de poder
acontecem além dos bailes, todos os dias os jornais carregam notícias desta
guerra contra os jovens pobres, negros, moradores de favelas...

O funk e a sensualidade caminham juntos. E muito se fala sobre o sexo
dentro do baile. Já presenciou?

Nunca presenciei. É uma fantasia da classe média sobre a favela. Na favela,
a dignidade, a reputação e a palavra dada são bens valiosos. O controle
social coletivo é muito forte. Ninguém mexe com ninguém. Mulheres sabem que
poderão dançar sem sofrer assédio. Por mais que as letras falam em sexo,
fica no campo simbólico, do simulacro dançado. Como muitas danças da
diáspora afro-americana ou da África. Olham o fervo do Twerk, nos EUA. Quem
"perde a linha" em bailes de clubes no “asfalto”, eventualmente são jovens
de classe média, os mesmos que podem vir na luz do dia comprar droga (mesmo
nas favelas pacificadas) e a consumir na frente das crianças e moradores,
como se os mesmos fossem invisíveis, num ato de desprezo social chocante.
Esses pecam considerando a favela como um espaço onde podem se permitir o
que julgaram impróprio no "asfalto". E mesmo se tivesse sexo nos bailes (o
que nunca presenciei)? A quem apavora a sexualidade das classes populares?
E nas baladas da classe média, nos trios elétricos, o que rola? Pegação
generalizada. Mas se um dia a favela acordasse libertina, isto certamente
seria crime também! Aliás, já vi num baile em favela de Unidade de Polícia
Pacificadora (UPP), autorizado pelo comandante local, ser passada a ordem
de que era proibido aos homens tirar a camisa! Outro sintoma ridículo de
controle social e de uma visão fantasmática da sexualidade dos moradores da
favela.

 Foto: Vincent Rosenblatt Segundo Vincent, um dos últimos grandes bailes
funk dos antes da pacificação

De 2005 a 2014, o que mais mudou no funk carioca?

Como ritmo, o funk carioca não parou de se reinventar. Ao longo de uma
década, o funk se aliou aos maiores DJs e produtores musicais da Europa e
dos EUA, trocou com o Kuduro Angolano, conquistou o Brasil inteiro: foi
re-interpretado como “Treme” no Pará e se reinventou em São Paulo, a partir
da baixada santista (onde numerosos MCs foram também vítimas de chacinas).
Apesar das tentativas recuperações e comercialização de subprodutos mais
brancos e palatáveis para o “asfalto”, a base funkeira sempre soube dar luz
a novos talentos, novas levas de MCs e, DJs, e do lado da dança, os bondes
de meninas dançando o quadradinho, ou o passinho, esse último viajando
virtualmente de uma favela ou de um bairro pro outro pelo intermédio de
vídeos postados no Youtube ou no Facebook, mesmo sem baile para serem
testados, até surgirem as batalhas de passinho. Depois deste giro ao mundo,
o funk carioca acabou, enfim, sendo reconhecido pelos DJs da zona Sul do
Rio de Janeiro, da cena da música eletrônica. Como manifestação
territorial, o baile funk nunca foi tão perseguido e enfraquecido pelo
Estado. O mesmo Estado esquizofrênico que proíbe os bailes nas UPP, e manda
o Bope tacar fogos em equipes de som nas outras favelas, lança agora
editais na Secretaria de Cultura para “bancar” alguns bailes escolhidos a
dedo. Mas os funkeiros nunca precisaram da ajuda do Estado, apenas de poder
viver em paz, e desenvolver a sua cena.

Como estão os bailes após a pacificação?

A entrada das UPPs, a partir de 2008, em vez de libertar os empreendedores
da cultura e da música criado nas favelas, tirando o estigma do tráfico,
coloca na mão do comandante militar local a decisão sobre qual tipo de
evento pode acontecer ou não na favela. Fora uns poucos casos particulares,
a verdadeira face da pacificação foi transformar as favelas em dormitórios,
onde o povo não tem mais o direito de ouvir suas músicas e fazer suas
festas. O que custava colocar alguns poucos policiais e deixar o baile
rolar? É mais uma oportunidade perdida do Estado em relação à cultura local
e à política cultural da favela. O cúmulo do absurdo é você ir em uma boate
da elite de Ipanema, Copacabana ou Barra da Tijuca e tocarem os funks e os
mais fortes dos “proibidões”. Na favela, onde tudo nasceu, a juventude vive
em silêncio quase total e precarização econômica – um verdadeiro apartheid
cultural. Porém o funk resiste, seja na internet, no Youtube, nas rádios
comunitárias, nos espaços fora de alcance das UPPs e mesmo em áreas
dominadas por milícias, onde têm bailes consolidados.

Para você, o que era o funk antes de frequentar os bailes e depois dessa
experiência?

Antes, eu, como muitos, só ouvia as críticas raivosas e preconceituosas de
quem nunca tinha ido a um baile – o que acabou também me motivando em ir
fazer a minha própria opinião. Entrar no mundo funk me fez tecer amizades
na cidade inteira, conhecer a cena e seus artistas, me permitiu descobrir
inúmeras comunidades, bairros, ver a cara real do Rio de Janeiro. Indo no
baile e escutando funk, você sente o pulso da sociedade e as relações entre
gêneros, classes e raças.
http://gazetaonline.globo.com/_conteudo/2014/07/entretenimento/cultura_e_famosos/1493477-fotografo-causa-polemica-na-internet-mostrando-os-bastidores-de-bailes-funk-no-rio-de-janeiro.html

-- 
carlos palombini
professor de musicologia ufmg
professor colaborador ppgm-unirio
orcid.org/0000-0002-4365-7673
-------------- Próxima Parte ----------
Um anexo em HTML foi limpo...
URL: <http://www.listas.unicamp.br/pipermail/anppom-l/attachments/20140801/5ee58739/attachment.html>


Mais detalhes sobre a lista de discussão Anppom-L