[ANPPOM-L] "a voz dos excluídos", "os porões da ditadura" e a palavra final de Caetano Veloso

Luiz Otávio Braga luizorcb em centroin.com.br
Seg Set 22 21:43:00 BRT 2008


Tempo e vez do relativismo!
Luiz Otávio Braga
PPGM/UNIRIO
  ----- Original Message ----- 
  From: Carlos Palombini 
  To: anppom-l em iar.unicamp.br 
  Sent: Wednesday, September 17, 2008 10:04 AM
  Subject: [ANPPOM-L] "a voz dos excluídos", "os porões da ditadura" e a palavra final de Caetano Veloso



  Paulo Cesar Araújo se despede de Waldick Soriano com um texto cheio de clichês, onde não faltam "a voz dos excluídos", "os porões da ditadura" e a palavra final de Caetano Veloso. Num contexto em que falar de Waldick Soriano é cometer um faux pas, um texto interessante. 

  Waldick Soriano: a voz dos excluídos 


  Por um desses mistérios da criação, coube à Bahia oferecer ao Brasil os dois extremos da nossa música popular: o cultuado João Gilberto, o criador da bossa nova, e o criticado Waldick Soriano, a mais completa tradução da chamada música brega ou cafona. E por coincidência, no mesmo ano em que João é reverenciado pelos 50 anos da bossa nova, o outro baiano saiu da vida para entrar na História. 

  Ao comentar a morte dele, Caetano Veloso disse que "se há uma elite para mim, é a elite dos que têm ou tiveram grande intuição artística. Waldick era um desses". De fato, o cantor e compositor Eurípedes Waldick Soriano foi um dos mais marcantes e singulares artistas da música brasileira. Ele começou a carreira em 1959 com o single Quem és tu e, no ano seguinte, lançou o primeiro álbum com o mesmo título e orquestrações do maestro Guerra Peixe. A obra de Waldick é, portanto, contemporânea da bossa nova, do Cinema Novo, do concretismo e da arquitetura de Oscar Niemayer.  

  O projeto desenvolvimentista da era JK, apesar do clima de euforia que criava, tinha também o seu lado perverso. Havia um  outro Brasil, abandonado,  desfavorecido, que não aparecia nas capas da revista Manchete. Um Brasil que, sem conhecer as maravilhas da indústria de consumo, sofria no carne os sacrifícios para implantá-la. A música de Waldick surgiu neste contexto expressando a tristeza dos marginalizados de bolso e de coração, como em O moço pobre, que diz: "Um moço pobre como eu não deve amar / E nem tão pouco alimentar sonhos de amor / O mundo é só de quem tem muito pra gastar / Um moço pobre como eu não tem valor..."

  Partindo de experiências individuais, Waldick transformava suas músicas numa realidade que não era apenas dele e sim de um vasto público formado por empregadas domésticas, porteiros, garçons, operários de construção e imigrantes nordestinos que são freqüentemente humilhados e ofendidos no cotidiano brasileiro. Foi para eles que o artista baiano compôs temas como Eu também sou gente, Nem cachorro é maltratado como eu e a emblemática Eu não sou cachorro não.  

  Inicialmente restrito ao Norte e Nordeste, o sucesso de Waldick foi num crescendo, até que no fim dos anos 60 explodiu em todo o Brasil. Aí já estávamos na ditadura militar e na grande repressão política que se seguiu à decretação do AI-5. O embate dele com a censura aconteceu em 1974 com a proibição de Tortura de amor  – uma das mais lindas e românticas canções já feitas no Brasil. Os militares ficaram perturbados com a referência a uma palavra que remetia aos porões da ditadura. Aqueles dias eram assim. Podia torturar, mas não podia falar em tortura, nem mesmo de amor.    

  A famosa máxima rodrigueana de que toda unanimidade é burra nunca ficou tão evidente como na opinião dos críticos sobre Waldick Soriano. Virou lugar-comum subestimar o talento deste cantor-compositor, mesmo entre aqueles que nunca ouviram um disco seu. No livro Eu não sou cachorro, não defendo a idéia de que existe determinado parâmetro de julgamento estético de uma obra musical no Brasil. Para ser bem qualificada pela crítica esta obra precisa estar identificada ao que se considera "tradição" (folclore, choro, samba de raiz) ou então ao que se considera "modernidade" (influências de vanguardas literárias ou musicais como o jazz, a bossa nova, o rock inglês). É por isso que tem valor cultural nomes como Nelson Sargento ("tradição") ou Tom Zé ("modernidade"). Quem não se enquadra aí  é desclassificado.  

  Porém, indiferente a estas filigranas das elites culturais do país, o povo brasileiro consagrou Waldick Soriano como um gigante da nossa música popular. Ao longo se sua carreira ele gravou 83 discos, compôs cerca de 600 canções, muitas delas grandes sucessos. Eu não sou cachorro não, por exemplo, está na memória coletiva nacional assim como Asa Branca, Mamãe eu quero e Luar do sertão. Sim, Waldick se expressava através de um ritmo alienígena como o bolero, mas como disse o poeta Augusto de Campos à propósito do tropicalismo. "E daí? Desde quando a arte tem carteira de identidade? Qual a nacionalidade de Stravinski: russo, francês, americano ou simplesmente humano?" 

  Felizmente, Waldick viveu a tempo de ver realizado aquele desejo que compartilhava com Nelson Cavaquinho: "Se alguém quiser fazer por mim / que faça agora". E a atriz Patrícia Pillar fez dois belos trabalhos em sua homenagem: o CD e DVD Waldick Soriano ao vivo, lançados em 2007, e o documentário Waldick - sempre no meu coração, exibido neste ano. Eu próprio fiz uma análise da sua trajetória artística no livro ao qual dei o título Eu não sou cachorro não, publicado pela editora Record, em 2002. Entretanto, há ainda muito mais a ser revelado na obra deste grande artista brasileiro. De qualquer forma, acho que Waldick Soriano partiu sentindo o seu coração, a sua alma e a sua história lavados.




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  PAULO CESAR DE ARAÚJO é historiador e jornalista, autor de Eu não sou cachorro, não e Roberto Carlos em detalhes.  


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  carlos palombini
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