[ANPPOM-Lista] Professor que denunciou plágio em livro científico foi condenado a pagar R$ 55 mil
Carlos Palombini
cpalombini em gmail.com
Domingo Janeiro 19 13:46:31 -03 2025
Jornal Opção, domingo, 19 jan. 2025
Embora obriguem servidores a denunciar irregularidades, instituições têm
conflito de interesses ao investigar seus acadêmicos e sequer garantem o
sigilo do denunciante.
Toda a credibilidade da ciência subsiste da integridade ética — desde a
segurança de que resultados de estudos são publicados sem distorções até a
confiança de que fundações não financiam plágio. Com função tão importante,
seria de se esperar que instituições acadêmicas fizessem o possível para
estimular boas práticas éticas e para proteger denunciantes de
irregularidades.
Entretanto, um processo kafkiano envolvendo pesquisadores da área de
acústica musical de São Paulo e Rio de Janeiro revela que a defesa da
integridade está mais no campo do discurso do que no da prática. Enquanto
leis como a de nº 8.112/1980 e decretos como o de nº 1.171/1994 deixam
claro que é obrigação do servidor federal denunciar supostas
irregularidades, as instituições de pesquisa que recebem as denúncias se
vêm em conflitos de interesses: confirmar a irregularidade significa perda
financeira e de imagem.
Como resultado, pesquisadores são levados a crer que devem denunciar e que
suas comunicações permanecerão sigilosas, mas instituições beneficiam seus
próprios acadêmicos ao descartar quaisquer denúncias, não importando as
evidências. Na prática, mesmo aquele que faz uma denúncia bem embasada pode
sofrer graves consequências.
O caso
Em 2004, a Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo (Fapesp) convidou o
professor da Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ) Leonardo Fuks a resenhar um livro que a própria Fundação estava
financiando. Atendendo ao convite, o doutor em acústica musical analisou “A
Acústica Musical em Palavras e Sons”, de Florivaldo Menezes (Flô Menezes).
Entretanto, a crítica não foi elogiosa. Para Fuks, a obra era um plágio.
Além da tradução e reescritura de parágrafos inteiros, 60 ilustrações no
livro brasileiro eram idênticas às da edição de 2001 do livro “The
Musician’s Guide to Acoustics”, de Campbell e Greated. As 60 ilustrações de
alguma forma creditavam o livro de Campbell &Greated, mas foram usadas sem
autorização prévia, o que é exigido pela Lei 9.610/98, do Direito Autoral.
Publicado pela primeira vez em 1987 pela Oxford University Press, o livro
britânico é um importante obra para a área da acústica musical.
Mesmo quando tratou dos trechos originais, Fuks foi duro: “quando o autor
se entrega à própria intuição, os resultados desafiam o bom-senso e o
conhecimento científico […]. Os conceitos básicos da acústica estão
equivocados […]”, escreveu em resenha para a Fapesp. A resenha nunca foi
publicada e a primeira edição do livro de Florivaldo Menezes nunca foi ao
mercado (o Jornal Opção teve acesso à resenha e a outros documentos que
constam no processo por danos morais movidos por Florivaldo Menezes no
TJ-SP).
A Fapesp informou as suspeitas levantadas por Fuks à editora Ateliê
Editorial, responsável pelo livro brasileiro. Posteriormente, o
Editor-Chefe da Fapesp, representando a Diretoria Científica, comunicou a
Fuks por e-mail que apenas os primeiros cem exemplares foram impressos. “A
editora decidiu não distribuir o livro de Menezes em razão de sua análise
[…] e não mandará o livro para o mercado até que todos os problemas
indicados sejam resolvidos numa segunda edição corrigida.” Um mês depois, a
Ateliê Editorial e a Oxford University Press entraram em acordo pelo uso
das imagens: £$ 1.200 (equivalente a R$ 15.644, considerando a inflação do
período).
Em 2014, Florivaldo Menezes publicou pela Ateliê Editorial a segunda edição
de “A Acústica Musical em Palavras e Sons”. O caso não teve atualizações
até 2017, quando Leonardo Fuks, já como assessor científico da Fapesp,
considerou que aquela segunda edição também era um plágio.
O dilema ético
A denúncia de uma violação ética ainda é um enorme dilema para a academia.
Por um lado, pesquisadores afiliados a instituições federais são obrigados
a relatar qualquer irregularidade aparente que encontrarem, e a violação de
direitos autorais é considerada crime pelo código penal. Por outro lado,
denúncias são inconvenientes para todas as instituições — tanto as que
empregam denunciados quanto as que abrigam denunciantes.
Denunciantes se indispõem com instituições que empregam os denunciados,
pois essas podem ter sua reputação manchada e podem perder verbas para
bolsas de estudo. Além disso, pode haver conflito de interesses entre
denunciante e ouvidoria da denúncia: naquela data, Fuks era assessor ad hoc
da Fapesp e, se sua denúncia estivesse correta, poderia implicar em danos à
própria Fapesp.
Fuks decidiu fazer a denúncia, talvez influenciado pelo fato de que ele
mesmo já tinha sido vítima de plágio. Sua dissertação de mestrado,
intitulada “O Bambu Sonante: um estudo da qualidade em palhetas de
clarineta”, defendida em 1993, foi copiada em 1999. A UFRJ moveu um
processo interno a partir da denúncia formalizada pelo Programa de
Pós-Graduação da UFRJ e o plagiador perdeu seu título após quatro anos de
processo.
A edição de 2014, conforme denúncia sigilosa de 2017, teria usado as mesmas
figuras novamente sem autorização prévia (pois o pagamento das figuras em
2004 se referia apenas ao uso das mesmas na primeira edição, e não em
edições posteriores), além de usar cerca de 40 outras figuras de outros
autores, sem autorização. A denúncia informava que diversos trechos do
texto seriam traduções fieis do original britânico.
Leonardo Fuks formalizou uma denúncia sigilosa ao programa Boas Práticas,
da Fapesp. A lei do Whistleblowing (nº13.608), que garante o anonimato dos
denunciantes, só seria aprovada em janeiro de 2018, de forma que garantia
de sigilo era dada apenas pelo Código de Boas Práticas da Fundação. Desde
2011, o programa Boas Práticas é uma importante iniciativa para garantir a
integridade acadêmica, e uma das únicas existentes no Brasil.
Danos morais
Depois de um ano, a Universidade Estadual Paulista (Unesp), instituição de
Florivaldo Menezes, criou uma sindicância administrativa para apurar a
denúncia comunicada pela Fapesp. A comissão de avaliação preliminar
manifestou-se favoravelmente ao livro do professor Florivaldo Menezes. O
processo todo durou três anos; prazo era de 30 dias, segundo o Código de
Boas Práticas. O professor da Unesp foi isentado de qualquer eventual culpa
e a acusação foi considerada improcedente pela instituição.
A investigação justificou: “Os autores britânicos são constantemente
mencionados e referenciados pelo autor”; “No prefácio […] o autor
brasileiro estimula a consulta do livro britânico”. A comissão apontou
ainda: “O material é traduzido (é difícil provar qualquer citação uma vez
que o material é, por sua natureza, alterado” e “discute as mesmas ideias
do livro britânico, portanto é natural que pareça similar”.
A sindicância apontou que similaridades entre os textos constituíam
paráfrase. (O serviço de auxílio à redação acadêmica Scribbr afirma que
paráfrase pode também ser plágio: “Paráfrase é plágio se o seu texto é
demasiadamente próximo à formulação original, mesmo se você identifica a
fonte. Se você copia diretamente uma sentença ou frase, você deveria
citá-la entre aspas”). A Fapesp recebeu o relatório da comissão e homologou
seus resultados.
Vale destacar que a comissão foi composta por três professores colegas de
departamento (um deles era membro de projeto de Florivaldo Menezes, também
financiado pela Fapesp) e sem currículo extenso em acústica musical. O
conflito de interesses contraria o Código de Boas Práticas: “[A comissão]
deve ter o conhecimento especializado requerido pela natureza da alegação
em causa e não devem ter conflitos potenciais de interesse que possam ser
razoavelmente percebidos como prejudiciais à imparcialidade da avaliação.”
Em 2021, Florivaldo Menezes moveu um processo cível contra Leonardo Fuks.
Em sua petição, ele alegou que a comunicação sigilosa ao órgão de denúncias
havia resultado em danos morais. “Claro intuito de prejudicar e causando
evidentes danos morais e à imagem do Requerente, bem como grandes problemas
tanto na tiragem quanto nas vendas em razão dessas imputações”, se lê no
processo.
Em sua defesa, Leonardo Fuks recolheu e anexou ao processo os pareceres de
oito cientistas que declaram haver indícios de más práticas acadêmicas no
livro. Dois especialistas de acústica, um especialista em sonologia, dois
especialistas em ética pesquisa, um parecerista anônimo da Fapesp e o
editor da Revista Pesquisa Fapesp reforçaram que o livro brasileiro era um
plágio do livro britânico. O próprio autor do livro original, Campbell
Murray, escreveu em defesa de Fuks. (Três dos oito pareceristas pertencem à
UFRJ).
O professor Sérgio Freire da UFMG escreveu: “Exame pouco aprofundado revela
grande número de exemplos com notável similaridade. Não é possível atribuir
esse fato à mera coincidência.” O Professor Roberto Tenenbaum da UFSM
escreveu: “Seria mais prudente e intelectualmente honroso se o autor
tivesse simplesmente publicado o livro como tradução do original.” O
professor Ricardo Musafir da UFRJ chegou a contar as repetições: “O
material novo introduzido por Florivaldo Menezes nos parágrafos examinados
não chega a 25% do texto.”
Também foi incluído no processo a declaração do tradutor juramentado Arturo
Ferres: “Após análise detalhada dos mais de cinquenta trechos comparados e
verificados nos respectivos livros originais, verifiquei que grande parte
dos trechos em português contidos no documento de 28 páginas são traduções
fieis e corretas do seu original em inglês, com adaptações de menor monta e
algumas vezes intermeados e/ou acompanhados por textos do autor do livro em
português. […] Via de regra, os textos do livro em português traduzidos do
original em inglês não traziam menção de que eram traduções do livro em
inglês.”
Condenação e consequências éticas
As evidências não foram suficientes. Juízes e desembargadores de primeira e
segunda instância, mesmo não tendo a seu dispor de uma perícia legal ou
técnica, consideraram que não houve plágio e que a comunicação confidencial
ao órgão de denúncias constituiu um ilícito. Fuks foi condenado a pagar R$
55 mil a Menezes.
O processo, de número 1033172-72.2021.8.26.0100 ainda se encontra em curso,
agora ingressando em terceira instância, mediante recursos especial e
extraordinário ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) e Supremo Tribunal
Federal (STF). Entretanto, um precedente perigoso à integridade acadêmica
foi aberto.
Pesquisadores deixam de reportar irregularidades porque mesmo as denúncias
bem intencionadas e bem embasadas podem penalizar o denunciante. As
instituições reforçam a obrigação de denunciar em códigos de ética e
manuais de boas práticas, mas, na prática, enfraquecem instrumentos de
integridade e sequer garantem o sigilo da identidade dos denunciantes.
Outro exemplo de como as instituições têm discursos destoantes da prática é
o fato de que a lei brasileira é rígida contra o plágio, o considerando
crime pelo Código Penal, artigo 184. Entretanto, o caso de Menezes e Fuks
mostra que há pouco esforço para compreender se há ou não plágio em casos
específicos, e que a Justiça deposita muita confiança no que dizem as
instituições.
A postura de ouvir a autoridade é natural quando consideramos que é
impossível para operadores do direito compreenderem tecnicamente todas as
áreas das ciências. Entretanto, as instituições de pesquisa têm interesses
em jogo. Sindicâncias beneficiariam acadêmicos de seus próprios
departamentos se sempre descartassem denúncias de plágio, não importando as
evidências.
O conflito de interesses talvez seja a principal explicação pela qual há
escassez de relatórios sobre quantas denúncias geram responsabilizações de
pesquisadores por violações éticas. As implicações da violação de direitos
autorais — como a retirada de livros de circulação, pagamento de royalties
e outras medidas compensatórias — são o bem protegido calcanhar de aquiles
da integridade acadêmica.
Esta matéria foi inteiramente baseada em documentos e processos públicos.
Por duas semanas, a redação buscou contato com Florivaldo Menezes, mas não
obteve resposta. O espaço permanece aberto.
https://www.jornalopcao.com.br/colunas-e-blogs/imprensa/professor-que-denunciou-plagio-perdeu-vinculo-com-fundacao-e-foi-condenado-a-pagar-r-55-mil-672673/
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carlos palombini, ph.d. (dunelm)
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