[ANPPOM-Lista] Você quer mesmo ser cientista?

Carlos Palombini cpalombini em gmail.com
Ter Ago 6 10:27:07 BRT 2013


Suzana Herculano-Houzel

Vamos fazer as devidas ressalvas primeiro, antes que a polícia de plantão
venha me dizer que estou fazendo um desserviço à ciência brasileira. É
claro que gostaria de ver mais jovens se tornarem cientistas, e quero
contribuir para isso. Mas decidi que faz parte do meu trabalho de
divulgação científica tornar público e notório como é se tornar cientista
no Brasil.

Meus objetivos aqui são promover a conscientização das pessoas sobre a
realidade da carreira de um cientista e, quem sabe, gerar com isso um certo
espanto e revolta; e contribuir para que a escolha dos jovens por uma
carreira em pesquisa seja consciente, apesar de tudo o que vem a seguir.
Mas, sobretudo, o que eu gostaria é de gerar indignação suficiente para
fazer a carreira de cientista (1) passar a existir de fato, e (2) ser
valorizada.

Feitas as ressalvas, vamos então à minha campanha de anti-propaganda sobre
a ciência no Brasil!

Você que é jovem e está considerando se tornar pesquisador: você sabia que…

- durante a faculdade, seus estágios de iniciação científica serão
remunerados em apenas 400 reais – isso mesmo, menos do que um salário
mínimo? Este é o valor atual definido pelo CNPq. E isso é SE você conseguir
bolsa de iniciação científica, porque a Faperj, por exemplo, atualmente
limita a sua concessão a UMA bolsa por pesquisador, e o CNPq-PIBIC a duas
bolsas. Em um laboratório de tamanho médio, isso já não será suficiente
para garantir bolsas a todos os estagiários – o que significa que é
vexaminosamente comum termos estagiários trabalhando de graça;

- quando terminar a faculdade, a não ser que consiga emprego na indústria
ou em empresas privadas, para fazer pesquisa você precisará concorrer a
bolsas de R$ 1.350 para fazer mestrado? Enquanto isso, seus colegas
formados em administração, engenharia, advocacia já estarão entrando para o
mercado de trabalho, ganhando salários iniciais (com todos os direitos
trabalhistas) de 3 a 7 mil reais reais ou mais. Ah, eu mencionei que,
embora se espere que você trabalhe 40 horas por semana em dedicação
exclusiva durante o mestrado, você não terá qualquer direito trabalhista?
Isto porque o seu trabalho ainda não é considerado, ahn, trabalho…

- …é mais fácil conseguir bolsa do Ciência Sem Fronteiras para fazer
GRADUAÇÃO no estrangeiro do que conseguir uma bolsa de pós-graduação no
país? É isso mesmo: exportamos nossos alunos de graduação, mas não temos
bolsas suficientes para mantê-los na pós-graduação no país.

- quando você terminar o mestrado, a não ser que consiga emprego como
pesquisador em empresas privadas (que são pouquíssimos), você terá
necessariamente que fazer um doutorado? A razão é que o cargo de
“pesquisador” em nosso país é quase inexistente; somente institutos de
pesquisa como o INCA ou a Fiocruz oferecem emprego (através de concurso
público) para pesquisadores (e muitas vezes exigem doutorado). Todas as
demais possibilidades de emprego para um pesquisador são como “professor
universitário” – e este cargo, também somente acessível por concurso
público, é hoje essencialmente restrito a quem já tem título de Doutor.

- então, com 3 anos de formado, você terá que concorrer a bolsas de R$
2.000 mensais para fazer doutorado? Isso, vou repetir: seus colegas já
estarão no mercado de trabalho, ganhando salários reais, tendo seu trabalho
chamado de “trabalho”, com direito a férias e 13o salário – e, com sorte,
você terá assinado um papel aceitando receber DOIS mil reais por mês pelos
próximos 4 anos. E fique muito contente de ter uma bolsa: como dizem nossos
detratores, você deveria ficar “muito feliz de estar sendo pago para
estudar”. Exceto que você não estará “estudando”; você estará trabalhando,
gerando conhecimento, e contribuindo para as universidades publicarem os
artigos científicos que lhes servem como base de avaliação no cenário
mundial.

- que, durante todos esses anos de pós-graduação, para receber uma bolsa
você NÃO poderá ter qualquer outra fonte de renda? Sim, você pode ter outro
emprego e fazer pós-graduação sem receber bolsa – mas é pouco provável que
consiga terminar a pós-graduação assim. Para receber uma bolsa, você será
obrigado a assinar uma declaração humilhante de que não tem qualquer outra
fonte de renda. Bom, mais ou menos; a Capes há um ano decidiu aceitar
acúmulo de bolsa com “emprego de verdade” SE for na mesma área da sua
pós-graduação. Adivinha qual é a chance de você ter esse “emprego de
verdade”? Pois é.

- agora, com o diploma de Doutor em mãos, você terá ganhado o direito de
competir por vagas para… Professor. Isso mesmo: não de “pesquisador”, mas
de “professor”. Isso porque as universidades públicas, onde a boa ciência é
feita no país, somente contratam “professores”. Ou seja: com MUITA sorte,
você será contratado, no mínimo SETE anos após a graduação, para fazer algo
que você NUNCA fez: dar aulas. Seu salário inicial líquido (seu primeiro
salário de verdade!) será algo em torno de 5 mil reais – mas não se engane,
seu “vencimento básico”, aquele que o governo usará para talvez um dia
pagar sua aposentadoria, será de não muito mais do que 2 mil reais…

- é mais provável, no entanto, que você NÃO consiga emprego imediatamente,
uma vez doutor, e tenha que ingressar no limbo dos pós-doutorandos? Um
“pós-doutor” é exatamente isso que o nome indica: alguém que já é doutor,
mas ainda não tem emprego. É um limbo criado pelo sistema para manter
interessados os cada vez mais numerosos recém-doutores que não encontram
emprego nem como pesquisadores, nem como professores. Pela mesma tabela do
CNPq, um recém-doutor recebe uma bolsa de R$ 3.700 mensais, livres de
impostos. Ou seja: lembra daquele salário inicial dos seus colegas
recém-formados? Um aspirante a cientista finalmente conquista o direito a
um valor semelhante… SETE anos após a graduação. Ah, claro: ainda sem
qualquer direito trabalhista, pois você “não trabalha”. Permita-me fazer as
contas para você: a esta altura, você esta perto de completar 30 anos de
idade, e oficialmente… “nunca trabalhou”;

- A esta altura, você já será para todos os fins práticos um Cientista –
mas ainda não terá direito de pedir auxílio às agências de fomento para
fazer pesquisa? Para gerenciar um auxílio-pesquisa é preciso ter vínculo
empregatício com uma instituição de pesquisa – e isso, tirando os
pouquíssimos cargos de Pesquisador de fato na Fiocruz, INCA, IMPA etc, você
só consegue se virar… professor universitário;

- SE você conseguir ser aprovado em concurso para professor universitário E
for fazer pesquisa de fato, você não inicialmente ganhará NEM UM CENTAVO A
MAIS por isso? Você terá a mesma carga horária de aulas a cumprir, aulas
por preparar e atualizar todos os semestres, mas o trabalho de pesquisa,
com o qual você tanto sonhou, é… por sua conta. Se você resolver não fazer
pesquisa e apenas der aulas, como você foi oficialmente contratado para
fazer, está tudo bem. Talvez seus colegas torçam o nariz para você, porque
esqueceram que também o emprego deles é apenas como professores, e não
pesquisadores, mas você estará rigorosamente correto se só fizer seu
trabalho de professor.

- Apesar disso tudo, sua progressão na carreira universitária será
dependente do seu trabalho de pesquisa? Você leu corretamente: você foi
contratado como PROFESSOR, mas sua avaliação funcional será feita de acordo
com as suas atividades como PESQUISADOR…

- SE você tiver produtividade suficiente, em alguns anos você poderá
concorrer a uma bolsa de Pesquisador do CNPq, que complementa seu salário
em R$ 1.000 por mês. E isso é todo o incentivo financeiro que você receberá
para fazer pesquisa.

Já desistiu? Pelo bem da ciência brasileira, espero que… sim. Esta é minha
campanha de anti-propaganda em prol da melhoria da ciência no meu querido
país: torço para que você tenha ficado indignado a ponto de considerar
fazer outra coisa da sua vida. Precisamos de uma crise, e um desinteresse
súbito da parte de nossos jovens seria muito, muito, muito eloquente.

Mas sei que a gente escolhe ser cientista assim mesmo, apesar de tudo isso.
Quando eu entrei para a Biologia, em 1989, a situação era ainda pior. A
ciência no país persiste graças a esses jovens idealistas, que querem
contribuir para o progresso da nação apesar de serem mal-tratados e
desvalorizados, e que topam embarcar em uma “carreira” que não lhes dará
condições financeiras para terem uma vida independente antes dos TRINTA
anos de idade – e olhe lá…

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Artigo escrito por Suzana Herculano-Houzel, autora do blog “A
Neurocientista de Plantão <http://www.suzanaherculanohouzel.com>“, que
gentilmente autorizou a publicação deste texto (que aliás, possui uma
continuação: “Você quer mesmo ser cientista? Parte 2: uma proposta
prática<http://www.suzanaherculanohouzel.com/journal/2012/10/15/voce-quer-mesmo-ser-cientista-parte-2-uma-proposta-pratica.html>
“)
http://www.posgraduando.com/blog/voce-quer-mesmo-ser-cientista

-- 
carlos palombini
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