[ANPPOM-Lista] Sobre o email do Daniel que me tirou do sério

Carlos Sandroni carlos.sandroni em gmail.com
Sáb Jun 1 16:14:49 BRT 2013


Prezado Daniel, prezados colegas,

[Esta mensagem ficou enorme, queiram desculpar. Tem até prefácio!]

PREFÁCIO

Debate por internet é uma coisa meio complicada. Quem é que relê, corrige
ou reescreve seus próprios emails? (Confesso, fiz isso um pouquinho no que
se segue... Mas não muito). Acaba saindo uma coisa meio irrefletida, meio
rasa. Quando os temas são importantes mesmo, a gente devia é escrever
artigos sobre eles, talvez até para postar na internet. Por outro lado,
isto de ser "irrefletido" contribui para fazer aparecer temas e idéias que
estão meio latentes, pensamentos sérios e importantes, tão importantes que
quando pensamos duas vezes acabamos não falando sobre eles. Então nos
emails eles aparecem... Aí vão os meus. (Não são tão sérios, mas acho que
são suficientemente irrefletidos).

Daniel, não conheço você nem seu trabalho, portanto o que se segue é
exclusivamente baseado no email que você postou, talvez num mau momento, em
uma lista pública de uma associação científica.

MENSAGEM

Bom, ontem acabou o VI Encontro Nacional da Associação Brasileira de
Etnomusicologia, e hoje consigo arrumar um tempinho para pensar um pouco
sobre a mensagem do colega Daniel Lemos que me tirou do sério. Pra quem não
leu, ela está copiada abaixo, junto com a minha resposta e a tréplica dele.
Mas trago aqui o trecho crítico:

<E já vi muitos professores de Universidade afirmando que a "cultura
europeia" deve ser negada e excluída da nossa vivência, com base nas
"Teorias Sociais" de dominação das colônias e do imperialismo... a primeira
coisa que estes caras deveriam fazer é pedir exoneração (afinal, a
Universidade é uma instituição europeia) e ir morar no mato. Só assim pra
abandonar a cultura europeia de fato.>

Perguntei, na minha resposta, quem seriam esses "professores de
universidade". Mas não é porque eu quisesse dar "nome aos bois". Era uma
"pergunta retórica", como se diz. É evidente que estes bois não existem. O
que existe, felizmente, é um questionamento por muitos professores
universitários de música sobre o papel do cânone europeu do século XIX (e
suas derivações) no ensino formal de música (e por tabela, nos projetos
sociais financiados com dinheiro público, como no caso do vídeo com J.
Carlos Martins postado aqui por Álvaro Henrique).

Este questionamento não precisa, para ser feito, de teorias sociais, nem de
teorias sobre colonização e descolonização. Mas muitos escritos de teóricos
que falam sobre estes temas podem ajudar, e ajudam, a pensar criticamente
sobre assuntos ligados à música e seu ensino. (Por exemplo, as teorias dos
sociólogos Antoine Hennion e Tia DeNora sobre socialização musical de
crianças ajudariam a entender o imbroglio das vaias ao André Mehmari. Mas
isso é assunto pra outro email... um dia).

Na sua mensagem, acredito que Daniel está tentando desqualificar, com um
fraseado um tanto violento aliás ("esses caras deviam pedir
exoneração"...), colegas, entre os quais me incluo, que veem na maioria dos
atuais departamentos e escolas universitárias de música brasileiros uma
marca ainda exagerada dos conservatórios europeus do século XIX. Tenta
também desqualificar a importância de teorias sociais, que provavelmente
não leu, para a formação de músicos universitários, o que partindo de um
professor universitário me parece lamentável.

Vamos a algumas constatações (me corrijam se eu estiver errado):

Nas cadeiras de história da música há um predomínio absoluto de história da
música ocidental, quase nada sobre música africana, quase nada sobre música
indígena, quase nada sobre músicas de outras partes do mundo;
proporcionalmente pouco sobre história da música brasileira e da música
popular internacional, inclusive européia.

Nas demais cadeiras teóricas, há um predomínio exagerado de técnica musical
em detrimento de reflexão sobre música do ponto de vista da acústica, da
psicologia, da sociologia, dos estudos de gênero, da semiótica e de tantos
outros enfoques importantes.

Nos instrumentos oferecidos, há um predomínio desproporcional dos
instrumentos de orquestra, e ainda muito pouco de instrumentos eletrônicos
da música popular (sintetizadores, samplers, guitarras elétricas etc), e de
instrumentos acústicos populares e tradicionais (aliás na maioria europeus,
como cavaquinho, sanfona, bandolim, pífanos, bateria; outros nem tão
europeus, como percussão popular e tradicional brasileira, flautas
indígenas etc).

No repertório trabalhado nos cursos de bacharelado em instrumento, e nos
respectivos concertos de formatura, até onde percebo há um predomínio quase
absoluto de compositores europeus de 1750 a 1900.

Estarei exagerando? Tomara que sim.

Em todo caso, é claro que quando aponto criticamente para o que me parecem
ser fatos evidentes, não é para "banir do nosso convívio" pianos, violinos,
contrapontos, nem Bach nem Beethoven nem Brahms. Eu também gosto disso
tudo, e da mesma forma gostam todos os etnomusicólogos e sociólogos da
música que conheço, no Brasil e fora do Brasil. (Só pra dar alguns
exemplos: Arom, Lortat-Jacob e o citado Hennion, que foram meus professores
na França, deram muitas provas disso em aula. Nettl deixa isso claro nos
seus livros. Nosso Manuel Veiga é pianista clássico de formação, assim como
nossa colega portuguesa Salwa Castelo-Branco. Samuel Araújo foi aluno de
Guerra-Peixe. Os citados não são neste ponto exceções, mas a regra.)

Podemos e devemos discutir qual o papel do cânone conservatorial europeu do
século XIX no ensino de música no Brasil do século XXI. Minha posição,
assim como a de muitos colegas, é a de que este papel está atualmente
superdimensionado. Seu redimensionamento está em curso, felizmente. Eu
gostaria que andasse mais rápido; mas não é só uma questão de "vontade
política", como se diz. Muitos fatores complicados contribuem para esta
demora.

E não há o menor risco, também felizmente, de que este cânone seja excluído
do nosso convívio acadêmico. Continuaremos em qualquer futuro imaginável a
ensinar violino e piano, a tocar Beethoven e Mozart. Mas faremos um pouco
mais de outras coisas também. (É claro que as proporções exatas sempre
serão motivo de controvérsia, mas a vida é assim.) Sobretudo (são meus
votos) faremos esta tão sólida tradição clássica européia dialogar um pouco
mais com outras musicalidades. Suspeito que isso faria bem a todos os
envolvidos.

O email do Daniel, ou está inventando fantasmas, ou está querendo atacar,
através da caricatura, qualquer questionamento sobre o lugar exagerado, nas
universidades brasileiras, do referido cânone. É pena, mas aposto na
segunda alternativa.

O email me lembrou o estudante que falou após uma mesa da qual participei
na ANPPOM de João Pessoa ano passado, e que também me tirou do sério. Ele
disse algo como: "A ANPPOM é o lugar da música erudita na academia", ou
algo parecido. Fiquei chocado, mas após alguns segundos de pasmo consegui
responder: "Você está errado. A ANPPOM é muito mais do que isso. Ela é de
todas as músicas".

E se ainda não for, vamos fazê-la assim?

Saudações,
Sandroni



2013/5/30 Daniel Lemos <dal_lemos em yahoo.com.br>

>
> Prezado professor Carlos Sandroni,
>
> Não direi o nome dos bois, mas uma coisa posso afirmar: vi isso em eventos
> da ABEM. Eu definitivamente não concordo com este ponto de vista, mas
> alerto todos os colegas da ANPPOM para manter seus olhares críticos atentos
> a isso. Estas pessoas estão ganhando coro, ainda mais em um contexto onde
> políticas afirmativas estão em alta.
>
> Saudações,
>
>
> Daniel Lemos Cerqueira
>
> http://musica.ufma.br <http://musica.ufma.br>
>
>
> --- Em *qui, 30/5/13, Carlos Sandroni <carlos.sandroni em gmail.com>*escreveu:
>
>
> De: Carlos Sandroni <carlos.sandroni em gmail.com>
> Assunto: Re: [ANPPOM-Lista] novo artigo sobre a vaia contra Andre mehmari
> Para: "Daniel Lemos" <dal_lemos em yahoo.com.br>
> Cc: "'anppom-l'" <anppom-l em iar.unicamp.br>
> Data: Quinta-feira, 30 de Maio de 2013, 1:08
>
>
> Prezado Daniel,
>
> Quem são estes colegas que dizem que "a cultura européia deve ser negada
> da nossa vivência"? E que "Teorias Sociais" são essas, que fundamentariam
> tão esdrúxula proposição?
> Como é que numa lista universitária, de uma associação de pesquisa e
> pós-graduação, se pode fazer atribuições tão levianas?
> Carlos Sandroni
>
>
> 2013/5/29 Daniel Lemos <dal_lemos em yahoo.com.br<http://mc/compose?to=dal_lemos@yahoo.com.br>
> >
>
>
> Cara, isso é absurdo... passei por isso também quando morava em Macaé e
> participei de um concerto beneficente para crianças carentes... isso lá pra
> 1996... vou fazer meu "coro" também a esse artigo.
>
> É mais um motivo pra acreditar hoje em dia que a Música de Concerto deve
> ser considerada um tipo de minoria. E já vi muitos professores de
> Universidade afirmando que a "cultura europeia" deve ser negada e excluída
> da nossa vivência, com base nas "Teorias Sociais" de dominação das colônias
> e do imperialismo... a primeira coisa que estes caras deveriam fazer é
> pedir exoneração (afinal, a Universidade é uma instituição europeia) e ir
> morar no mato. Só assim pra abandonar a cultura europeia de fato.
>
> Abraço,
>
> Daniel Lemos Cerqueira
>
> http://musica.ufma.br <http://musica.ufma.br>
>
>
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