[ANPPOM-L] Schoenberg e Deise

carlos palombini palombini em terra.com.br
Qua Jun 6 02:19:35 BRT 2007


A versão do "Funk da injeção" que está no hotsite do filme de Leandro é 
decepcionante. A letra é amenizada, a coreografia esvaziada. Penetrar no 
mundo da Cidade de Deus é ver e ouvir o "Funk da injeção" como Deise o 
canta no filme da Denise, que é amicíssima dela: com a letra explícita, 
cantada pela Deise na porta da casa dela, e com a coreografia mais 
explícita ainda, executada por Ramona, uma transgênero. Toda vez que 
assisto esta cena (e já devo ter visto o filme da D mais de dez vezes), 
é um choque. Mas é neste choque que está a verdade do filme da Denise: a 
CDD (quase) como ela é, sem concessões aos pudores do "asfalto".

Quando Mr Catra apresentou-se em BH, fui entrevistá-lo no camarim, 
morrendo de medo dele. Ele foi gentilíssimo e fez questão de responder 
uma a uma minhas inúmeras perguntas, por quase vinte minutos antes de 
entrar em cena. Depois dei uma palestra e citei o evento. Disse que 
Catra apresenta em seu show uma mistura fascinante de "Jesus, maconha e 
putaria" (o termo é dele), que tem afinidades com as origens do soul, 
que resulta da profanização do gospel ("Have Mercy Lord" tornando-se 
"Have Mercy Baby" e "I Have a Savior" tornando-se "I Have a Woman"). 
Quando fui apresentar o mesmo evento no rádio, perguntei a co-produtora 
do programa se podia falar "putaria" no ar; ela fez uma cara feia e eu 
falei "sexo".

Na semana seguinte, para o programa de rádio, entrevistamos um rapper, 
que havia assistido à minha palestra. Ele disse, durante a gravação, que 
havia gostado muito, e que saíra da palestra pensando em "Jesus, maconha 
e putaria" e na relação entre as três coisas. Raquel (a co-produtora e 
co-apresentadora do programa) e eu nos entreolhamos sem coragem de 
sorrir. E ele havia dito, minutos antes, que, enquanto rapper, seu papel 
era apenas dizer aquilo que os outros não tinham coragem de dizer. Finda 
a gravação, depois de 40 ou 45 programas, Raquel veio me dizer, pela 
primeira vez, que o programa havia ficado legal!

É essa, a meu ver, a grande contribuição do funk carioca à cultura 
brasileira: num país que, como afirmou Eero Tarasti em seu livro sobre 
Villa-Lobos, é o paraíso da perífrase, onde nada se exprime de modo 
direto, o funk carioca --- que já não fala para um asfalto que preferiu 
entregar a administração do morro aos comandos ou às milícias --- pode 
se dar ao luxo de ser direto, de dar as coisas os seus devidos nomes; e 
se divertir com isso. Não acho que seja pouco.

Um abraço,
Carlos

José Luiz Martinez escreveu:
> Assisti aos vídeos que você indicou, sobre o funk e o da Deise em especial.
> Tenho a impressão que as meninas gostam de dançar e se divertem, mas não sei
> se se dão conta da letra do funk da injeção. Parece que há um hiato entre a
> compreensão do ritmo e do texto. Foi a própria Deise quem escreveu esse
> funk? No vídeo 6, com Galo, "Periferia é mil graus", esse descompasso não
> existe. Dá pra sentir que a coisa é real.
>
> Sobre o Pierrot funkado, a coisa pode ser bizarra, mas também pode ser
> patética. No final, quem estará mais fora de contexto será a Deise Tigrona,
> você tem razão. O que esperar disso? Estado da pós-modernidade? Não sei, só
> indo pra ver.
>
> Espírito científico, mano velho!
>
> Abraços,
> Zéluiz
>
>
> On 06/06/2007 00:49, "carlos palombini" <palombini em terra.com.br> wrote:
>
>   
>> Também acho que será bizarro. A mim me soa como uma tentativa de injetar
>> (perdoe o trocadilho) alguma vitalidade numa vanguardismo exangue (não
>> me refiro a Schoenberg), que fará tão mal ao _Pierrot_ quanto à
>> simpaticíssima Deise. Parece aquela velha receita: misture tudo o que
>> não combina, que pode ser que dê certo. Mas, como vc mesmo sugere, posso
>> estar errado. Afinal, não tem gente que acha linda a pirâmide do Louvre?
>>
>> Um abraço,
>> Carlos
>>
>> José Luiz Martinez escreveu:
>>     
>>> Olá Carlos,
>>>
>>> Obrigado pelo esclarecimento. Estou achando que esse Pierrot será no mínimo
>>> bizarro. Ao que tudo indica, Adélia Issa vai fazer as 21 canções da obra
>>> original. Os instrumentistas e a regência de Antônio Carlos Borges Cunha (da
>>> UFRGS) devem garantir a interpretação correta da partitura.
>>>
>>> Agora, o que esperar de Deise Tigrona e Elke Maravilha no contexto
>>> simbolista (ou vice-versa), só pagando pra ver.
>>>
>>> Abraços,
>>> Martinez
>>>
>>>
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