[Dicasdeiluminacao-l] Luz e Conceito

Valmir Perez valmirperez em gmail.com
Seg Abr 21 09:11:18 BRT 2008


Prezado (a) assinante, bom dia,



Segue abaixo texto lindíssimo de nosso amigo e mestre professor Eduardo
Tudella.



Numa dessas coincidências incríveis, recebi esse texto a semana passada
exatamente no momento em que iria discutir conceito plástico na iluminação
com estagiárias do Laboratório.



O texto abaixo não é apenas um exemplo de como o iluminador cênico conceitua
seu trabalho, mas como deve se envolver com ele.



Convido também os assinantes dessa lista a visitar o blog do grupo de Teatro
Nu no endereço http://teatronu.blogspot.com/ , onde o referido texto foi
postado originalmente.



Um abraço,





* *

*Os Javalis*

Gil Vicente Tavares


Conceitos para a Luz

Eduardo Tudella





O texto a seguir representa o conjunto de conceitos definidos para o Projeto
de Luz da montagem em cartaz, no Teatro Sala do Coro – Teatro Castro Alves,
Salvador/Bahia durante o mês de abril de 2008. O espetáculo tem na sua
equipe: Euro Pires (cenógrafo), Eduardo Tudella (Luz), Gil Vicente Tavares
(autor e diretor), Carlos Betão e Marcelo Praddo (atores), José Jackson
(assistente e sonoplasta) Anderson Alan (sonoplasta) e Luciano Bahia
(trilha) e Bruno Berzort (Operador de mesa de controle de Luz).



 Ouvi, certa vez, comentário proferido por um, assim chamado, iluminador,
que soou inquietante; acen-tuava ele como é importante considerar que a luz
(no teatro), é feita do nada. Ainda que não tenham sido essas, exata-mente,
as palavras, tal foi a impressão que restou da curiosa assertiva. Para
aqueles familiarizados com a questão parece óbvio que o "iluminador"
preten-dia dizer muito mais do que pode pa-recer, quando se isola tal
afirmação do contexto. O profissional considerava o fato de não ter à sua
disposição a fisi-calidade das texturas e cores dos di-versos materiais
aplicados por cenógra-fos, figurinistas, maquiadores, entre ou-tros
artistas, no estabelecimento do dia-logo criativo em direção ao evento
ce-nico. Ele procurava acentuar a impal-pabilidade do seu elemento, a luz.

Ora, isso pode parecer sem importância, num certo sentido, mas torna-se
curioso quando se avalia que, nesses tempos nos quais nos deparamos, ainda,
com o "antigo" drama em muitas bibliotecas, e contamos com teimosos
encenadores a levá-los ao interior dos seus espetáculos, o que menos se
espera do público é uma relação táctil com a cena. E, mesmo alentado o
desejo ob-sessivo de muitos artistas no caminho de promover status de
fruidor para o seu espectador, quando sentimos pela última vez a textura da
alva face do jovem Hamlet[1]? Ou, quem testemunhou a frieza da lamina da
espada de Don Giovanni a espetar o
Commendatore<http://mail.google.com/mail/?ui=1&view=page&name=gp&ver=sh3fib53pgpk#_ftn1>[2]?
Exerce, sim, o espectador, um papel de
dev<http://mail.google.com/mail/?ui=1&view=page&name=gp&ver=sh3fib53pgpk#_ftn2>orador
visual, também. O que pode sugerir ao responsável pela contribuição da luz
ao espetáculo alguma investi-gação acerca do "nada" mencionado aci-ma.

Onde se poderia buscar algo capaz de atuar como elemento deflagra-dor do
processo que promova a interação da luz, na cena? Pareceu-me pertinente a
referência presente já na denominação da obra: o que teria levado o jovem
Gil Vicente Tavares a intitular o seu texto Os Javalis? Sublinhando-se uma
livre inspiração em Ionesco essa já represen-taria uma importante
ramificação proposta pelo texto dramático.[3] Pode, portanto, ficar latente
a intenção deli-berada de dialogar com o texto francês, discutindo aspectos
de uma inquietante transmutação, de semelhante violência. Tal decisão já
pode configurar provo-cação
<http://mail.google.com/mail/?ui=1&view=page&name=gp&ver=sh3fib53pgpk#_ftn3>para
a luz: em primeiro lugar pelas imagens reservadas na memória do lei-tor,
desde os primeiros anos da educação formal quando se deram os contatos
iniciais com a figura do javali. Acres-cente-se a isso visitas a museus de
história natural, filmes e experiências di-versas a alimentar o seu
imaginário.

A dramaturgia de Gil Vicente, no entanto, confere estranhas
característi-cas, acentuado e particular poder à es-pécime "javalinesca" que
ali transita. Muito além daquele descrito pelos compêndios, assim como
observado nas demais experiências mencionadas no parágrafo precedente. Tais
poderes sur-preenderiam até mesmo os habitantes da Província de Zhejiang, no
leste da China, que tiveram uma das suas universidades invadidas por enormes
javalis, de apro-ximadamente 200 kg, que se puseram a devorar toda a comida
que encontra-vam[4]. Ao que parece, a invasão de javalis a instituições de
ensino, já não representa tão somente momentos da
ficção.<http://mail.google.com/mail/?ui=1&view=page&name=gp&ver=sh3fib53pgpk#_ftn4>

E, se isso não basta para implodir o "nada" tratado no primeiro parágrafo,
observe o leitor, com acuidade, a poesia de Gil Vicente para se surpreender
na familiaridade das habilidades dos seus vorazes espécimes. A réplica
número 08 define: o javali é um porco feroz. Mais adiante, toma-se
conhecimento que as feras "comeram a cabeça de todo mundo" e que essa
voracidade se revela sedutora, de modo contundente, através de propostas de
alianças no intuito de destruir aqueles considerados inimigos.

A ameaça alcança requintes de brutalidade quando o Homem B revela:
Pareciam homens, de longe. Só de perto é que se via o quanto eram
repugnantes.
Esses "homens", portanto, não passam de hospedeiros tendo como sua
verda-deira identidade uma fera cruel. Que homens serão, ainda, por sorte,
mera-mente homens? Tal universo exige olhar atento. O que poderia ser mais
as-sustador?

Como responderia o artista a tais provocações? Esse universo sugere um
tratamento que afirme crível e consis-tente o ambiente da ação e,
simulta-neamente, revele certo grau de estranhe-za. Ou seja, o nível de
verossimilhança deve construir desconfiança, questiona-mento do fruidor
acerca de onde esse embate ocorre. Afinal, que lugar seria capaz de abrigar
uma organização social cujos membros devem fitar atentamente seus pares no
intuito de se certificarem que dentro do outro, não se esgueira um javali?
Se, na dramaturgia, o espaço do Homem A é uma espécie de refúgio dividido
com sua principal companhia, a solidão, escondendo compartimentos proibidos
para as indesejáveis visitas, a ceno-grafia de Euro Pires introduz certo
grau de "impessoalidade", "quasi-indus-trial", que abre inúmeras
possibilidades para a atuação luz.

Na presente montagem, elegeu-se, então, um enfoque que investe na frieza dos
matizes, em movimentos com nível de realidade muito reduzido e contundência
nos ângulos – gerando, através da narrativa das sombras, contribuição
substancial para a estra-nheza proposta, já na dramaturgia e construída,
artificialmente, na encena-ção.



[1] Refiro-me ao Hamlet, de William
Shakespeare.<http://mail.google.com/mail/?ui=1&view=page&name=gp&ver=sh3fib53pgpk#_ftn5>
[2] Trato aqui do momento na qual o
pa<http://mail.google.com/mail/?ui=1&view=page&name=gp&ver=sh3fib53pgpk#_ftn6>i
de Donna Anna é ferido mortalmente por Don Giovanni, na ópera homônima, de
Mozart, cujo libretto tem como autor Lorenzo da Ponte.
[3] Eugene Ionesco, Os Rinocerontes, escrita em
1960.<http://mail.google.com/mail/?ui=1&view=page&name=gp&ver=sh3fib53pgpk#_ftn7>
[4] http://noticias.terra.com.br/mundo/interna/0,,OI2054665-EI10495,00<http://mail.google.com/mail/?ui=1&view=page&name=gp&ver=sh3fib53pgpk#_ftn8>
.html





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<http://mail.google.com/mail/?ui=1&view=page&name=gp&ver=sh3fib53pgpk#_ftnref2>


<http://mail.google.com/mail/?ui=1&view=page&name=gp&ver=sh3fib53pgpk#_ftnref3>


<http://mail.google.com/mail/?ui=1&view=page&name=gp&ver=sh3fib53pgpk#_ftnref4>


<http://mail.google.com/mail/?ui=1&view=page&name=gp&ver=sh3fib53pgpk#_ftnref5>


<http://mail.google.com/mail/?ui=1&view=page&name=gp&ver=sh3fib53pgpk#_ftnref6>


<http://mail.google.com/mail/?ui=1&view=page&name=gp&ver=sh3fib53pgpk#_ftnref7>


<http://mail.google.com/mail/?ui=1&view=page&name=gp&ver=sh3fib53pgpk#_ftnref8>



-- 
Valmir Perez
Lighting Designer
Laboratório de Iluminação
Unicamp
www.iar.unicamp.br/lab/luz
http://valmirperez.blogspot.com/
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Skype: lablux
Fones:
(19) 35212444
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