[ANPPOM-Lista] Truques da escrita: para começar e terminar teses, livros e artigos (resenha)

Carlos Palombini cpalombini em gmail.com
Seg Abr 25 12:51:42 BRT 2016


Resenha do livro de Howard Becker por Cleverton Barros de Lima.

A atividade da escrita acadêmica é a temática central do livro *Truques da
escrita,* de Howard Saul Becker. O autor utiliza, numa reflexão sociológica
acurada, a realidade social da produção textual, desde o momento de
formação dos discentes nos cursos de graduação até o ponto final, na fase
profissional. Exatamente quando o pesquisador inclui, entre as suas
principais tarefas e obrigações acadêmicas, a escrita de artigos, capítulos
e livros.

Howard S. Becker é um conhecido sociólogo americano de obras como *Uma
teoria da ação coletiva* (1977); *Outsiders*: *estudos da sociologia dos
desvios* (2008); *Falando da sociedade*(2009); e *Segredos e truques da
pesquisa* (2007), publicadas pela mesma editora do livro desta resenha.
Graduado pela University of Chicago, Becker tem dado relevante contribuição
ao debate no âmbito da sociologia da arte, do desvio e da música.
Recentemente, publicou o livro *What About Mozart? What About Murder?*(2015),
revelando assim uma das referências das Ciências Sociais.

O livro *Truques da escrita* tem por escopo a reflexão sobre as condições
sociais da escrita, distribuídas nos seus dez capítulos. No prefácio à
edição brasileira, o autor refere-se à tradição de sociólogos brasileiros
do passado, dos quais ele admira, em especial a escrita de Sérgio Buarque
de Holanda e Antonio Candido. Becker percebe uma tradição instigante no
aspecto da narrativa nas obras dos autores de*Raízes do Brasil* e *Os
Parceiros do Rio Bonito*. De certo, a produção intelectual destes
escritores conferiu ao debate sociológico a respeito do Brasil um grau
inegável de sofisticação e refinamento. E neste aspecto, a escrita, não só
deles, mas de obras como *Casa grande e senzala* de Gilberto Freyre, aponta
para uma tradição sociológica frutífera, em que a tessitura da linguagem
tornou-se um ponto emblemático.

Mas o objeto do livro de Becker assinala outro sentido do processo da
escrita, ou seja, o início da formação dos muitos estudantes de graduação
de ciências humanas e sociais que encontram inúmeros obstáculos, muitas
vezes vistos como intransponíveis, na produção de textos acadêmicos. As
dificuldades aumentam gradativamente, caso o estudante invista na
pós-graduação. Nesse sentido, Becker observa os esforços que, com
frequência, deixam os estudantes desconsolados, melhor dizendo, desolados
em função do temor de mostrar aos colegas os rascunhos dos textos que estão
escrevendo.

A ideia central de Howard Becker é pensar sociologicamente as dificuldades
da escrita dos estudantes, pois são fruto não das deficiências individuais,
mas dos "problemas de organização social" (:8), ou seja, a resposta para o
fraco desempenho na escrita acadêmica resulta não da inépcia pessoal, mas
da "organização social" que estaria forjando as barreiras para os
estudantes. Então, a tese importante deste sociólogo é a de que as pistas
para a ineficiência na escrita requerem observação do ambiente no qual
estamos inseridos, pois ele traz as barreiras que transformam a escrita
numa obra de poucos escolhidos. Ao investigar as peculiaridades desse
problema social, ele observa que as dificuldades surgem quando temos receio
de expor nossos textos, pois supostamente seríamos ridicularizados. O
escárnio dos leitores, seja o professor ou o colega, suscita nos alunos os
temores que paralisam o aprimoramento do primeiro rascunho.

Isto posto, Becker acrescenta que o isolamento é a regra geral da produção
acadêmica. Ele alega que escondemos os nossos textos e, assim, observa-se
quase tão somente o produto final publicado pelo professor, sem nenhuma
ideia clara, ou melhor, menos misteriosa, dos processos e dos rituais de
escrita vividos até o resultado final. Desta maneira, o problema da escrita
entre os estudantes universitários seria resultado daquilo que ele denomina
"privacidade socialmente organizada". Em outras palavras, mesmo que todos
passem pelos mesmos problemas na produção do texto, segundo ele, nós nos
escondemos e não sabemos das dificuldades que até mesmo um pesquisador
sênior vivencia.

Ainda de acordo com o autor, existe uma solução para os entraves da
escrita, pois a dificuldade "não é irremediável". Ele completa a sua
instrução: "E que isso sirva de modelo para todos os seus problemas de
redação! Encontre a situação que gera seu problema e mude-a" (:10). A
tarefa sugerida é pensar nas fases da produção da escrita, naquilo que
"está travando" e, em seguida, reescrever a nova versão. O texto seria,
segundo o sociólogo, resultado dos esforços empreendidos para aprimorá-lo,
desde a produção do primeiro rascunho à fase da revisão e, por último, não
menos importante, à da reescrita.

Os truques foram ensinados no seminário de redação que Becker ministrou
para os discentes de pós-graduação em Sociologia na Northwestern
University. Ele aproveitou a oportunidade para exercer os papéis de
professor particular e terapeuta de várias pessoas com os mesmos problemas
na escrita. E nesta experiência, rascunhou as primeiras análises,
publicadas num artigo que ele reuniu no primeiro capítulo deste livro. A
reação às ideias de seu trabalho gerou o interesse de um público bem maior.
O autor relata, por exemplo, receber cartas emotivas que trazem relatos de
como a leitura do artigo foi importante para a retomada da escrita. Alguns
questionaram o fato de alguém descrever em detalhes os medos e as
apreensões de tantos desconhecidos.

É importante o relato da professora Pamela Richards, socióloga que ensina
na Universidade da Flórida. Parte do capítulo intitulado "Riscos" foi
escrito também por ela, ou seja, a reflexão de Becker retoma o fato de que
as dificuldades de escrita não se restringem aos iniciantes. A socióloga,
então, discorre sobre a questão dos riscos que envolvem o trabalho da
escrita acadêmica. O problema apontado por ela está relacionado ao medo que
desenvolvemos quando outras pessoas avaliam os nossos primeiros rascunhos.
Daí o aspecto do isolamento social garantir, de certa forma, podermos
correr os riscos que o trabalho da escrita exige. Trabalhar num novo
projeto pode gerar um padrão angustiante. O método de Becker para que
Richards superasse os bloqueios iniciais foi escrever de forma contínua as
primeiras impressões o mais rápido possível. Ele prescreveu inicialmente
que ela redigisse as primeiras ideias que lhe viessem à cabeça, sem uma
censura preliminar, ou até mesmo se valesse da consulta às suas anotações,
bibliografia e notas de campo. Liberar o fluxo da escrita seria, então, o
truque deste método de produção textual, que tem por finalidade restaurar a
confiança na percepção; além disso, a crença no entendimento de que o
primeiro rascunho guarda a ideia de um melhoramento futuro. Assim, quando
houvesse algum bloqueio ou dificuldade, o truque seria escrever "empaquei",
e seguir em frente com outro tópico.

Algum tempo sem dar notícias, Pamela Richards escreveu para Howard Becker.
Ela havia alugado uma cabana na floresta com o intuito de escrever o
primeiro rascunho. De antemão, acreditou ser um "risco" pôr em prática o
conselho do colega, mesmo assim optou pelo "risco". Por isso, a questão
central, nas palavras de Richards, estava no centro dos seus temores. Na
realidade, o risco, para a socióloga, era se "expor ao escrutínio" dos
leitores. A argumentação do livro de Becker sugere exatamente a solução
prática para o risco com o qual estamos envolvidos socialmente. Temores
como os de Richards descrevem um quadro panorâmico das condições sociais da
produção da escrita acadêmica. As exigências dos pares, os rigores e os
temores pessoais são entraves para o contexto de risco.

O livro de Becker aborda ainda o aspecto da produção da escrita acadêmica
profissional, e só por isso já é um exercício sociológico de pensar a
realidade social da produção textual. Pensar os problemas relacionados a
como escrever na academia não pode ser entendido como restrito aos
sociólogos. A tarefa é refletir a respeito das condições da escrita que
isola, e que direciona a discussão da produção acadêmica somente ao produto
acabado, ou seja, não são visíveis os dilemas e os impasses do risco de
escrever. Neste quesito, o livro *Truques da Escrita* levanta as questões
referente não só à comunicação científica, mas também às condições sociais
de organização da vida acadêmica, numa perspectiva instigante. O problema
de escrever de forma precária, na acepção do sociólogo, não se restringe
aos estudantes, mas abrange os ritos acadêmicos que consolidam o
desenvolvimento da produção escrita num viés isolado e, em certo grau, numa
sabotagem coletiva.

Por isso, a relevância de uma obra como *Truques da Escrita* no período de
expansão da cultura acadêmica no Brasil, o que se dá exatamente pelos novos
caminhos de organização acadêmica, em que é preciso refletir mais a
respeito das condições sociais da comunicação científica. A ideia de
trabalhar o texto entendendo os níveis de melhoramento dos rascunhos
consagra as várias operações necessárias para compreender o desenvolvimento
da redação. Neste sentido, o livro revela os impasses da tarefa do trabalho
acadêmico, que necessariamente precisa romper práticas isolacionistas para
então construir um modelo social de produção acadêmica.

O grande mérito deste livro é trazer para o debate a responsabilidade da
universidade em valorizar o trabalho acadêmico numa perspectiva
colaborativa. A experiência de seminários de redação entre os acadêmicos
constitui uma preocupação quanto à relevância da escrita para o
desenvolvimento profissional. Comunicar as reflexões de pesquisa é uma das
tarefas elementares da Universidade e, neste sentido, Becker salientou a
necessidade de auxiliar os graduandos no início de sua formação. Assim, a
importância da escrita acadêmica é um dos indicadores da amplitude do
debate educacional, especialmente quando este chega ao leitor com
sofisticação e estilo.
http://goo.gl/y5hig1

-- 
carlos palombini, ph.d. (dunelm)
professor de musicologia ufmg
professor colaborador ppgm-unirio
www.proibidao.org
ufmg.academia.edu/CarlosPalombini <http://goo.gl/KMV98I>
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