[ANPPOM-L] "a voz dos excluídos", "os porões da ditadura" e a palavra final de Caetano Veloso

Carlos Palombini cpalombini em gmail.com
Qua Set 17 10:04:42 BRT 2008


*Paulo Cesar Araújo se despede de Waldick Soriano com um texto cheio de
clichês, onde não faltam "a voz dos excluídos", "os porões da ditadura" e a
palavra final de Caetano Veloso. Num contexto em que falar de Waldick
Soriano é cometer um* faux pas*, um texto interessante.
*

*Waldick Soriano: a voz dos excluídos*

Por um desses mistérios da criação, coube à Bahia oferecer ao Brasil os dois
extremos da nossa música popular: o cultuado João Gilberto, o criador da
bossa nova, e o criticado Waldick Soriano, a mais completa tradução da
chamada música brega ou cafona. E por coincidência, no mesmo ano em que João
é reverenciado pelos 50 anos da bossa nova, o outro baiano saiu da vida para
entrar na História.

Ao comentar a morte dele, Caetano Veloso disse que "se há uma elite para
mim, é a elite dos que têm ou tiveram grande intuição artística. Waldick era
um desses". De fato, o cantor e compositor Eurípedes Waldick Soriano foi um
dos mais marcantes e singulares artistas da música brasileira. Ele começou a
carreira em 1959 com o single *Quem és tu *e, no ano seguinte, lançou o
primeiro álbum com o mesmo título e orquestrações do maestro Guerra Peixe. A
obra de Waldick é, portanto, contemporânea da bossa nova, do Cinema Novo, do
concretismo e da arquitetura de Oscar Niemayer.

O projeto desenvolvimentista da era JK, apesar do clima de euforia que
criava, tinha também o seu lado perverso. Havia um  outro Brasil,
abandonado,  desfavorecido, que não aparecia nas capas da revista Manchete.
Um Brasil que, sem conhecer as maravilhas da indústria de consumo, sofria no
carne os sacrifícios para implantá-la. A música de Waldick surgiu neste
contexto expressando a tristeza dos marginalizados de bolso e de coração,
como em *O moço pobre,* que diz: "Um moço pobre como eu não deve amar / E
nem tão pouco alimentar sonhos de amor / O mundo é só de quem tem muito pra
gastar / Um moço pobre como eu não tem valor..."

Partindo de experiências individuais, Waldick transformava suas músicas numa
realidade que não era apenas dele e sim de um vasto público formado por
empregadas domésticas, porteiros, garçons, operários de construção e
imigrantes nordestinos que são freqüentemente humilhados e ofendidos no
cotidiano brasileiro. Foi para eles que o artista baiano compôs temas como *Eu
também sou gente, Nem cachorro é maltratado como eu *e a emblemática *Eu não
sou cachorro não*.

Inicialmente restrito ao Norte e Nordeste, o sucesso de Waldick foi num
crescendo, até que no fim dos anos 60 explodiu em todo o Brasil. Aí já
estávamos na ditadura militar e na grande repressão política que se seguiu à
decretação do AI-5. O embate dele com a censura aconteceu em 1974 com a
proibição de *Tortura de amor  – *uma das mais lindas e românticas canções
já feitas no Brasil. Os militares ficaram perturbados com a referência a uma
palavra que remetia aos porões da ditadura. Aqueles dias eram assim. Podia
torturar, mas não podia falar em tortura, nem mesmo de amor.

A famosa máxima rodrigueana de que toda unanimidade é burra nunca ficou tão
evidente como na opinião dos críticos sobre Waldick Soriano. Virou
lugar-comum subestimar o talento deste cantor-compositor, mesmo entre
aqueles que nunca ouviram um disco seu. No livro *Eu não sou cachorro,
não* defendo
a idéia de que existe determinado parâmetro de julgamento estético de uma
obra musical no Brasil. Para ser bem qualificada pela crítica esta obra
precisa estar identificada ao que se considera "tradição" (folclore, choro,
samba de raiz) ou então ao que se considera "modernidade" (influências de
vanguardas literárias ou musicais como o jazz, a bossa nova, o rock inglês).
É por isso que tem valor cultural nomes como Nelson Sargento ("tradição") ou
Tom Zé ("modernidade"). Quem não se enquadra aí  é desclassificado.

Porém, indiferente a estas filigranas das elites culturais do país, o povo
brasileiro consagrou Waldick Soriano como um gigante da nossa música
popular. Ao longo se sua carreira ele gravou 83 discos, compôs cerca de 600
canções, muitas delas grandes sucessos. *Eu não sou cachorro não, *por
exemplo, está na memória coletiva nacional assim como *Asa Branca, Mamãe eu
quero *e* Luar do sertão*. Sim, Waldick se expressava através de um ritmo
alienígena como o bolero, mas como disse o poeta Augusto de Campos à
propósito do tropicalismo. "E daí? Desde quando a arte tem carteira de
identidade? Qual a nacionalidade de Stravinski: russo, francês, americano ou
simplesmente humano?"

Felizmente, Waldick viveu a tempo de ver realizado aquele desejo que
compartilhava com Nelson Cavaquinho: "Se alguém quiser fazer por mim / que
faça agora". E a atriz Patrícia Pillar fez dois belos trabalhos em sua
homenagem: o CD e DVD *Waldick Soriano ao vivo*, lançados em 2007*, *e o
documentário *Waldick - sempre no meu coração*, exibido neste ano. Eu
próprio fiz uma análise da sua trajetória artística no livro ao qual dei o
título *Eu não sou cachorro não*, publicado pela editora Record, em 2002.
Entretanto, há ainda muito mais a ser revelado na obra deste grande artista
brasileiro. De qualquer forma, acho que Waldick Soriano partiu sentindo o
seu coração, a sua alma e a sua história lavados.


 ------------------------------

PAULO CESAR DE ARAÚJO é historiador e jornalista, autor de *Eu não sou
cachorro, não* e *Roberto Carlos em detalhes*.

-- 
carlos palombini
<cpalombini em gmail.com>

maison suger
16-18 rue suger
paris 6

tél. 01.44.41.32.41
-------------- Próxima Parte ----------
Um anexo em HTML foi limpo...
URL: <http://www.listas.unicamp.br/pipermail/anppom-l/attachments/20080917/33b5a67f/attachment.html>


Mais detalhes sobre a lista de discussão Anppom-L