[ANPPOM-Lista] Professor que denunciou plágio em livro científico foi condenado a pagar R$ 55 mil
Didier Guigue
didierguigue em gmail.com
Quarta Janeiro 22 11:34:40 -03 2025
Coincidentemente acabei de submeter o mesmo post aqui nesta lista, sugerindo alguma tomada de posição.
> Em 19 de jan. de 2025, à(s) 13:46, Carlos Palombini <cpalombini em gmail.com> escreveu:
>
> Jornal Opção, domingo, 19 jan. 2025
>
> Embora obriguem servidores a denunciar irregularidades, instituições têm
> conflito de interesses ao investigar seus acadêmicos e sequer garantem o
> sigilo do denunciante.
>
> Toda a credibilidade da ciência subsiste da integridade ética — desde a
> segurança de que resultados de estudos são publicados sem distorções até a
> confiança de que fundações não financiam plágio. Com função tão importante,
> seria de se esperar que instituições acadêmicas fizessem o possível para
> estimular boas práticas éticas e para proteger denunciantes de
> irregularidades.
>
> Entretanto, um processo kafkiano envolvendo pesquisadores da área de
> acústica musical de São Paulo e Rio de Janeiro revela que a defesa da
> integridade está mais no campo do discurso do que no da prática. Enquanto
> leis como a de nº 8.112/1980 e decretos como o de nº 1.171/1994 deixam
> claro que é obrigação do servidor federal denunciar supostas
> irregularidades, as instituições de pesquisa que recebem as denúncias se
> vêm em conflitos de interesses: confirmar a irregularidade significa perda
> financeira e de imagem.
>
> Como resultado, pesquisadores são levados a crer que devem denunciar e que
> suas comunicações permanecerão sigilosas, mas instituições beneficiam seus
> próprios acadêmicos ao descartar quaisquer denúncias, não importando as
> evidências. Na prática, mesmo aquele que faz uma denúncia bem embasada pode
> sofrer graves consequências.
>
> O caso
>
> Em 2004, a Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo (Fapesp) convidou o
> professor da Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro
> (UFRJ) Leonardo Fuks a resenhar um livro que a própria Fundação estava
> financiando. Atendendo ao convite, o doutor em acústica musical analisou “A
> Acústica Musical em Palavras e Sons”, de Florivaldo Menezes (Flô Menezes).
> Entretanto, a crítica não foi elogiosa. Para Fuks, a obra era um plágio.
>
> Além da tradução e reescritura de parágrafos inteiros, 60 ilustrações no
> livro brasileiro eram idênticas às da edição de 2001 do livro “The
> Musician’s Guide to Acoustics”, de Campbell e Greated. As 60 ilustrações de
> alguma forma creditavam o livro de Campbell &Greated, mas foram usadas sem
> autorização prévia, o que é exigido pela Lei 9.610/98, do Direito Autoral.
> Publicado pela primeira vez em 1987 pela Oxford University Press, o livro
> britânico é um importante obra para a área da acústica musical.
>
> Mesmo quando tratou dos trechos originais, Fuks foi duro: “quando o autor
> se entrega à própria intuição, os resultados desafiam o bom-senso e o
> conhecimento científico […]. Os conceitos básicos da acústica estão
> equivocados […]”, escreveu em resenha para a Fapesp. A resenha nunca foi
> publicada e a primeira edição do livro de Florivaldo Menezes nunca foi ao
> mercado (o Jornal Opção teve acesso à resenha e a outros documentos que
> constam no processo por danos morais movidos por Florivaldo Menezes no
> TJ-SP).
>
> A Fapesp informou as suspeitas levantadas por Fuks à editora Ateliê
> Editorial, responsável pelo livro brasileiro. Posteriormente, o
> Editor-Chefe da Fapesp, representando a Diretoria Científica, comunicou a
> Fuks por e-mail que apenas os primeiros cem exemplares foram impressos. “A
> editora decidiu não distribuir o livro de Menezes em razão de sua análise
> […] e não mandará o livro para o mercado até que todos os problemas
> indicados sejam resolvidos numa segunda edição corrigida.” Um mês depois, a
> Ateliê Editorial e a Oxford University Press entraram em acordo pelo uso
> das imagens: £$ 1.200 (equivalente a R$ 15.644, considerando a inflação do
> período).
>
> Em 2014, Florivaldo Menezes publicou pela Ateliê Editorial a segunda edição
> de “A Acústica Musical em Palavras e Sons”. O caso não teve atualizações
> até 2017, quando Leonardo Fuks, já como assessor científico da Fapesp,
> considerou que aquela segunda edição também era um plágio.
>
> O dilema ético
>
> A denúncia de uma violação ética ainda é um enorme dilema para a academia.
> Por um lado, pesquisadores afiliados a instituições federais são obrigados
> a relatar qualquer irregularidade aparente que encontrarem, e a violação de
> direitos autorais é considerada crime pelo código penal. Por outro lado,
> denúncias são inconvenientes para todas as instituições — tanto as que
> empregam denunciados quanto as que abrigam denunciantes.
>
> Denunciantes se indispõem com instituições que empregam os denunciados,
> pois essas podem ter sua reputação manchada e podem perder verbas para
> bolsas de estudo. Além disso, pode haver conflito de interesses entre
> denunciante e ouvidoria da denúncia: naquela data, Fuks era assessor ad hoc
> da Fapesp e, se sua denúncia estivesse correta, poderia implicar em danos à
> própria Fapesp.
>
> Fuks decidiu fazer a denúncia, talvez influenciado pelo fato de que ele
> mesmo já tinha sido vítima de plágio. Sua dissertação de mestrado,
> intitulada “O Bambu Sonante: um estudo da qualidade em palhetas de
> clarineta”, defendida em 1993, foi copiada em 1999. A UFRJ moveu um
> processo interno a partir da denúncia formalizada pelo Programa de
> Pós-Graduação da UFRJ e o plagiador perdeu seu título após quatro anos de
> processo.
>
> A edição de 2014, conforme denúncia sigilosa de 2017, teria usado as mesmas
> figuras novamente sem autorização prévia (pois o pagamento das figuras em
> 2004 se referia apenas ao uso das mesmas na primeira edição, e não em
> edições posteriores), além de usar cerca de 40 outras figuras de outros
> autores, sem autorização. A denúncia informava que diversos trechos do
> texto seriam traduções fieis do original britânico.
>
> Leonardo Fuks formalizou uma denúncia sigilosa ao programa Boas Práticas,
> da Fapesp. A lei do Whistleblowing (nº13.608), que garante o anonimato dos
> denunciantes, só seria aprovada em janeiro de 2018, de forma que garantia
> de sigilo era dada apenas pelo Código de Boas Práticas da Fundação. Desde
> 2011, o programa Boas Práticas é uma importante iniciativa para garantir a
> integridade acadêmica, e uma das únicas existentes no Brasil.
>
> Danos morais
>
> Depois de um ano, a Universidade Estadual Paulista (Unesp), instituição de
> Florivaldo Menezes, criou uma sindicância administrativa para apurar a
> denúncia comunicada pela Fapesp. A comissão de avaliação preliminar
> manifestou-se favoravelmente ao livro do professor Florivaldo Menezes. O
> processo todo durou três anos; prazo era de 30 dias, segundo o Código de
> Boas Práticas. O professor da Unesp foi isentado de qualquer eventual culpa
> e a acusação foi considerada improcedente pela instituição.
>
> A investigação justificou: “Os autores britânicos são constantemente
> mencionados e referenciados pelo autor”; “No prefácio […] o autor
> brasileiro estimula a consulta do livro britânico”. A comissão apontou
> ainda: “O material é traduzido (é difícil provar qualquer citação uma vez
> que o material é, por sua natureza, alterado” e “discute as mesmas ideias
> do livro britânico, portanto é natural que pareça similar”.
>
> A sindicância apontou que similaridades entre os textos constituíam
> paráfrase. (O serviço de auxílio à redação acadêmica Scribbr afirma que
> paráfrase pode também ser plágio: “Paráfrase é plágio se o seu texto é
> demasiadamente próximo à formulação original, mesmo se você identifica a
> fonte. Se você copia diretamente uma sentença ou frase, você deveria
> citá-la entre aspas”). A Fapesp recebeu o relatório da comissão e homologou
> seus resultados.
>
> Vale destacar que a comissão foi composta por três professores colegas de
> departamento (um deles era membro de projeto de Florivaldo Menezes, também
> financiado pela Fapesp) e sem currículo extenso em acústica musical. O
> conflito de interesses contraria o Código de Boas Práticas: “[A comissão]
> deve ter o conhecimento especializado requerido pela natureza da alegação
> em causa e não devem ter conflitos potenciais de interesse que possam ser
> razoavelmente percebidos como prejudiciais à imparcialidade da avaliação.”
>
> Em 2021, Florivaldo Menezes moveu um processo cível contra Leonardo Fuks.
> Em sua petição, ele alegou que a comunicação sigilosa ao órgão de denúncias
> havia resultado em danos morais. “Claro intuito de prejudicar e causando
> evidentes danos morais e à imagem do Requerente, bem como grandes problemas
> tanto na tiragem quanto nas vendas em razão dessas imputações”, se lê no
> processo.
>
> Em sua defesa, Leonardo Fuks recolheu e anexou ao processo os pareceres de
> oito cientistas que declaram haver indícios de más práticas acadêmicas no
> livro. Dois especialistas de acústica, um especialista em sonologia, dois
> especialistas em ética pesquisa, um parecerista anônimo da Fapesp e o
> editor da Revista Pesquisa Fapesp reforçaram que o livro brasileiro era um
> plágio do livro britânico. O próprio autor do livro original, Campbell
> Murray, escreveu em defesa de Fuks. (Três dos oito pareceristas pertencem à
> UFRJ).
>
> O professor Sérgio Freire da UFMG escreveu: “Exame pouco aprofundado revela
> grande número de exemplos com notável similaridade. Não é possível atribuir
> esse fato à mera coincidência.” O Professor Roberto Tenenbaum da UFSM
> escreveu: “Seria mais prudente e intelectualmente honroso se o autor
> tivesse simplesmente publicado o livro como tradução do original.” O
> professor Ricardo Musafir da UFRJ chegou a contar as repetições: “O
> material novo introduzido por Florivaldo Menezes nos parágrafos examinados
> não chega a 25% do texto.”
>
> Também foi incluído no processo a declaração do tradutor juramentado Arturo
> Ferres: “Após análise detalhada dos mais de cinquenta trechos comparados e
> verificados nos respectivos livros originais, verifiquei que grande parte
> dos trechos em português contidos no documento de 28 páginas são traduções
> fieis e corretas do seu original em inglês, com adaptações de menor monta e
> algumas vezes intermeados e/ou acompanhados por textos do autor do livro em
> português. […] Via de regra, os textos do livro em português traduzidos do
> original em inglês não traziam menção de que eram traduções do livro em
> inglês.”
>
> Condenação e consequências éticas
>
> As evidências não foram suficientes. Juízes e desembargadores de primeira e
> segunda instância, mesmo não tendo a seu dispor de uma perícia legal ou
> técnica, consideraram que não houve plágio e que a comunicação confidencial
> ao órgão de denúncias constituiu um ilícito. Fuks foi condenado a pagar R$
> 55 mil a Menezes.
>
> O processo, de número 1033172-72.2021.8.26.0100 ainda se encontra em curso,
> agora ingressando em terceira instância, mediante recursos especial e
> extraordinário ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) e Supremo Tribunal
> Federal (STF). Entretanto, um precedente perigoso à integridade acadêmica
> foi aberto.
>
> Pesquisadores deixam de reportar irregularidades porque mesmo as denúncias
> bem intencionadas e bem embasadas podem penalizar o denunciante. As
> instituições reforçam a obrigação de denunciar em códigos de ética e
> manuais de boas práticas, mas, na prática, enfraquecem instrumentos de
> integridade e sequer garantem o sigilo da identidade dos denunciantes.
>
> Outro exemplo de como as instituições têm discursos destoantes da prática é
> o fato de que a lei brasileira é rígida contra o plágio, o considerando
> crime pelo Código Penal, artigo 184. Entretanto, o caso de Menezes e Fuks
> mostra que há pouco esforço para compreender se há ou não plágio em casos
> específicos, e que a Justiça deposita muita confiança no que dizem as
> instituições.
>
> A postura de ouvir a autoridade é natural quando consideramos que é
> impossível para operadores do direito compreenderem tecnicamente todas as
> áreas das ciências. Entretanto, as instituições de pesquisa têm interesses
> em jogo. Sindicâncias beneficiariam acadêmicos de seus próprios
> departamentos se sempre descartassem denúncias de plágio, não importando as
> evidências.
>
> O conflito de interesses talvez seja a principal explicação pela qual há
> escassez de relatórios sobre quantas denúncias geram responsabilizações de
> pesquisadores por violações éticas. As implicações da violação de direitos
> autorais — como a retirada de livros de circulação, pagamento de royalties
> e outras medidas compensatórias — são o bem protegido calcanhar de aquiles
> da integridade acadêmica.
>
> Esta matéria foi inteiramente baseada em documentos e processos públicos.
> Por duas semanas, a redação buscou contato com Florivaldo Menezes, mas não
> obteve resposta. O espaço permanece aberto.
>
> https://www.jornalopcao.com.br/colunas-e-blogs/imprensa/professor-que-denunciou-plagio-perdeu-vinculo-com-fundacao-e-foi-condenado-a-pagar-r-55-mil-672673/
>
> --
>
> carlos palombini, ph.d. (dunelm)
>
> pv-faperj ppgas/mn ufrj
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