[ANPPOM-Lista] Re : A palhaçada do Concurso de Tatuí

Igor Reis Reyner reynerpianista em yahoo.com.br
Sex Out 21 08:15:19 BRST 2011



Os critérios de um concurso deveriam ser claros, tipo: a banca gosta ou não gosta? E só. Afinal, já disse Francis Ponge


" ... o valor de minhas ideias me aparece no mais das vezes na razão inversa do ardor empregado para emiti-las. Empregamos o tom da convicção (e mesmo da sinceridade), me parece, tanto para nos convencermos a nós mesmos quanto para convencer o interlocutor, e ainda mais, talvez, para substituir a convicção. De alguma forma para substituir a verdade ausente das proposições emitidas. Eis o que sinto, no fundo."

Abraços.
Igor, Reyner.


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De : André Fadel <andrefadel em gmail.com>
À : anppom-l em iar.unicamp.br
Envoyé le : Jeudi 20 Octobre 2011 10h13
Objet : [ANPPOM-Lista] A palhaçada do Concurso de Tatuí





  
A palhaçada do Concurso de Piano de
Tatuí
  
(Para aqueles que quiserem ir
direto ao assunto, podem pular para a segunda parte)
 
 
1. Considerações sobre
concursos de instrumento
 
Todo concurso é polêmico. É uma das
piores maneiras de se descobrir e premiar instrumentistas porque é um
procedimento que foge à natureza da arte. Em arte não deveria haver competição.
Mas músicos – como todo animal mamífero – têm espírito competitivo e querem se
destacar para poderem sobreviver às intempéries mundanas. Afinal, o mundo é
selvagem demais e todo esforço é pouco para se alcançar a caça e dominar o
fogo.
 
Observando os concursos
internacionais mais importantes tem-se a impressão de que estes eventos não
diferem muito das Olimpíadas: pessoas sacrificam boa parte da fase produtiva de
suas vidas esperando obter, em lapso de minutos, um breve reconhecimento pelos
seus esforços. Não devemos esquecer que os músicos estão lá por livre e espontânea...
necessidade. Para abocanharem contratos, prêmios e turnês todos devem se
submeter ao crivo de um jurado. Concursos lembram a democracia de Churchill,
que dizia que esta é a pior forma de governo, tirando todas as outras já
existentes. A diferença é que, se a oportunidade do instrumentista não aparecer
por meio do concurso, deverá ocorrer por meio de relações sociais e políticas,
o que complica e muito as coisas para a maioria que não tem sobrenome, seita ou
outros círculos de amizade.
 
Também existe um lado bom para os
competidores, independentemente dos resultados. Quando alguém se prepara para
um concurso, ocorre um processo de grande superação dos próprios limites.
Pode-se aprender menos em termos quantidade de repertório, mas há coisas que só
são conquistadas por processos intensos e contínuos. Heinrich Neuhaus comparou
uma vez o estudo do piano com a fervura da água, pois esta não borbulha se o
fogo for desligado de tempos em tempos. Além disso, há também o lado emocional. Seja com
traumas ou láureas, competidores sempre aprendem. 
 
Vendo o crescente número de competições
no mundo, a prática está longe de ser abolida ou substituída. Contudo, algumas
iniciativas estão sendo tomadas para aumentar sua transparência. Uma delas foi
adotada apenas recentemente pelo 14º. Concurso Tchaikovsky, cujas etapas foram teletransmitidas ao
vivo e no qual foi dada aos espectadores a oportunidade de opinarem  e se
manifestarem sobre os concorrentes. A tecnologia hoje permite muitos
procedimentos e, quando se trata de concurso musical, a gravação deveria ser o
mais elementar deles. Outras sugestões são apresentadas em um ótimo artigo de Michael Johnson.
 
Eu, pessoalmente, não aguento
assistir a concursos de piano. Normalmente são chatos e muito cansativos. As
provas são longas, os repertórios variam pouco e a pressão é desumana. Às vezes
parece que estão tentando enfiar o músico numa lâmina microscópica para a
análise de suas virtudes e defeitos. Mas o espírito da competição é esse, da
mesma forma que a natureza seleciona os mais aptos a sobreviverem. Apesar disso, não hesito em participar de um ou outro quando as exigências do edital coincidem com o repertório que estou estudando. Seja para fins competitivos ou artísticos, quando estou ao instrumento procuro esquecer todo o lixo que está em volta e imergir na música.
 
Mas o que determina uma virtude nas
competições? E o que define o que seriam defeitos? Ah, os critérios...
 
 
2. Sobre Tatuí
 
No Brasil há poucos concursos de
piano e nenhum com grande tradição. Por isso, qualquer um que ofereça um prêmio
interessante (apresentações, dinheiro, instrumentos) merece a atenção de quem
estuda. Como no Brasil não há reconhecimento duradouro por concursos, pelo
menos a conquista de um deles recompensa – em parte – o esforço e agrega
pontinhos para o currículo (às vezes, a alimentação do Currículo Lattes também
parece uma Olimpíada!). O Concurso de Tatuí oferecia prêmio de R$ 5.000,00 e
recital com orquestra. O prêmio não chega perto dos U$ 20.000,00 de um concurso
do Cazaquistão (o país ridicularizado pelo "Borat"), mas não é nada
mal para a terra de cegos – ou seria "surdos"?
 
Na teoria, pelo que foi exposto
antes, concurso pode ser considerado um instrumento  democrático por
oferecer tratamento isonômico aos participantes. Só na teoria. O grande
problema reside fundamentalmente no poder de validação detido soberanamente
pela banca avaliadora. É ela que vai brincar de chefe e dar as batatas ao
vencedor. Mas sob quais critérios? 
 
Uma vez que haja a participação
decisória de seres humanos num sistema, pode-se questionar todo e qualquer
resultado. A neurociência tem uma coleção de estudos (Zimbardo, Harris,
Milgram) que fragilizam cada vez mais a ideia de que humanos tenham o que se
entende por objetividade, justiça, imparcialidade e até mesmo moralidade.
Imagine  acrescentar "musicalidade" nessa lista. Exigir tudo isto
de uma banca de concurso pode ser demais.
 
Portanto, é evidente que todo
resultado de concurso será polêmico. Mas existem critérios que podem ser
discutidos e adotados no julgamento de candidatos, no sentido de tentar
aproximar o poder de validação de uma banca de algo que seja mais ou menos
consenso entre quem entende do assunto. Não acho que o "voto
popular" seja o caminho, mas isto não deixaria de ser útil para indicar o
que pode ser viável comercialmente, por exemplo.
 
Há corporativismo no meio dos
concursos de música? Lógico que há. Há corrupção? Sim. Há decisões marcantes?
Também. O exemplo mais célebre de que eu me lembro foi no Concurso Chopin de
1980, quando Ivo Pogorelich foi desclassificado pelo júri e Martha Argerich se
retirou da banca, inconformada. Mas foi alguma coisa assim que houve no
Concurso de Tatuí? Não.
 
O que houve foi uma demonstração de
como a inépcia de uma banca avaliadora pode prejudicar a credibilidade de um
concurso, devido a ausência de critérios objetivos que deveriam nortear o que
se busca em termos de música numa ocasião como esta. 
 
Arrisco o primeiro critério possível
que poderia orientar uma banca, partindo do princípio da isonomia: fidelidade
às ideias contidas na partitura. Pode haver uma sensação ilusória de objetividade
neste quesito? Sim, não tenho dúvidas, mas não deixa de ser um critério mais
objetivo do que  tentar medir algo que não pode ser medido (p.e., conceitos como
“brasilidade”). A notação musical continua sendo referência mundial para a
interpretação de uma obra, mas também seria ingenuidade deixar de notar que há
sim um universo além da partitura. Se assim não fosse, qualquer computador
poderia ser considerado o melhor intérprete possível. No entanto, parece-me
que ignorar a clareza (e, por que não, a limpeza) de uma apresentação equivale a
deixar de notar que há um rinoceronte branco na sala.
 
Já outro critério é um pouco mais
complicado, mas não pode deixar de ser mencionado: respeito ao estilo do
compositor. Para isso, seria necessário exigir conhecimento histórico e
capacidade auditiva em reconhecê-lo. Não vou entrar na seara de a referida banca ser
capacitada para isto ou não. 
 
O que prevalece realmente é aquilo
que dizia o pianista François Fréderic Guy: os jurados são as pessoas que
"sabem". “Eles têm um tipo de
código musical e se você não estiver conectado a este código, você não tem
chance”. É este código que estou questionando. Porque suspeito que o código
da banca de Tatuí sequer foi musical.
 
A prova exigia uma peça de confronto
– aos que não sabem, é uma peça que todos os candidatos devem interpretar
– e uma obra de livre escolha, ambas brasileiras. Vale dizer que a edição da
peça de confronto era lamentável. Eu fui o único candidato que
"corrigiu" todas as muitas notas erradas da edição. Aliás, a
incompetência editorial musical do Brasil mereceria outro texto. Também
fui o único que respeitou o andamento indicado, e, se bem me lembro, devo ter
esbarrado em uma notinha. Sou grato aos meus mestres por terem me ensinado a
analisar uma obra musical e também por poder ouvi-la e reproduzi-la em suas
nuances.
 
Quanto à obra de livre escolha, há
alguns meses tive a preciosa oportunidade de tocá-la ao filho do
compositor que me deu ideias, questionou algumas e validou outras que eu
já tinha. Quanto à apresentação na prova do concurso, faço antes um comentário: quem
me conhece sabe que o maior crítico de mim sou eu mesmo. Dificilmente saio
satisfeito de uma apresentação, por melhor que seja o feedback.
Excepcionalmente, neste concurso saí do palco muito contente mesmo sabendo que
poderia ter feito melhor, mas acreditando que tinha estabelecido a barra num
nível bem alto. Também fiz questão de assistir a todas as provas (faltei apenas
a uma delas porque uma jornalista pediu que eu desse uma entrevista,
ironicamente sobre a importância dos concursos). Houve candidatos brilhantes e
outros nem tanto que não preciso detalhar aqui, mas apenas menciono que, dos
candidatos que estavam em sintonia com o meu código musical, a maioria não levou nenhum prêmio.
 
O anúncio da premiação foi muito
estranho: todos os candidatos levaram um “puxão de orelha” porque, segundo a
teoria da avaliadora (vou dar o nome fictício de Sra. “Adolfa”), todos os
pianistas deveriam frequentar rodas de samba para poderem tocar música
brasileira. Mesmo depois de eu ter admitido que não frequento rodas de choro,
samba ou fandango, ainda assim foi uma grande surpresa saber que as minhas
notas foram as mais baixas do concurso.
 
Pela lógica, eu preciso ser luterano
para poder tocar a música de Bach, místico para tocar Scriabin e homossexual
para tocar Poulenc.
 
Por mais inadequado que fosse,
estava curiosíssimo em saber o que é que eu tinha feito de errado. Questionada,
a presidente da banca Adolfa respondeu que faltou "ginga", que a
"agógica" não foi respeitada e que os deslocamentos rítmicos não
foram realizados. Em resposta, gostaria que a Adolfa ouvisse novamente a
prova. Há testemunhas, mas não preciso delas. O que parece que falta aqui se
chama honestidade intelectual. Diante da omissão de opinião dos que dividiram a
mesa, Sra. “Benita” e Sr. “Blondi”, suponho que tenham concordado com tudo o
que foi dito.
  
Tenho curiosidade em saber como
seria a avaliação, por essa ilustre equipe, da interpretação do Rudepoema de Marc-André Hamelin, já que
o mesmo não deve ter ensaiado na vida um passo de samba. Ou alguém acha que o
Nelson Freire fica dançando no banheiro para tocar o Choros n. 5 ou a Toccata de Guarnieri? Colocação igualmente absurda seria dizer que pianistas
brasileiros não sabem tocar Prokofiev ou Medtner. Por que há essa mística tão
grande em torno de “música brasileira”? Só o nosso povo tem este hábito ridículo.
 
Pela interpretação teleológica da
expressão, se eu toco música de um compositor brasileiro, eu faço música
brasileira. A julgar pela interpretação das peças tupiniquins pelos candidatos
estrangeiros no Concurso Cidade de Florianópolis em 2010, os “gringos” não
devem nada em termos de musicalidade. Já em termos de “brasilidade”, deixo os
argumentos para a Sra. Adolfa.
 
Por mais que alguns me considerem um
"eurocêntrico" (eu não ligo, às vezes acho um elogio), eu considero
imensamente todas as manifestações artísticas não importa de onde venham. Quando
se trata de preferência pessoal, é pessoal e fim de papo. Mas esse argumento
não vale quando se tem a responsabilidade de ser jurado de concurso. Antes de
ter opinião pessoal, é necessário provar que pelo menos o julgador tenha
ouvidos.
 
Em 1999, Matt Stone e Trey Parker,
criadores de South Park, concorreram
ao Oscar pela melhor trilha sonora, mas o prêmio acabou indo para Phil Collins.
Não tiveram dúvida: no episódio televisivo seguinte massacraram e
ridicularizaram o cantor, inclusive com a estatueta enfiada lá mesmo. “Estávamos TÃO preparados para perder, mas
não desse jeito! Não para o Phil Collins”, disseram. Fizeram errado, Stone
& Parker. Eu também estava preparado para perder, mas não desse jeito. Só
que vocês deveriam ter enfiado a estatueta nos que elegeram o Phil Collins, não no coitado.
 
Termino com Griboyedov: “...mas quem são os juízes”?
 
 
André Fadel
músico
 
 
 


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