[ANPPOM-Lista] Érica Peçanha: por mais solidariedade na vida acadêmica

Carlos Palombini cpalombini em gmail.com
Seg Jul 18 00:19:21 BRT 2016


Foi divulgado ontem no Facebook como postagem pública. Achei pertinente:

https://goo.gl/PSbSAQ

Ao longo da pós-graduação, somos pouco encorajados a problematizar
competições, rejeições, bloqueios de escrita, desentendimentos, relações
com docentes e colegas, pressões e frustrações – sejam de ordem pessoal,
teórica ou profissional – em espaços formais da chamada academia. Vez ou
outra, dividimos essas questões com aqueles de quem nos tornamos mais
íntimos nos encontros de bar, quando o álcool nos deixa relaxados o
suficiente para fazer desses mais do que momentos que também fazem parte da
sociabilidade acadêmica.

O que vem depois da defesa de uma tese não é menos desestimulante: as
reduzidas chances de se publicar um livro com os resultados de pesquisa sem
ter que se responsabilizar pelos custos da edição, os concursos docentes
que se distanciam dos critérios objetivos e decisões que pareçam justas, os
poucos postos de trabalho compatíveis com o nível de formação alcançado, as
possibilidades de circulação que minguam quando não se tem mais um vínculo
institucional. Com o agravante que os encontros com docentes e colegas
serão muito menos frequentes, e as possibilidades de se discutir essas
outras dificuldades também, mesmo que na mesa de bar.

Eu, por exemplo, sempre tive problemas para escrever e isso gerou momentos
de muita tristeza, especialmente quando não consegui cumprir prazos e tive
receio de ser taxada de irresponsável ou incapaz. E tristeza gera
impotência, improdutividade, sensação de não poder dar conta de demandas
específicas que são esperadas numa trajetória bem-sucedida. Mas fui
percebendo que isso não era uma exclusividade ou tinha a ver somente com
questões subjetivas, um tipo de formação recebida no nível médio/superior e
possibilidades de construção de um repertório cultural (que, certamente,
tem seus efeitos...), mas com o próprio modo como o sistema acadêmico é
construído (permeado por pressões e competições que sequer vão significar
muito dinheiro no final do arco-íris...). E posso dizer – e digo sempre que
vejo um/a colega nessa situação – que não conheci ninguém, próximo a mim,
que não tivesse caído no choro, se sentido deprimido, incapaz ou muito
inseguro, principalmente nos momentos finais de escrita da dissertação/tese
ou próximos à defesa: do colega de origem popular que tinha medo que seu
“fracasso” frustrasse toda a família, passando por quem era tida como
fodástica desde o primeiro encontro do curso e pelo profissional
estabelecido que foi cursar a pós-graduação na maturidade, até chegar aos
bem-nascidos, que frequentaram boas instituições e não têm a menor noção de
como as dificuldades materiais podem impactar na incorporação de certo
ethos acadêmico ou na permanência nesse contexto.

Eu também sofro muito com a falta de trabalho desde a defesa do doutorado,
não apenas porque isso tem implicações práticas bastante óbvias, mas porque
a intermitência nas oportunidades gera dúvidas com relação às escolhas que
fiz, à dedicação que posso ter e às ambições que devo alimentar. Sei que as
possibilidades nas ciências humanas sempre foram mais limitadas, que o país
formou mais doutores do que tem conseguido absorver (e isso é um problema
do mercado, não da expansão das matrículas...) e que não sou a única a ter
que lidar com esse tipo de adversidade; pelo contrário, não conheço um/a
colega mais próximo e contemporâneo a mim que tenha passado no primeiro
concurso docente que prestou, ou que não tenha acionado sua rede de
contatos para manter-se no jogo profissional.

Mas quero lembrar que, nesse jogo, o os variados capitais (econômico,
social e simbólico) fazem diferença, assim como os marcadores de classe,
raça/cor e gênero, já que é muito mais difícil equilibrar o projeto de ser
intelectual e/ou pesquisador/a, mantendo a participação em eventos e a
produção de textos que somam linhas Plataforma Lattes, com a pungente
questão da sobrevivência, quando não se tem parentes familiarizados com as
agruras da vida acadêmica e que possam oferecer suportes financeiros e/ou
emocionais, quando se é negro/a e são escassas as referências e redes de
relações nesse campo, quando se é mãe e as crianças podem ser vistas como
empecilhos para a dedicação ao trabalho, entre tantas outras situações.
Ontem tive uma conversa catártica de mais de três horas com uma colega
sobre esses assuntos, que me fez entender o quão fundamental é falar sobre
as especificidades e os problemas que vivenciamos na vida acadêmica, assim
como saber reconhecer quais problemas devem ser contextualizados dentro do
sistema (acadêmico e social) e quais devem ser associados à nossa
personalidade e talentos. Mais do que isso, ao utilizar-se do lugar que ela
ocupa agora para me oferecer um trabalho e disponibilizar o pagamento
adiantado por compreender que isso se fazia urgente, essa colega demonstrou
o quanto é importante sermos solidários a partir da experiência que
adquirimos ou dos lugares de poder que passamos a ocupar.

Compartilhar textos que não usamos mais, divulgar processos seletivos e
ensinar artimanhas para a aprovação, ajudar na escrita de um projeto ou no
contato com um/a docente, juntar pessoas em grupos estudos de idiomas podem
ser determinantes para que a academia seja cada vez menos uma bolha
elitista. Assim como recomendar currículos, compartilhar editais e
experiências de concursos acadêmicos, convidar ex-colegas de pós-graduação
para integrar publicações e equipes de trabalho ou para apresentar suas
pesquisas durante um curso ou evento, mesmo que esses/as colegas não tenham
vínculo institucional, pode ser encorajador para que quem furou a bolha não
desista, ou para que a experiência acadêmica não seja fonte de adoecimento
ou de abandono de aspirações.

Estou falando de discussão e compartilhamento de vivências acadêmicas para
que possamos construir estratégias de enfrentamento das adversidades, não
estou falando em transformar trajetórias em exemplos individuais de
superação que reiterem a falácia da meritocracia. E estou falando de
solidariedade, traduzida aqui em socialização de informação, doação de
textos e um pouco de tempo, e uso dos micropoderes para que outros/as
avancem, sem que isso represente obrigação de ajudar quem não se gosta do
ponto de vista pessoal ou não se respeita intelectualmente, tampouco se
configure em fazer o trabalho por quem não quer se encarregar do esforço.

É um texto pra gente pensar junto, saber-se humano e seguir sendo
solidário. E também pra agradecer a quem tem sido solidário comigo porque
fez ou continua fazendo cada uma das ações que sugeri aqui.

(Érica Peçanha, 17.7.2016, 23h05)
-- 
carlos palombini, ph.d. (dunelm)
professor de musicologia ufmg
professor colaborador ppgm-unirio
www.proibidao.org
ufmg.academia.edu/CarlosPalombini <http://goo.gl/KMV98I>
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