[ANPPOM-L] musicologia e idiossincrasia

carlos palombini palombini em terra.com.br
Qui Jun 7 10:18:30 BRT 2007


Obrigado pelo apoio, José Luiz. Eu vejo o estudo do funk carioca como um 
desdobramento do estudo da música contemporânea ou, mais precisamente, 
de orientações não formalistas de vanguardas do pós-guerra, das quais 
infiro que o musical é o correlato de uma intenção de escuta. Ouço 
muitas sutilezas sonoras no funk, ainda que estas às vezes se condensem 
em elementos mínimos. É uma questão de focar a escuta. E descobrir. 
Acontece às vezes destes elementos estarem organizados com uma precisão 
extrema.

Mas há complexidades no funk. De significado, por exemplo. Na forma como 
as músicas negras norte-americanas sofrem um alvejamento ao chegarem ao 
Brasil. Foi assim com o rock, que chegou aqui nas vozes de Nora Ney e 
Cauby Peixoto. Foi assim com a disco, que aqui é Frenéticas e Dancing 
Days. Foi assim com o jazz, cuja influência maior, ou pelo menos, a mais 
reconhecida, é a do cool Chet Baker dos anos 50 sobre a bossa nova, 
enquanto a relação do Dixieland com o choro nos anos 20 ou do swing 
sobre os arranjos dos anos 30, 40 e 50 não são algo de que se goste de 
falar. E o bebop nos chega como coisa de existencialista em café de 
Paris. É interessante --- e complexo, do ponto de vista de quem quer 
entender isto --- que a cena funk carioca tenha, através dos bailes 
black dos anos 70 e dos bailes funk dos anos 80 incorporado o soul, o 
funk e o hip-hop em contravenção a este modelo, como signos de uma 
cultura independente de periferia. Tudo isto a despeito da matriz 
historiográfica miscigenatória, que se expressa em tantas figuras de 
raciocínio como "a modinha e o lundu", "a casa de Tia Ciata", "o morro e 
o asfalto", a "flor amorosa de três raças tristes". Na realidade, a 
historiografia do funk não tem escapado ao conteúdo ideológico desta 
matriz, cuja dominação ele relança no jovem mito de sua origem nos 
Bailes da Pesada, no Canecão. Aí, as classes e as cores se encontravam 
no paraíso da zona sul, e daí foram expulsas, como Adão e Eva, para 
florescerem na periferia. Ou o jovem mito da bateria que Hermano Vianna 
deu de presente a Marlboro, que com ela criou o funk carioca (como 
Hermano discretamente sugere em _O mundo funk carioca_ em 88 e Marlboro 
discretamente endossa no _Funk Brasil 1_, de 89). Ora, misturar bateria 
com discotecagem é coisa que já se fazia no início dos anos 70 nos 
primeiros clubes da nascente cena disco de Manhattan, e é deste 
experimento que vai nascer a house no início dos anos 80. Estes supostos 
fatos (i.e. que o funk carioca começou no Canecão e que Hermano Vianna 
foi sua parteira) colocam em jogo questões de dominação cultural que me 
parecem muito interessantes.

Este tipo de preocupações é o mesmo que orientou e continua orientando 
minha pesquisa sobre música concreta. Quando comecei meu trabalho, a 
música concreta ainda era um movimento quase tão marginal quanto o funk 
carioca hoje no contexto dos estudos de MPB. Por questões de cunho 
psicanalítico, isto é, não sendo neurótico, mas perverso (segundo a 
idéia de que o perverso é aquele que tem prazer com sua neurose), eu não 
me dedicaria ao estudo daquilo que todos prezam. Portanto, o desprezo do 
establishment musical pelos meus temas é o que move minha pesquisa. Sem 
esquecer, é claro, que, nos centros hegemônicos de produção de 
conhecimento musical, a execração das vanguardas formalistas é um 
processo que talvez já tenha atingido seu pico. Portanto, de acordo com 
a lei da bateria eletrônica de Vianna, deverá chegar logo ao Brasil. Se, 
quando este processo já estiver consumando, eu ainda estiver vivo e 
ainda estiver pensando, você irá me encontrar estudando Análise 
Schenkeriana, Pitch Set Theory e a Modinha e o Lundu.

Conheço sim uma parte do trabalho de Samuel, com quem tenho, sempre que 
podemos, o prazer de conversar sobre estas e outras coisas no Rio e em 
Belo Horizonte. Da última vez que estive no Rio, passei uma manhã de 
quarta-feira com o grupo de universitários e pré-universitários da Maré 
que lá se reúnem duas vezes por semana para trocar idéias e realizar sua 
cartografia musical. Evidentemente, conversamos muito sobre funk e eu 
continuo trocando informações e experiências com alguns membros do grupo 
por msn. Mas o que mais me marcou nesta visita foi a dinâmica deles 
enquanto grupo de estudos e de discussão, colocando em questão 
pressupostos de concentração e disciplina em sala de aula.

Mais uma vez, agradeço o apoio, a gentileza e a oportunidade de expor 
minhas idiossincrasias diante de um público tão vasto.

Um abraço,
Carlos
      

José Luiz Martinez escreveu:
> Caro Carlos,
>
> Obrigado pelos esclarecimentos. Sua área de pesquisa, ainda que rejeitada
> por muitos, é importante e oferece um contraponto vivo ao pensamento
> formalista de boa parte da musicologia brasileira. Eu também tenho horror à
> hipocrisia e ao eufemismo. VocÊ está certo em falar sobre o funk brasileiro
> com o vocabulário direto usado nas canções. Chocar-se com essas questões é,
> de certo modo, se fechar a realidade brasileira. Vemos aqui, mais uma vez, a
> questão do significado musical. O funk não apresenta as sutilezas e a
> finesse da música de concerto ou do jazz contemporâneo, mas representa, como
> índice de fato, a secundidade e a terceiridade da vida nas favelas
> brasileiras. Ninguém pode se posicionar indiferentemente a isso, a não ser
> como uma grande hipocrisia. É preciso pesquisar para que se tenha, no mínimo
> como hipótese científica, uma esperança de mudar alguma coisa para melhor. E
> o trabalho recente de etnomusicólogos, como o projeto na Maré, dirigido pelo
> Samuel Araújo, mostra que é possível ir além de meras hipóteses apresentadas
> em "papers".
>
>
> Abraços,
> Martinez
>
>
>
> On 06/06/2007 02:19, "carlos palombini" <palombini em terra.com.br> wrote:
>
>   
>> A versão do "Funk da injeção" que está no hotsite do filme de Leandro é
>> decepcionante. A letra é amenizada, a coreografia esvaziada. Penetrar no
>> mundo da Cidade de Deus é ver e ouvir o "Funk da injeção" como Deise o
>> canta no filme da Denise, que é amicíssima dela: com a letra explícita,
>> cantada pela Deise na porta da casa dela, e com a coreografia mais
>> explícita ainda, executada por Ramona, uma transgênero. Toda vez que
>> assisto esta cena (e já devo ter visto o filme da D mais de dez vezes),
>> é um choque. Mas é neste choque que está a verdade do filme da Denise: a
>> CDD (quase) como ela é, sem concessões aos pudores do "asfalto".
>>
>> Quando Mr Catra apresentou-se em BH, fui entrevistá-lo no camarim,
>> morrendo de medo dele. Ele foi gentilíssimo e fez questão de responder
>> uma a uma minhas inúmeras perguntas, por quase vinte minutos antes de
>> entrar em cena. Depois dei uma palestra e citei o evento. Disse que
>> Catra apresenta em seu show uma mistura fascinante de "Jesus, maconha e
>> putaria" (o termo é dele), que tem afinidades com as origens do soul,
>> que resulta da profanização do gospel ("Have Mercy Lord" tornando-se
>> "Have Mercy Baby" e "I Have a Savior" tornando-se "I Have a Woman").
>> Quando fui apresentar o mesmo evento no rádio, perguntei a co-produtora
>> do programa se podia falar "putaria" no ar; ela fez uma cara feia e eu
>> falei "sexo".
>>
>> Na semana seguinte, para o programa de rádio, entrevistamos um rapper,
>> que havia assistido à minha palestra. Ele disse, durante a gravação, que
>> havia gostado muito, e que saíra da palestra pensando em "Jesus, maconha
>> e putaria" e na relação entre as três coisas. Raquel (a co-produtora e
>> co-apresentadora do programa) e eu nos entreolhamos sem coragem de
>> sorrir. E ele havia dito, minutos antes, que, enquanto rapper, seu papel
>> era apenas dizer aquilo que os outros não tinham coragem de dizer. Finda
>> a gravação, depois de 40 ou 45 programas, Raquel veio me dizer, pela
>> primeira vez, que o programa havia ficado legal!
>>
>> É essa, a meu ver, a grande contribuição do funk carioca à cultura
>> brasileira: num país que, como afirmou Eero Tarasti em seu livro sobre
>> Villa-Lobos, é o paraíso da perífrase, onde nada se exprime de modo
>> direto, o funk carioca --- que já não fala para um asfalto que preferiu
>> entregar a administração do morro aos comandos ou às milícias --- pode
>> se dar ao luxo de ser direto, de dar as coisas os seus devidos nomes; e
>> se divertir com isso. Não acho que seja pouco.
>>
>> Um abraço,
>> Carlos
>>
>> José Luiz Martinez escreveu:
>>     
>>> Assisti aos vídeos que você indicou, sobre o funk e o da Deise em especial.
>>> Tenho a impressão que as meninas gostam de dançar e se divertem, mas não sei
>>> se se dão conta da letra do funk da injeção. Parece que há um hiato entre a
>>> compreensão do ritmo e do texto. Foi a própria Deise quem escreveu esse
>>> funk? No vídeo 6, com Galo, "Periferia é mil graus", esse descompasso não
>>> existe. Dá pra sentir que a coisa é real.
>>>
>>> Sobre o Pierrot funkado, a coisa pode ser bizarra, mas também pode ser
>>> patética. No final, quem estará mais fora de contexto será a Deise Tigrona,
>>> você tem razão. O que esperar disso? Estado da pós-modernidade? Não sei, só
>>> indo pra ver.
>>>
>>> Espírito científico, mano velho!
>>>
>>> Abraços,
>>> Zéluiz
>>>
>>>
>>> On 06/06/2007 00:49, "carlos palombini" <palombini em terra.com.br> wrote:
>>>
>>>   
>>>       
>>>> Também acho que será bizarro. A mim me soa como uma tentativa de injetar
>>>> (perdoe o trocadilho) alguma vitalidade numa vanguardismo exangue (não
>>>> me refiro a Schoenberg), que fará tão mal ao _Pierrot_ quanto à
>>>> simpaticíssima Deise. Parece aquela velha receita: misture tudo o que
>>>> não combina, que pode ser que dê certo. Mas, como vc mesmo sugere, posso
>>>> estar errado. Afinal, não tem gente que acha linda a pirâmide do Louvre?
>>>>
>>>> Um abraço,
>>>> Carlos
>>>>
>>>> José Luiz Martinez escreveu:
>>>>     
>>>>         
>>>>> Olá Carlos,
>>>>>
>>>>> Obrigado pelo esclarecimento. Estou achando que esse Pierrot será no mínimo
>>>>> bizarro. Ao que tudo indica, Adélia Issa vai fazer as 21 canções da obra
>>>>> original. Os instrumentistas e a regência de Antônio Carlos Borges Cunha
>>>>> (da
>>>>> UFRGS) devem garantir a interpretação correta da partitura.
>>>>>
>>>>> Agora, o que esperar de Deise Tigrona e Elke Maravilha no contexto
>>>>> simbolista (ou vice-versa), só pagando pra ver.
>>>>>
>>>>> Abraços,
>>>>> Martinez
>>>>>
>>>>>
>>>>>   
>>>>>       
>>>>>           
>>>> ________________________________________________
>>>> Lista de discussões ANPPOM
>>>> http://iar.unicamp.br/mailman/listinfo/anppom-l
>>>> ________________________________________________
>>>>     
>>>>         
>>>
>>>
>>>   
>>>       
>> ________________________________________________
>> Lista de discussões ANPPOM
>> http://iar.unicamp.br/mailman/listinfo/anppom-l
>> ________________________________________________
>>     
>
>
>
> ________________________________________________
> Lista de discussões ANPPOM 
> http://iar.unicamp.br/mailman/listinfo/anppom-l
> ________________________________________________
>
>
>
>   




Mais detalhes sobre a lista de discussão Anppom-L