[ANPPOM-Lista] la distinction

Carlos Palombini cpalombini em gmail.com
Sex Fev 7 15:13:23 BRST 2014


Acho que este texto responda sua pergunta, Hugo.
Crônica "Os empregados têm carro e andam de avião. Eu estudei tanto pra
quê?"
Se você, a exemplo dos professores que fizeram galhofa sobre homem
"mal-vestido" no aeroporto, já se fez esta pergunta, parabéns: você não
aprendeu nada
 por Matheus Pichonelli<http://www.cartacapital.com.br/autores/Matheus-Pichonelli>--
publicado 07/02/2014 13:20,  última modificação 07/02/2014 14:40

O condômino é, antes de tudo, um especialista no tempo. Quando se encontra
com seus pares, desanda a falar do calor, da seca, da chuva, do ano que
passou voando e da semana que parece não ter fim. À primeira vista, é um
sujeito civilizado e cordato em sua batalha contra os segundos
insuportáveis de uma viagem sem assunto no elevador. Mas tente levantar
qualquer questão que não seja a temperatura e você entende o que moveu
todas as guerras de todas as sociedades em todos os períodos históricos.
Experimente. Reúna dois ou mais condôminos diante de uma mesma questão e
faça o teste. Pode ser sobre um vazamento. Uma goteira. Uma reforma
inesperada. Uma festa. E sua reunião de condomínio será a prova de que a
humanidade não deu certo.

Dia desses, um amigo voltou desolado de uma reunião do gênero e resolveu
desabafar no Facebook: "Ontem, na assembleia de condomínio, tinha gente
'revoltada' porque a lavadeira comprou um carro. 'Ganha muito' e 'pra quê
eu fiz faculdade' foram alguns dos comentários. Um dos condôminos queria
proibir que ela estacionasse o carro dentro do prédio, mesmo informado que
a funcionária paga aluguel da vaga a um dos proprietários".

Mais à frente, ele contava como a moça havia se transformado na peça
central de um esforço fiscal. Seu carro-ostentação era a prova de que havia
margem para cortar custos pela folha de pagamento, a começar por seu
emprego. A ideia era baratear a taxa de condomínio em 20 reais por
apartamento.

Sem que se perceba, reuniões como esta dizem mais sobre nossa tragédia
humana do que se imagina. A do Brasil é enraizada, incolor e ofuscada por
um senso comum segundo o qual tudo o que acontece de ruim no mundo está em
Brasília, em seus políticos, em seus acordos e seus arranjos. Sentados
neste discurso, de que a fonte do mal é sempre a figura distante, quase
desmaterializada, reproduzimos uma indigência humana e moral da qual
fazemos parte e nem nos damos conta.

Dias atrás, outro amigo, nascido na Colômbia, me contava um fato que lhe
chamava a atenção ao chegar ao Brasil. Aqui, dizia ele, as pessoas fazem
festa pelo fato de entrarem em uma faculdade. O que seria o começo da
caminhada, em condições normais de pressão e temperatura, é tratado muitas
vezes como fim da linha pela cultura local da distinção. O ritual de
passagem, da festa dos bixos aos carros presenteados como prêmios aos
filhos *campeões*, há uma mensagem quase cifrada: "você conseguiu: venceu a
corrida principal, o funil social chamado vestibular, e não tem mais nada a
provar para ninguém. Pode morrer em paz".

Não importa se, muitas e tantas vezes, o curso é ruim. Se o professor é
picareta. Se não há critério pedagógico. Se não é preciso ler duas linhas
de texto para passar na prova. Ou se a prova é mera formalidade.

O sujeito tem motivos para comemorar quando entra em uma faculdade no
Brasil porque, com um diploma debaixo do braço, passará automaticamente a
pertencer a uma casta superior. Uma casta com privilégios inclusive se for
preso. Por isso comemora, mesmo que saia do curso com a mesma bagagem que
entrou e com a mesma condição que nasceu, a de indigente intelectual,
insensível socialmente, sem uma visão minimamente crítica ou sofisticada
sobre a sua realidade e seus conflitos. É por isso que existe tanto babeta
com ensino superior e especialização. Tanto médico que não sabe operar.
Tanto advogado que não sabe escrever. Tanto psicólogo que não conhece
Freud. Tanto jornalista que não lê jornal.

Função social? Vocação? Autoconhecimento? Extensão? Responsabilidade sobre
o meio? Conta outra. Com raras e honrosas exceções, o ensino superior no
Brasil cumpre uma função social invisível: garantir um selo de distinção.

Por isso comemora-se também à saída da faculdade. Já vi, por exemplo,
coordenador de curso gritar, em dia de formatura, como líder de torcida em
dia de jogo: "vocês, formandos, são privilegiados. Venceram na vida. Fazem
parte de uma parcela minoritária e privilegiada da população"; em tempo: a
formatura de um curso de odontologia, e ninguém ali sequer levantou a
possibilidade de que a batalha só seria ganha quando deixássemos de ser um
país em que ter dente é, por si, um privilégio.

Por trás desse discurso está uma lógica perversa de dominação. Uma lógica
que permite colocar os trabalhadores braçais em seu devido lugar. Por aqui,
não nos satisfazemos em contratar serviços que não queremos fazer, como
lavar, passar, enxugar o chão, lavar a privada, pintar as unhas ou dar
banho em nossos filhos: aproveitamos até as últimas conseqüências o gosto
de dizer "estou te pagando e enquanto estou pagando eu mando e você
obedece". Para que chamar a atenção do garçom com discrição se eu posso
fazer um escarcéu se pedi batata-fria e ele me entregou mandioca frita? Ao
lembrá-lo de que é ele quem serve, me lembro, e lembro a todos, que estudei
e trabalhei para sentar em uma mesa de restaurante e, portanto, MEREÇO ser
servido. Não é só uma prestação de serviço: é um teatro sobre posições de
domínio. Pobre o país cujo diploma serve, na maioria dos casos, para
corroborar estas posições.

Por isso o discurso ouvido por meu amigo em seu condomínio é ainda uma
praga: a praga da ignorância instruída. Por isso as pessoas se incomodam
quando a lavadora, ou o porteiro, ou o garçom, "invade" espaços antes
cativos. Como uma vaga na garagem de prédio. Ou a universidade. Ou os
aeroportos.

Neste caldo cultural, nada pode ser mais sintomático da nossa falência do
que o episódio da professora que postou fotos de um "popular" no saguão do
aeroporto e se questionaram no Facebook: "Viramos uma rodoviária? Cadê o
glamour?". (Sim, porque voar, no Brasil, também é, ou era, mais do que se
deslocar ao ar de um local a outro: é lembrar os que rastejam por rodovias
quem pode e quem não pode pagar para andar de avião).

Esses exemplos mostram que, por aqui, pobre pode até ocupar espaços cativos
(não sem nossos protestos), mas nosso diploma e nosso senso de distinção
nos autorizam a galhofa: "lembre-se, você não é um de nós". Triste que este
discurso tenha sido absorvido por quem deveria ter como missão a detonação,
pela base e pela educação, dos resquícios de uma tragédia histórica
construída com o caldo da ignorância, do privilégio e da exclusão.
-- 
carlos palombini
professor de musicologia ufmg
proibidao.org
ufmg.academia.edu/CarlosPalombini
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